O Bailarino escrita por Mayara Silva


Capítulo 19
Ode às Memórias Trancafiadas - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Oooie gente *u*

Esse capítulo é muuuito grande, mas eu resolvi partir só em 2 msm pra não matar ngm de ansiedade kkkk a treta tá só começando ¬u¬

Boa leitura ♥



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Era noite quando Michael prestou seu último teste para o espetáculo de O Lago dos Cisnes. Do alto, o límpido céu escuro, iluminado por incontáveis trilhas de estrelas, observava toda a movimentação do teatro: um moreno invencível, que deu o seu sangue e a sua dor, por 8 anos seguidos, para entregar a vingança de sua humilhação. Um homem que prometeu a si mesmo que compraria esse sonho e se tornaria mais do que o próprio pai ousaria desejar, ou mais do que ele poderia realizar. O homem que se tornou o primeiro grande bailarino negro do mundo.

 

Mas, de que adianta, se não podia carregar esse título? Se nem ao menos o seu próprio nome podia falar. Não… e correr o risco de ser reconhecido? Agora, ele era um fantasma. Levou as duas mãos aos próprios cabelos cujas pontas cacheadas como parafusos largos terminavam pouco abaixo dos ombros, penteou suas madeixas escuras com os próprios dedos e permitiu que estas bem complementassem a sua nova aparência. Já não tinha manchas tão visíveis, não tinha, pois haviam se apossado de grande parte do seu corpo. Elas, agora, eram-o, e muito o dissociava do ingênuo Michael de 8 anos atrás, quando pisou naquele palco e foi desmascarado pelo seu colega de dança. Já não haviam mais colegas, não havia mais equipe: estava sozinho. Estava só, pois maquinava suas próprias condições, e faria com que aqueles homens necessitassem de sua arte maravilhosa.

 

— O próximo!

 

Era sua vez.

Haviam muitos rapazes: todos belos, ótimos dançarinos, perfeitos contorcionistas, mágicos exímios, ilusionistas fantásticos, e todos buscavam pelo papel do príncipe Siegfried, típico e trivial. O moreno adorava aquelas peças, mas incomodava-se com o rigor dos movimentos, com as condições limitadoras, com o conveniente e previsível. Optou por lutar pelo papel do mago Rothbart. A concorrência era grande, porém, longe do presumível. Concorreria contra homens mais velhos, veteranos da dança, e esse era o desafio que buscava.

 

— Eu nunca vi você por aqui. De onde você é?

 

Michael posicionou-se no centro do palco acinzentado, onde as luzes poderiam percorrer pelo seu corpo e pelos seus trajes escuros. As plumas características do mago cobriam os seus braços, as vestes pretas e misteriosas demarcaram os seus contornos e a luz seria essencial para acompanhar os seus movimentos.

Logo, uma assistente correu na direção do diretor e cochichou algo em seu ouvido, o alertando sobre os votos de silêncio do homem excêntrico.

 

— Luzes!

 

As luzes auxiliares se apagaram completamente. O ambiente era, agora, iluminado apenas pelo farol cujo clarão caía sob a cabeça e ombros do dançarino. Havia uma pequena plateia de funcionários assistindo aos testes, e Michael podia sentir cada um daqueles pares de olhos concentrando-se em seus braços e suas pernas, julgando cada movimento inidôneo.

 

— Música!

 

A orquestra, composta por metade da quantidade final de músicos, iniciou as primeiras notas. Apenas Michael sabia o quanto a melodia impulsionava os seus sentimentos e despertava o seu espírito livre e artístico — uma coisa incontrolável dentro de si que o transformava em um instrumento nas mãos divinas — e sabia que, devido à falta da orquestra completa, a potência da sinfonia estava em uma metade inferior às suas expectativas. Por isso, fechou os olhos, concentrou-se no que tinha à sua disposição e deixou que o pouco de poder que havia naquelas notas o dominasse como uma marionete sem vida.

 

Iniciou com os movimentos previstos. Um, dois, um, dois, e prosseguiu à sua maneira, surpreendendo a todos. O diretor inclinou para frente, passou involuntariamente a mão no queixo e franziu o cenho, em puro sinal de confusão. Olhou para o lado, para o outro, buscou em algum de seus colegas jurados se realmente estava presenciando aquilo, e os contemplou concentrados em tamanha ousadia. Era inaceitável, era desrespeitoso, uma academia séria como aquela jamais aceitaria nada diferente do criteriosamente ensinado, e tamanho insulto a movimentos tão bem estruturados na arte eram imediatamente respondidos com a eliminação.

 

— Mas que diabos ele está fazendo?

 

Murmurou, puxou a caneta tinteiro e fez as suas anotações. Eliminado, certamente. Não se altera passos na arte criteriosa, porém Michael não contava com a sua aprovação, porque ele não veio em busca do prestígio de pseudointelectuais pragmáticos que tratavam a dança como uma ciência lógica e exata, mas do coração puro de seus subordinados que, ainda que com pouco estudo, recebiam a arte maravilhosa e permitiam despertar em suas almas a mesma coisa que habitava, também, na alma daquele dançarino. Não existiam nomes, teorias, fundamentos, regras, doutrinas e estudos que trancafiassem aquela essência invisível, e era esta que, naquele momento, o guiava insaciavelmente.

 

Sim, sabia a coreografia correta, treinou arduamente para esse momento, mas havia um detalhe que o desagradava nos passos de Rothbart: não conversavam com a música. Sentia como cada nota dramática enternecia seus movimentos, o instigando a redesenhar os passos, a provocar o seu corpo, a desafiar-se. Influenciado pelo sentimento, ergueu os braços e seguiu a sequência final de fa, mi, do, com um giro triplo em arabesque; finalizou em la e lentamente abaixou suas mãos para iniciar uma nova sequência de giros em fa, mi, ré, do, até, finalmente, encerrar com um double tour em si.

 

Eram segmentos absurdos que não apenas tiraram o fôlego do artista, como também da plateia, estarrecida, que levantou de seus assentos para aplaudir aquela maestria.

 

— Noverre, isso é loucura!

 

Exclamou o diretor, o mais discretamente possível, enquanto via o seu parceiro de júri aplaudir veementemente o homem misterioso dos palcos.

 

— Sim, isso é loucura! Esse homem destruiu um trabalho coreográfico de anos! Mas as suas sugestões são inegáveis, imprescindíveis — ele enfim conseguiu desviar o olhar dos palcos para o do diretor desiludido. — Qual o nome? Qual o nome dele?

 

Ao ouvir a pergunta, ele folheou a ficha que tinha em posse e buscou pelas informações principais. Olhou aqui, ali, arqueou a sobrancelha em total confusão.

 

— Não há nome algum. Na inscrição, ele se denominou…

 

O tal de Noverre tomou-lhe a ficha e buscou por conta própria. O seu olhar iluminado pelo que acabara de ver tornou a contemplá-lo nos palcos, recebendo a merecida glória.

 

— … o bailarino.

 

x ----- x

 

Era pelos jardins suntuosos da academia, entre os chafarizes e as árvores podadas em lúdicos formatos, que perambulava o bailarino que outrora encantou os funcionários daquele lugar. Em quase total unanimidade, sentia-se bem-vindo ali, sentia que havia finalmente completado as suas missões e realizado os seus sonhos.

Mas, bastou olhar para aquele véu celeste, consumido por estrelas, para lembrar que sua sina jamais o deixaria se sentir preenchido pela vida. Michael levou as mãos às costas e deixou seus pulmões respirarem o ar gélido daquele tempo frio de primavera, enquanto imaginava cada um daqueles pontos luminosos formarem as suas lembranças mais dolorosas de um passado que sempre retornaria para atormentá-lo.

 

— Uau! Olha as estrelas!

 

Seus olhos se abriram em genuína surpresa. Olhou para os lados, buscou de onde veio, parecia que era a voz dela.

 

— Olha!

 

Uma risadinha. Ele virou novamente e, enfim, encontrou-a longe, bem longe, segurando a mão de um moreno de pele ferida, cabelos curtos e desgrenhados, e ombros relaxados. Era tão real, parecia estar ali na sua frente, parecia contemplá-los por trás, admirando o mesmo céu.

Era uma lembrança dos seus tempos de criança. De quando voltou a ser, novamente, uma criança, e tinha como única escudeira a sua melhor amiga. Ela apontou e, embora o homem não pudesse ver o seu rosto, sabia com todo o seu coração que estava sorrindo de canto a canto.

 

— Por que tanto te fascinam os pontos no céu? — Michael sussurrou concomitante ao espectro, que indagava à pequenina animosa.

 

— Sempre que eu ia dormir, eu olhava pras estrelas da janela do meu quarto e contava todos os meus segredos e sonhos para a mais brilhante! E era sempre a mesma estrela, aquela ali — ela apontou como se houvesse o risco de deixá-la escapar. — É a minha estrela.

 

— Como sabe que é a sua? Essa não é a única estrela no céu que possui brilho tão ávido — disse o moreno, preenchendo suas íris escuras com o reflexo daqueles pontos luminosos.

 

— Eu sei que é — ela se manteve convicta —, porque o céu que eu tô vendo agora é o mesmo céu que eu via da janela. Ele é igualzinho. Não muda nada. A gente é que vai mudando…

 

Michael estremeceu com aquelas palavras, e despertou quando sentiu a pequena mãozinha dela apertar os seus dedos frios.

 

— Não quero mudar… Não quero que você mude — ela murmurou, ainda sem olhar em seus olhos. Aquele pedido nunca saiu de sua memória, todo o decorrer daquela noite nunca saiu de seus pensamentos. Michael guardou os medos de sua amiga no fundo de seu coração, todavia, agora, sentia que estava pouco a pouco os concretizando, e nada fazendo para lutar contra.

 

— Nem eu — disse em resposta, lembrava perfeitamente. Michael suspirou, não era esse o destino que queria para si, mas já havia ido longe demais. E não fazia diferença, pois a sua confidente e melhor amiga não mais o pertencia, não estava consigo, não era sua.

 

Ele estava a poucos passos de se tornar o melhor bailarino de Londres e do mundo, porém já havia aceitado que jamais poderia ser como o céu e as estrelas.

 

x ----- x

 

Porão, casa da família Jackson  – 17:43 hrs

 

As jóias de prata, os trajes de plumas e de outras cores, as luvas, os lenços, os cordões, tudo que havia usado naquele dia estava ali, abarrotado em um grande baú de madeira vermelha, pintado de verde fosco e talhado à mão. Michael deslizava os dedos por cada peça empoeirada, e cada uma lhe trazia uma lembrança diferente, sobretudo dos seus primeiros dias como dançarino reconhecido. Afastou-se da vida simples, dos parentes, dos amigos, e assim permaneceu sozinho.

 

Já não tinha mais esse medo, pois agora alguém havia reaparecido para trazer cor à sua vida cinza, e bastou ouvir a carruagem chegar que sentiu o coração palpitar mais uma vez.

 

— Enfim…

 

Colheu uma peça que separou para aquele momento e a cobriu com um pano escuro, em seguida se retirou daquela sala empoeirada e foi receber a menina no salão principal. Anelise chegou abatida, um tanto pálida, pensou sobre o que conversou com o pai durante todo o trajeto e temeu estar fazendo conclusões precipitadas, mas a chegada ansiosa de seu amado a preocupou em disfarçar o seu nervosismo. Era uma péssima mentirosa, entretanto, precisou agradecer ao que quer que estivesse colocando os pensamentos do homem em outro foco, pois ele apressou o passo em sua direção e, sorrindo, deu-lhe o que parecia ser um pano escuro envolvendo alguma coisa. Não lhe indagou nada.

 

— Vista. Vista depressa e me encontre nos jardins. Tenho uma surpresa para você.

 

— Ah, eu…

 

Ele beijou sua bochecha e se retirou, o que a deixou confusa e um pouco intrigada. Estava louca para confrontar o seu amado com a conversa crucial, porém, ao levar o presente para o próprio quarto e o revelar sobre a cama, percebeu enfim que não poderia questioná-lo agora, outra coisa se fazia importante no momento.

 

Vestiu-se, amarrou os cabelos em um coque e seguiu em direção aos jardins. Era perto do anoitecer, o sol já havia deixado completamente o céu e poucas estrelas se faziam presentes. As nuvens, grandes castigadoras de Londres desde os tempos da rainha Vitória, se encolheram em seus medos e se dispersaram para longe, buscando outras terras para atormentar. Anelise seguiu pelos caminhos esverdeados e abarrotados de rosas silvestres — as preferidas do casal —, quando encontrou, no centro daquele labirinto de folhas, o seu belo e amado bailarino vestido de preto, exatamente como lembrava a primeira vez que o viu. Sorrindo e esquecendo-se um pouco das informações periclitantes que ouvira, a ruiva caminhou até o homem, entrelaçou os dedos nos seus e, enfim, olhou à sua volta e contemplou a situação em que se encontravam: usava um body vermelho bordado de rosas com tutu cintilante, sapatinhos de mesma cor e uma meia-calça branca que realçava suas pernas, além de uma tiara em prata. Assim que seus olhos azuis retornaram aos do amado, ele continuou.

 

— Quero que dance comigo… mais uma vez.

 

Ela sorriu em resposta. Esperou que ele tivesse preparado uma melodia gravada ou entoada por um dos empregados, porém Michael decidiu dançar ao som da imaginação, como da última vez. Segurou sua mão, a guiou em passos calmos e, sem seguir uma coreografia específica, apenas munido dos seus conhecimentos sobre balé, incitou passo por passo. Anelise ousou caminhar sobre as pontas mais uma vez, deixou as mãos do seu amado conduzirem o seu corpo e deixou as suas pernas acompanharem a direção do vento. Então, dançaram por infindáveis instantes.

 

— Qual é a música que, agora, permeia os seus pensamentos?

 

Ele sussurrou em seu ouvido, o que instigou a ruiva a fechar os olhos e se deixar levar pelos seus movimentos.

 

— Ouço a melodia da sua voz, e o tilintar daquela mesma canção — ela respondeu, em seguida passou a entoar nota por nota. — "As pessoas dizem que não somos normais, por amar coisas tão elementares…"

 

"Tem sido nosso destino tentar compensar, a infância… que nunca tivemos."

 

Ele complementou, enquanto auxiliava a garota a dar um giro e pousar como um gracioso cisne. Anelise apenas abriu os olhos quando seu corpo finalizou com um inclinar para frente e, logo após, suas mãos buscaram o peitoral de seu amado. Levantou o rosto e encontrou o seu olhar.

 

— Cantei certo?

 

— Quase… mas esteve bem perto.

 

Ele deixou um riso discreto escapar, e Anelise não pôde deixar de retribuir. Ia dizer mais alguma coisa, porém as estrelas por trás do homem passaram a cintilar em suas memórias adormecidas.

 

— O que foi, Helena?

 

— Nada. Eu só… as estrelas me parecem amigas tão antigas. É como se eu olhasse para elas e conseguisse me ver pequena mais uma vez.

 

Ouvir aquelas palavras havia o feito refletir. Desviou o olhar para o alto e viu aqueles mesmos pontos luminosos cintilarem, os mesmos que havia visto anos atrás, em suas lembranças.

 

— Elas não mudam, não é? Nunca mudam…

 

Ele comentou, mas não teve resposta. Anelise arqueou a sobrancelha quando viu, bem distante, uma pequena nuvem se formar.

 

— Acho que vai chover…

 

— Vamos entrar. Mesmo que não chova, está ficando frio de qualquer forma, então é melhor voltarmos.

 

Ela concordou e o acompanhou mais uma vez para dentro de casa. Seguiram silenciosamente para o quarto. Ele fechou a porta e removeu pouco dos seus trajes de dança, apenas o suficiente para poder relaxar os músculos.

 

— Se importa se eu pular o jantar? Acho que vou dormir um pouco.

 

— Eu te acompanho. Também não estou com fome.

 

Disse a ruiva, enquanto removia o tutu e mantinha o body. Era no mínimo provocante, e não era problema algum para a garota. Engatinhou pelos lençóis e se deitou ao lado de seu bailarino, entrelaçou um dos braços pelo seu pescoço e lentamente buscou o conforto dos seus lábios. Michael relaxou o corpo, permitiu-se naturalizar aquele momento, levou a mão mais próxima à coxa dela e apertou carinhosamente, mas não foi além.

 

— Eu te amo…

 

Anelise sussurrou uma última vez, antes de aninhar-se em seus braços e deixar que uma de suas mãos afagasse os cabelos cor de fogo. Michael custou a dormir, permaneceu aceso por mais tempo que ela, até, enfim, ceder ao cansaço.

 

x ----- x

 

Naquela noite, Anelise teve um sonho.

 

Foi estranho, como qualquer outro sonho. Ela estava na festa de sua mãe, a famigerada festa do assassinato. As pessoas se divertiam, comiam e bebiam, e nada ruim havia acontecido até então. A ruiva caminhava por aí, com seu lindo vestido branco, enquanto desviava dos pretendentes inconvenientes que a condessa Matilda lhe arranjava. Lembrava de entrar em um salão cheio de adultos, de conversar com um casal irritante e de passar uma corriqueira vergonha devido às insistências matrimoniais.

 

— Com licença, senhores, damas, mamãe…

 

Buscou sair daquele lugar antes que as coisas piorassem entre os Marlborough e os Montebelo. Antes que alguém protestasse, virou o corpo em direção à saída, e foi nesse momento que seu olhar alcançou o de um lindo menino, de olhos verdes, próximo à porta.

Ela o fitou por longos instantes, não lembrava de vê-lo na festa. Como não lembrava? Era a única criança daquele lugar. Ele a encarou com tamanha vontade que mesmo vê-la deslocar-se veementemente não o impediu de segui-la com o seu olhar. Anelise tentou desviar a atenção, mas algo naquele menino não parecia certo. Bastou apenas atravessar o portão para os corredores escuros, que os feixes dispersos de sua memória reacenderam.

 

Havia visto esse garoto quando se deslocou para a casa do seu noivo. E não apenas isso. Retornou ao salão e buscou pelo adulto que o acompanhava. Era o pai, o barão Ortega, o homem que segurava a sua mão. Velho e ríspido, tudo em seu peito era banhado a ouro, inclusive um relógio. Um relógio ataviado de turmalinas azuis, com cordões dourados, ponteiros de fios de prata, algarismos romanos em ouro branco e sua singela rubrica pouco abaixo do centro. Olhar para aquele homem lhe causava ânsia, portanto seguiu em passos cegos e desesperados até os jardins dos seus sonhos, onde se encontrou com seu amado.

 

— Enfim! Michael, você não imagina…

 

Estagnou ao vê-lo lavar as mãos no chafariz, lembrava-se vagamente daquele momento. Ele não olhou para ela, olhou para a imagem dela, a outra ruiva que havia em suas memórias e que estava ali, um pouco distante. Anelise se afastou num segundo, encarou os dois como se estivessem maquinando um plano para atacá-la, todavia, sequer olhavam em sua direção. Ele calçou as luvas e, nesse instante, a ruiva pôde ver o mesmo relógio preso à sua cintura. Era idêntico, porque era a única coisa dourada no meio de tantos pontos prateados.

 

— Michael… por favor… por favor, me diga que não foi você…

 

Não houve resposta, era apenas uma memória. Anelise estava prestes a chorar quando percebeu todo aquele ambiente se desfazer até, enfim, conseguir despertar daquele cochilo desagradável.

 

x ----- x

 

Quarto do casal – 19:50 hrs

 

Despertou com um suspiro, a pele brilhando em suor, o coração pulsando freneticamente e as lágrimas a inundar o olhar.

 

A primeira coisa que fez foi convencer o seu coração de que aquilo havia sido um sonho, e mais do que isso, um sinal para não ignorar as suas prioridades. Olhou para o seu lado num instante, o viu adormecido e entregue à vulnerabilidade, viu naquela situação a oportunidade perfeita para assassinar as próprias dúvidas.

Sem dizer uma palavra sequer, levantou-se, buscou o relógio de prata em suas coisas e pôs um vestido branco de malha simples. Enfiou a prova no bolso e seguiu até o segundo andar, o lugar dos aparatos bizarros. Subiu as escadas, tinha como foco mental as gavetas abarrotadas de relógios de bolsos, todos indubitavelmente suspeitos, e foram rapidamente alcançadas por ela quando pôs os pés no chão ruidoso de madeira do corredor. Levou as mãos às gavetas e, num puxão, sentiu o sangue gelar quando encontrou cada centímetro quadrado, daqueles pequenos espaços, completamente vazio.

 

— Não!!

 

Exclamou, levando imediatamente a mão à boca. Não podia acordá-lo, devia continuar procurando. Seguiu pelo corredor, abriu todas as gavetas, portinhas e armários que localizava, vasculhou pelos vasos e quinquilharias, buscou até mesmo atrás dos quadros, e não encontrou nada.

Tomou o rumo do terceiro andar, onde nunca havia ido antes. Para cada um que acessava, ainda menos acolhedora era a decoração. As paredes não tinham cor, as ranhuras expostas eram um claro aviso de que ela não era bem-vinda ali, e os móveis desleixados, postos de qualquer jeito no ambiente, evidenciavam a negligência do homem com aquele ponto da casa. Anelise não conseguiu ignorar todos aqueles detalhes, mas não havia medo irracional em seu coração, apenas o receio lógico e objetivo de, por todos esses meses, ter amado e acreditado na mais pura concepção de ilusão.

 

Ainda debulhada em lágrimas, destruiu tudo pela sua frente sem temer os barulhos que fazia. Abriu gavetas, portas, caixas, armários, e não encontrou nada. Chegou no fim daquele caminho, invadiu o último quarto já absorvida em fraquezas, quando sentiu o arrepio ansioso da descoberta ao encontrar um lugar repleto de brinquedos. De todos que havia ali, de tantos que podia imaginar, um que estava jogado no centro daquela sala roubou-lhe toda a atenção.

 

Um quebra-cabeça.

 

— Não…

 

Murmurou, a voz fraca e quase rouca. Cedeu alguns passos para trás, mas assustou-se ao sentir as costas tocarem no peito dele. Sabia que era ele. Virou-se e buscou o outro extremo da sala, o medo se tornou raiva.

 

— … O que você fez?

 

Ele não respondeu. Anelise, já cansada de suas conversas mentirosas, puxou o relógio de prata do bolso, o que redobrou o alerta do homem, encarando-a com surpresa no mesmo instante.

Finalmente, e tão rápido quanto inesperado, ele indagou.

 

— O que isso está fazendo contigo?

 

— E o que isso importa? De quem é esse relógio, Michael?!

 

— É meu, me devolva.

 

Se aproximou, o que fez a mulher recuar no mesmo momento. Ela suspendeu o objeto, o segurou pela corrente e moveu para um lado e para o outro, como se estivesse exibindo um troféu. Todavia, o seu rosto apenas expressava a face da raiva.

 

— Quem é Hamish Casanova?

 

— Me devolva.

 

— Me diga uma coisa… me diga, francamente — ela trepidou, como se a adrenalina em seu corpo não a permitisse parar em um canto —, aquele quebra-cabeça é seu. Você estava lá — apontou para o objeto, sem tirar o olhar do homem à sua frente. — Você estava no dia em que eu fui separada do meu pai. Eu sei… porque eu conheço essa casa, eu conheço a sua antiga casa, mas não vi, até agora, o casarão de madeira dos meus sonhos. Era a casa do meu pai, não era? Você estava lá… com ele.

 

Michael não reagiu. Sequer conseguiu, sentiu o seu pomo-de-adão se movimentar, porém não abriu a boca. Não precisava, pois sua expressão fixa de pavor dizia tudo que Anelise queria saber.

 

— Você o matou…

 

— Me devolva esse relógio, Helena!

 

— Pare de me chamar de Helena!! Helena morreu!!

 

Michael suspirou, sentiu as mãos começarem a tremer e tentou disfarçar as reações que teve com o impacto de tais palavras. Seu cenho franziu em melancolia, o seu olhar passou a cintilar, mas conseguiu controlar a voz.

 

— Não fale essas palavras…

 

— Você mentiu pra mim. Você estava lá — ela murmurou, tentando a todo custo não embargar a voz. — Você lavou as mãos no chafariz… você tinha um relógio de ouro. Você não o tinha antes, eu lembro! Eu lembro quando dançou e ele não estava lá, em seu peito — engoliu seco, deixando aos poucos o nervosismo se apossar de sua garganta. Sentiu uma lágrima descer, silenciosa, e torceu para não desabar na sua frente. — Minta pra mim mais uma vez. Minta, se tiver coragem…

 

— Não diga que morreu. Por favor, Helena… O meu maior medo é te tirarem de mim…

 

— Você escondeu os relógios. De quem eram aqueles relógios, Michael? Quem é Casanova? Onde está o relógio do barão Ortega? — ela ignorou suas súplicas, tinha outras preocupações em mente. — Me diga…

 

— Helena — ele suspirou. Não parecia querer colaborar, mas cedeu os ombros ao peso, se sentiu encurralado. — Eu não posso te falar. Eu não posso perder você… Eu não quero perder você.

 

— Você já me perdeu.

 

Michael balançou a cabeça em negação, como uma criança contrariada, recusando-se a aceitar aquela afirmação.

 

— Não diga isso!

 

— Você matou esses homens! Como vai explicar isso?!

 

— Eu não posso falar! Eu não posso… Por favor, não me obrigue…

 

Levou as mãos ao rosto, ele sempre o fazia quando não queria enfrentar os seus medos, era um traço de sua personalidade frágil e infantil. Anelise ainda o amava muito, ainda tinha compaixão, mas a dor da decepção era maior e mais profunda do que a sua compreensão.

Ainda chorando, ainda cansada, ela continuou.

 

— … Por quê?

 

— Helena — ele murmurou, a voz enfraquecida. Algo dentro daquela história certamente o apavorava, sobretudo porque o seu medo e amor incondicional dominavam seu coração amargurado. — Eu não posso… Eu não posso! Por favor, me perdoe!

 

Inesperadamente, fugiu daquele quarto o mais rápido possível. A ruiva tentou segui-lo, mas as suas pernas estavam estagnadas de medo e estresse, ainda não conseguia aceitar toda aquela confusão — e compreendia, pois era doloroso demais ter as próprias suspeitas confirmadas, não queria sequer tê-las tido, sentia culpa por desconfiar do homem que possuía a chave do seu coração.

 

O amava. Doía tanto.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

[...] Sabia que havia um piano ali e uma opção para escolher: contar-lhe-ia a verdade ou insistiria na omissão. [...]

Não queria, mas devia. Ele sabia que devia. Ela não era sua Helena. Sua Helena estava no escuro da própria alma, trancafiada em uma memória, aprisionada por sua causa. Sabia que, em todos esses meses, por mais que tentasse despertar a sua Helena em Anelise, por mais que tentasse resgatar apenas a inocência e poupá-la da desgraça, sabia que era uma ideia fadada ao fracasso. A traria de volta, ela o odiaria, e aquilo terminaria de matá-lo por dentro, mas Helena só seria Helena se pudesse acessar todas as suas alegrias e traumas. [...]

— Por favor… por favor, Helena, me perdoe…



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