A Música Que Nos Une escrita por Aline Lupin


Capítulo 2
Capítulo 1




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Se havia algo na vida que poderia ser pior, era ter que escutar que estava errada e que se não fizesse tudo direito, seria jogada na rua. Anne respirou fundo e fez uma reverência a Sra. Armstrong e apenas assentiu.

— Sim senhora – ela disse, com a voz entrecortada.

Era uma lástima ter de se rebaixar tanto. Ainda mais quando estava de posse da razão. O jovem Armstrong não parecia querer aprender as lições básicas. E era uma criança de trato difícil, pois os pais reforçavam isso. Eram parentes do visconde Klaine e tinham algumas terras arrendadas. Viviam a margem da sociedade, apesar disso. Não tinha títulos e eram convidados para poucos eventos. Mas, poderiam pagar uma governanta. E Anne Williams havia se tornado uma, devido a sua boa educação. Seu pai havia cuidado disso. Para sorte dela. E Anne poderia ensinar francês e inglês perfeitamente. E algumas noções de básicas de aritmética. Além de gerenciar a arrumação da casa. Não era um lugar grande, então ela tinha uma função tanto de preceptora quanto de governanta.

Fora muito difícil se colocar nessa posição. Ela havia recebido uma recomendação de lorde Klaine, que por acaso tinha um interesse romântico na jovem. Mas, apenas para ser sua amante. Ele havia a ajudado a sair da situação calamitosa em East End. Thomas nunca mais voltara para casa e Klaine a espreitava há algum tempo. Ele andava com Thomas, mas havia se distanciado quando o casal se mudou para acomodações simples. Contudo, ele aparecia algumas vezes, tentando conseguir algumas migalhas de afeto de Anne. A jovem não cedia, pois amava Thomas. Mas, depois de se ver sozinha, correu para ele. Implorou ajuda e pediu para que a ajudasse com um emprego. Ele disse que poderiam ser amantes. Ele a sustentaria, mas Anne sentia um gosto amargo toda vez que pensava nessa proposta. Não iria conseguir servi-lo. Klaine não era um sujeito ruim, mas libertino e tinham amantes a cada dois anos. Ele já beirava os 35 anos. Conservado e muito bonito. Alguns cabelos brancos em meios aos fios negros e rugas em volta dos olhos escuros e endiabrados. Era um dândi, mas não um esbanjador. E Anne não aceitou a proposta leviana, pois sabia que seria descartada e não sentia nada por Klaine, mesmo ele a beijando. Ela deu seu beijo, mas se arrependera amargamente. Ele a levou para sua cama e a faz sua. Mas, depois, Anne chorou copiosamente, se sentindo suja e desesperada. Ela implorou que ele lhe ajudasse a encontrar algum lugar para trabalhar e ele deu isso a ela.

— Não precisava fazer isso, você sabe – ele dissera, amarrando o robe e colocando os chinelos. Anne havia puxado o lençol até o pescoço, se sentindo estranha e humilhada – Eu já disse que poderá ter o que quiser. Joias, roupas, uma casa. Só precisava me dar o que quero. E você é muito bonita, Anne. Esses seus cabelos são pura luxuria. E seus olhos, eu nunca vi um tom de azul tão esplendoroso. Thomas foi um tolo de não ter lhe dado o mundo. Eu daria a você.

— Até quando, Robert? – ela perguntara, amarga – Até que eu me torne velha e sem utilidade? Até quando eu gerar um bastardo e você me enxotar como um cão sarnento?

Ele rira, de forma cínica.

— Não faria tal coisa. Mas, você sabe, eu tenho apetites vorazes. E eu me cansaria sim, bem facilmente. Contudo, tenho apreço por você. Posso lhe dar segurança. E se acaso venha gerar um filho, eu mesmo cuidarei para que ele tenha uma boa educação. Mas, não meu nome. E você terá uma casa para morar. E luxo. Isso é tudo que qualquer amante poderia sonhar e pense que eu não sou tão misericordioso com as que passaram por mim. Quando eu acabo uma relação, prefiro não saber mais delas.

Anne não queria aquilo. Não era uma meretriz. Não julgava nenhuma delas, nem as amantes que sobreviviam assim. Mas, ela não queria isso. Não queria estar com um homem que não amava e ter que agradá-lo, por mais que Klaine fosse divertido e um amante gentil. Ela não poderia amá-lo e ele não poderia amá-la. E ela não queria ser um joguete em suas mãos. Quando conseguiu o emprego, sentiu-se mais honrada e sem o gosto amargo na boca. Mas, aqueles dois anos ali estavam a desgastando. Ela se vestia severamente, muito diferente do que fazia antes. E pintara seus cabelos de uma cor escura. As sobrancelhas eram um problema, pois eram claras. Mas, os cabelos escuros davam um aspecto severo e era isso que ela precisava. Não queria atrair olhares indesejados de nenhum homem. E começava a odiá-los devido ao seu marido. Ele simplesmente desaparecera e a deixara sozinha para enfrentar o mundo. Ela ficara desesperada, pois estava gravida. E ganhara seu filho já morto e sem vida. Aquilo a abalara profundamente. Não havia mais nada que a ligasse a Thomas. E pensou amargamente que era melhor assim. Nunca mais iria olhar para trás. E nunca mais iria confiar seu coração a um homem. Mas, desejava desesperadamente ter uma família e ter perdido seu primeiro filho, fora algo que a rasgara por dentro. Era como ter um punhal em seu coração, tirando sua vida aos poucos. Ela somente vivia para sobreviver agora. E nem seus olhos que eram pedras preciosas mostravam a alegria. Estavam frios e duros, como o inverno.

Ela suspirou, saindo para buscar a criança tola, que insistia em ficar do lado de fora da casa, sujando sua roupa imaculada. A lavadeira, senhorita Jonhson estava prestes a pedir as contas devido a quantidade de roupas que precisava lavar do jovem Armstrong. Jacob era um menino enérgico e ele gostava de contrariar as ordens. Principalmente para irritar a governanta e fazer com ela fosse repreendida pela Sra. Armstrong. Anne percebia que ele espreitava os corredores em todas as ocasiões que acontecia isso. O que era muito enervante. Seus olhos amarelos, como de um gato selvagem brilhavam e ele sorria sempre que Anne era repreendida. Estava claro que a intenção de Jacob era que ela fosse demitida de sua posição. Ele não iria obedecer a ninguém devido a fato de seus pais não terem imposto qualquer limite a criança.

Anne saiu porta a fora e observou o céu cinzento. O clima estava instável e não parava de chover. Era um outono gelado e úmido. Anne buscou com os olhos Jacob e encontrou ele no  jardim e o encontrou afundando as mãos em uma poça, batendo freneticamente. Ele parou assim que escutou os passos dela e se endireitou. Sua roupa estava imunda, ainda mais. E fora por esse motivo que Anne havia sido repreendida. A Sra. Armstrong não tolerava falta de decoro, e a mínima sujeira a irritava muito.

— Sr. Jacob, por favor, pare com isso – Anne tentou empregar seu tom mais severo possível para com uma criança de oito anos.

Jacob a fitou com desafio nos olhos ambares e mostrou a língua.

— Você não manda em mim. Eu faço o que quero – ele disse, em um tom autoritário, para uma criança. Se aproximou dela, empurrando-a com as mãos cobertas de lama e sujando as saias dela no processo – Quero ver você me pegar agora.

Ele saiu em disparado. Anne suspirou, desalentada. Não iria correr atrás dele. Ele era um menino selvagem e que não valia o esforço. Ela aprendera que não adiantava correr atrás dele, mas mostrar uma calma fria e uma fachada intransponível. Nunca iria erguer a mão para o jovem, mas naquele momento essa era sua vontade. Seu pai havia batido nela, sempre que ela agia mal. Mas, cada surra doía em sua consciência. Ela não queria lidar dessa maneira tão pouco civilizada, mesmo sendo algo comum. Ela sabia que algumas babas e governantas batiam nas crianças que estavam sobre a tutela delas. Com réguas, varas e com a mão. Era uma forma de disciplina brutal e que torcia o estomago de Anne. Ela jamais faria isso. Mesmo que estivesse beirando a loucura com Jacob.

Ele parou de correr assim que percebeu que Anne estava no mesmo lugar. Ele se agachou, pegando algo no chão. Ela não conseguiu ver, mas logo soube o que era, pois um objeto era arremessado das mãos pequenas de Jacob. Ela conseguiu desviar a tempo do projetil. Era uma pedra que acertou a vidraça da janela da sala de estar. Aquilo fervilhou o sangue em suas veias. Ela andou em passos firmes e decididos até ele, que parecia de certa forma arrependido.

— Como ousa fazer isso? – ela trovejou.

Jacob se encolheu e olhou para os próprios pés.

— Poderia ter acertado minha cabeça. E teria um ferimento grave. Tem ideia do que acabou de fazer? – ela apontou para a janela – Sua mãe ficara irada comigo e não com você com certeza, meu senhor. É uma vergonha como estou sendo tratada. Que espécie de cavalheiro o senhor é?

Ele não lhe deu ouvidos, saindo correndo para dentro de casa. Anne suspirou, desalentada e sentindo a raiva borbulhando na superfície. Era como uma panela quente, fervendo a água, que estava prestes a entrar em ebulição. Anne estava prestes a estrangular o jovem Jacob. Não queria mais ficar naquela casa. Sentia suas forças se esvaírem. E ainda teria que explicar sobre a vidraça. Não precisou nem esperar mais dois minutos. A Sra. Armstrong saiu da casa, descendo as escadas, com um olhar dardejante.

— Aí está você – ela disse, com um tom condescendente – Quero que ajude a baba Thompson a deixar Jacob apresentável. Teremos um jantar essa noite – Ela deu as costas a Anne e parecia ter visto o vidro quebrado da sala. Anne respirou fundo, esperando a reação de sua patroa. A sra. Armstrong se virou novamente, com um olhar irritado – E não pense que vou me esquecer disso – ela apontou para a janela – Eu estou farta de Jacob se comportar como um selvagem. A senhorita está se mostrando pouco eficiente para controlar isso dentro dele.

— Eu teria mais eficácia em meus métodos se a senhora conversasse seriamente com ele e não aprovasse sua maneira de me tratar – Anne disse, lentamente, sentindo a indignação.

A sra. Armstrong ficou vermelha. Seu olho direito piscou, como se ela estivesse tendo um tique nervoso. Era uma mulher com a pela avermelhada, de cabelos escuros e olhos castanhos. E muito magra. Não era uma visão lisonjeira colocar os olhos nela.

— Sua insolente! – ela disse, com a voz alterada – Eu lhe dou emprego e assim que me trata? Se eu a contratei, é porque acreditei nos seus métodos, senhorita Williams. E sua conexão com lorde Klaine não irá salvá-la, pode saber disso – ela apertou os punhos em riste, se aproximando de Anne. Seu olhar era intenso e parecia enviar farpas contra a jovem – E pode saber que se mais alguma coisa assim, você estará na rua, sem qualquer recomendação. Eu espero que isso não aconteça de novo e que modere sua língua. Estamos entendidas?

Anne engoliu seco, sentindo o estomago queimar. Ela queria simplesmente largar o posto e sair gritando. Ou acertar a face da sra. Armstrong.

— Estamos entendidas? – ela repetiu, com aspereza.

— Sim senhora – Anne respondeu, desviando o olhar.

— Ótimo. Agora, vá ajudar a baba Thompson.

Enquanto a patroa de Anne entrava na casa, a jovem se sentia muito irritada e contrariada. Ela queria de alguma maneira sumir. Mas, como? Ela não tinha para onde correr ou o que fazer. Ela teria que se sujeitar a ser amante de Klaine, o que estava fora de cogitação. E sem referências, ela não tinha nada. Londres era cruel com as pessoas que estavam a margem. Ela resolveu não pensar nisso, pois precisava continuar seu trabalho. Entrou na casa e passou pela entrada, indo direto para o segundo andar da casa. Foi até o quarto de Jacob e encontrou a baba em apuros. Ele se recusava a entrar na banheira jogava água nela.

— Jacob – repreendeu Anne.

O menino estacou, olhando para a governanta com um olhar assustado. Anne fechou a porta em uma batida forte. A baba se encolheu.

— Senhorita, eu tentei fazer com que ele entrasse no banho, mas está impossível – ela disse, com um olhar agoniado.

— Tudo bem, senhorita Thompson – Anne disse, com um olhar que dizia que ela estaria no controle. O que ela não estava. Até que teve uma ideia – Jacob, preciso que você entre na banheira e tire essas roupas imundas. Pode fazer isso para mim?

O menino fez um beiço e cruzou os braços, com o queixo erguido.

— E por que eu faria isso? – ele perguntou, de forma insolente.

— Não deve tratar os mais velhos dessa maneira – Anne repreendeu – Mas, o senhor poderia fazer isso? Eu sei que gosta de doces e posso arranjar para o senhor.

Thompson a fitou de esguelhar.

— Senhorita, não pode...- ela tentou argumentar.

Anne não poderia dar doces ao jovem Jacob. Isso seria um problema. Era a única restrição da sra. Armstrong, que não tolerava doces em sua casa. Isso pelo fato de ter pavor de engordar, como suas parentes. Todas elas tinham uma constituição robusta, muito diferente da sua patroa. E Anne queria explicar isso a ela. Que não importasse o que ela fosse comer, ela nunca iria engordar, não na mesma proporção de que suas parentes.

A proposta de Anne parece ter surtido efeito. Jacob a fitou desconfiado e descruzou os braços. Parecia pensar.

— E posso confiar em sua palavra? – ele perguntou, com os olhos calculistas.

— Pode. É palavra de honra – Anne disse, séria.

Ele parecia relutar.

— E por que eu devo tomar banho? Por que mamãe pediu isso? – ele perguntou.

— Eu não sei, senhor. Ela apenas me pediu para ajudá-lo – Anne respondeu.

 Jacob assentiu e deixou que a baba tirasse as roupas dele. Ele entrou na banheira, muito carrancudo, enquanto Anne pegava roupas limpas para ele e deixou sobre a cômoda. Pegou as trouxas sujas do chão e foi até a lavanderia, deixar com Sara Jonhson as roupas. Quando apareceu, ela fez uma careta. Estava esfregando com a escova um casaco azul marinho. Era do Sr. Armstrong.

— Aquilo menino está me tirando do sério – disse ela, azeda – Eu detesto ter que lavar suas roupas. Ele as encarde de uma maneira que é quase impossível tirar as manchas.

Anne suspirou, puxando uma cadeira velha e se sentando.

— Eu sinto muito, Sara – ela disse, massageando as têmporas – Eu não sei o que fazer com ele. Juro que tentei de tudo. E se ele fizer mais uma diabrura, eu estarei na rua.

Sara fez uma careta.

— Eu sinto muito, Anne – ela disse, com pesar, largando o casaco sobre a mesa – Eu queria poder ajudá-la. A senhorita é sempre tão gentil e amável. Todos nós gostamos de você.

Anne fungou, se sentindo derrotada. Ela não sabia mais o que fazer e queria uma fuga.

— Eu sei que gostam. E eu também adoro cada um de vocês. Bem, os patrões são insuportáveis, mas a companhia do senhor Angus, de Matilde e da senhorita Thompson é reconfortante. Eu não queria ter que partir.

Sara se aproximou, pegando a mão dela, com um olhar compreensivo.

— Eu sei que é difícil. Você até que está durando nesse cargo – ela disse. Anne acabou rindo disso – É verdade. As outras saíram correndo do jovem Jacob. Ele é um diabinho. Mas, eu entendo se você se for. Será triste, mas acho que posso ajudá-la.

Os olhos de Anne reluziram. Ela queria muito ir embora. Mas, será que não seria igual em outro lugar? Será que ela encontraria um patrão depravado, que gostaria de tirar vantagens dela? O Sr. Armstrong quase fez isso, mas Anne se esquivava sempre. E ele não ficava muito em casa, sempre com seus negócios. Não que um cavalheiro pudesse trabalhar sem ser malvisto, mas Armstrong tinha uma empresa de botões. E isso que dava uma renda muito boa para ele. Mas, o Sr. Armstrong administrava tudo com as mãos de ferro e não gastava com bobagens, para o desgosto de sua esposa.

— E como você pode fazer isso, Sara? – perguntou Anne, esperançosa.

Sara piscou, com um sorriso.

— Bem, eu soube pela minha irmã, que trabalha em um hospital para doentes mentais, que um cavalheiro, o Dr. Collins, está buscando uma governanta. E ele precisa muito. Parece que ele recolheu uma criança que foi deixada lá. E ele não sabe o que fazer. Mas tem há um problema – Anne suspirou. Sempre havia um problema – Todas as governantas fugiram de lá. Parece que a criança é complicada. Ele não apresenta nenhum problema físico, mas age como um animal. Ela come com as mãos, e nem sequer fala.

Anne ficou horrorizada. O que haviam feito com a pobre criança?

— Ó, isso...é complicado – ela disse, mordendo os lábios – Quem poderia ser a pessoa desalmada que fez isso com essa criança?

Sara deu de ombros.

— Eu não sei. Meg não sabe também. Apenas sabe pelos rumores que se espalharam no hospital. A criança foi deixada na porta. E parece ter uns cinco anos. Tinha cabelos muito grandes e as unhas pareciam garras. Suas roupas eram trapos que mal cobriam o corpo. É realmente lamentável.

Anne sentiu seu coração partido. Quem poderia ter feito isso com aquela pobre criança? Que espécie de ser humano fazia esse tipo de coisa? Deixar uma criança indefesa sozinha no mundo e naquela situação tão degradante.

— Bom, eu não sei se adiantaria para você. Mas, o Dr. Collins é um homem justo. Meg já trabalhou na casa dele, como criada. E conseguiu a posição que está hoje no hospital graças a ele. É muito sério e exigente. E acredito que você teria as qualidades que ele está buscando em uma governanta - Anne sorriu, sem graça – É verdade, Anne. Você é esforçada. Se está lidando com o jovem Jacob, talvez possa lidar com aquela criança.

— Eu não sei, sinceramente – ela disse, receosa.

— Bem, pense nisso. Ele estará aqui essa noite. É amigo do Sr. Armstrong – ela disse – E se eu fosse você, tentaria falar com ele.

Anne piscou, abismada.

— Eu? – ela perguntou, atônita – Nós nem fomos apresentados. Como acha que vou fazer isso? Hein?

— Você vai ter que ficar na sala, observando o pequeno Jacob. O médico adora o garoto. Ele deveria comer na ala das crianças, mas essa noite vai ficar na sala de jantar.

Era terrível demais para ser verdade. Uma criança em meio aos adultos sempre causava vexame. Ainda mais Jacob, que atirava a comida nas paredes, como se ainda fosse um bebê pequeno. Mas, se o Dr. Collins gostava da Jacob, então ele deveria saber qual era o gênio do menino. Depois daquela conversa, Anne voltou a quarto de Jacob e ajudou a baba a colocar o traje dele. Jacob a fitava com expectativa.

— Quando eu vou ganhar meu doce? – ele perguntou, com um ar autoritário.

— Quando o senhor se portar bem a mesa e comer direito – Anne disse – E parar de me tratar com desrespeito.

Jacob bufou, fazendo uma careta de desagrado. Suas sobrancelhas escuras cerraram.

— Isso não é justo. Eu só tomei banho e coloquei essa roupa que pinica para ganhar o doce – ele esperneou, batendo o pé contra o chão atapetado.

— Pois, vai ficar sem, se não se comportar – Anne ameaçou.

— Humf! Eu vou fazer o que está pedindo, mas eu quero meu doce agora – ele disse, a fitando com intensidade.

Que Deus a ajudasse. Aquele menino seria impossível quando fosse mais velho. Iria tomar tudo que queria, inclusive o coração de donzelas desavisadas.

— Não mesmo, Jacob – ela retorquiu, severa – Você vai se portar a mesa. Vai se comportar. Ira comer corretamente, como eu lhe ensinei. E então – ela pegou do bolso seus caramelos, que havia comprado pela manhã, mostrando a ele o pacote – vai ganhar as balas. Mas, somente se for comportado.

Ele grunhiu, em desaprovação, cruzando os braços com força. Fitou-a com raiva e Anne continuou olhando com severidade. Queria que ele desviasse o olhar primeiro, assim mostraria quem era superior naquela relação. Não sabia mais o que fazer e esperava mostrar autoridade diante do garoto. E perceber que recompensas o faziam se portar, já era um avanço e tanto para ela, mesmo que fosse errado fazer aquilo. Se ela usasse daquele método outras vezes, poderia reforçar a ideia de que ele poderia ter uma recompensa se fizesse o que estavam mandando ou pedindo. O que não era nada bom. Ele sempre iria querer ter uma relação de troca com seus semelhantes e não era isso que ela queria ensinar. Mas, o que ela poderia fazer agora, por Deus?

Os olhos intensos foram trocados diante de uma baba perplexa. Logo Jacob baixou os olhos, mas seu rosto era uma carranca.

— Tudo bem – ele disse, em voz irritada – Mas, se eu não ganhar meu doce até o fim do jantar, vou pegar a comida com a mão e acertar você.

Anne tentou segurar o riso. Era tão difícil ficar séria com Jacob. Ele falava coisas que deveriam ultrajá-la, mas sua voz era doce e infantil. Suas ameaças não surtiam o efeito desejado. Bem, somente as vezes, quando ela se descabelava e queria dar umas boas palmadas nele.

— Prometo que não descumprirei minha palavra. Mas, seja um cavalheiro, Jacob. Não pode tratar seus superiores assim – ele a fitou com esgar – E nem me fitar dessa maneira, desdenhosa. Eu sou uma dama e não se deve tratar as damas dessa maneira.

Ele bufou, mas assentiu. Era um avanço.

— Muito bem, nós vamos agora para a sala de jantar – ela disse, agarrando o menino pelo braço fino.

Eles saíram do quarto e desceram as escadas, com a baba de reboque atrás deles. Chegaram a sala e o Sr. e Sra. Armstrong estavam presentes, junto com um cavalheiro de cabelos loiros e um bigode em tom loiro escuro. Ele parecia distinto e tinha um olhar sério. Anne ficou tensa, pois o olhar dele se dirigiu a ela. Eram impessoais. Um azul cinza, que não transmitia calor. Ele baixou os olhos para Jacob e um sorriso se formou em seu rosto, suavizando sua expressão séria.

— Então, aí está meu rapaz – ele disse, contente.

— Espero que dessa vez você se comporte a mesa, Jacob – disse o Sr. Armstrong, em uma advertência – E não nos envergonhe, por favor.

Jacob reprimiu um muxoxo e sentou-se ao lado do cavalheiro de cabelos loiros.

— Olá, Dr. Collins – ele disse, sereno.

Anne arregalou os olhos. Ficou mais recostada a parede, junta da baba Jonhson e do lacaio que aguardava as ordens dos seus patrões. Ela não conseguia acreditar que Jacob estava tão manso e gentil. Era quase impossível vê-lo daquela maneira. Ela só o viu assim quando ele cairá no chão e ralara o joelho. Ela cuidou dele, com carinho, enquanto sua mãe o tratou com frieza. E ele se agarrou a ela com tanta força, chorando. E ele sorrira para ela, depois disso, quando ela lhe dera um de seus caramelos, para que ele se distraísse.

— Como vai meu jovem? – Dr. Collins perguntou, com um sorriso amplo.

Anne engoliu seco. O sorriso dele era bonito, por baixo daquele bigode. E seu rosto era jovem, apresar das rugas de expressão no rosto. Ela ficou curiosa para saber mais sobre ele, mas se contentou em apenas observar a cena doméstica.

— Vou bem, senhor – o menino respondeu.

— E como está seus estudos? Faz tempo que não o vejo – o doutor disse – Quando nos vimos pela última vez, você atirou comida por toda parede.

Jacob ficou vermelho. Era bom vê-lo ficar envergonhado, Anne pensou.

— Eu sinto muito – ele respondeu, com a voz firme – Não farei isso de novo.

— Isso é bom – Dr. Collins disse, com um sorriso – Espero que não tenha dado trabalho para sua governanta. Só eu sei o quanto dei trabalho para as minhas.

A risada dele ecoou, juntamente com a do Sr. Armstrong, que parecia ter achado engraçada a piada. Anne ferveu por dentro. Só ela sabia a irritação que passava com o menino. E rir daquela maneira só mostrava que Collins não se importava de fato com isso.

— Realmente, somos impossíveis quando crianças – Sr. Armstrong concordou – Eu coloquei um sapato na cama da minha governanta. E já tosei os cabelos dela. Não que eu esteja dando ideias a você, Jacob – ele olhou para seu filho, com um ar de advertência.

Jacob parecia outra criança, apenas assentindo. Anne não conseguia acreditar naquela mudança. E logo que seus olhos encontraram a mesa, percebeu que Collins a fitava, com curiosidade. Ela ficou desconsertada e desviou o olhar, mas tinha a inquietante certeza de que ele a fitava ainda. Logo foi dispensada com a baba pela Sra. Armstrong, para seu alívio. Aquele homem a deixava em um estado eufórico e desconcertante. O olhar dele era analítico e penetrante. Ela não queria ficar diante dele toda a noite. Caminhou para a cozinha e jantou com seus colegas. E depois se encaminhou para a sala de estar e ficou, com seu livro. Iria aguardar ser chamada novamente para levar o jovem Jacob para a cama.

O tempo passou rápido para ela, enquanto lia um romance doce. Era a história de uma jovem que se apaixonava por um cavalheiro acima da sua classe social. Ela amava aquela história escrita por By a Lady. E ter consigo aquele exemplar com Klyne fora o melhor presente que ganhara. Lorde Klyne poderia ser um libertino e muito direto naquilo que queria, mas se mostrou um bom amigo. E isso pelo fato de não a importunar mais. Apenas enviava cartas querendo saber de sua saúde e como ela estava. Ele parecia solitário, ela pensou. E pela primeira vez ela tentou entender suas ações. Klyne sempre fora sozinho. Seu pai havia morrido cedo, devido a vicio em bebida. E sua mãe era uma mulher que apenas gastava o dinheiro que recebia do marido, sem se preocupar com Klyne. E ainda era assim. Klyne nunca teve uma figura paterna que lhe guiasse, não uma figura que lhe ensinasse bons modos. E sua figura materna era distante. A viúva lady Klyne não parecia ter um afeto sequer para seu filho. O que era triste. Anne pensou que talvez, Klyne precisasse de uma esposa para preencher seu vazio interno e se imaginou naquele lugar, mas é claro, ela nunca teria essa oportunidade. Estava sendo ambiciosa demais. Já era uma mercadoria estragada, sem virtude. Nem ao menos se casou com Thomas. Além de não ter um dote. Lorde Klyne nunca a olharia assim, com afeto. Nunca iria propor a ela. E pensando friamente, ela não sentia nada por ele. Apenas pena. Pena do homem que ele era. E o quanto ele parecia sozinho. A solidão era algo que a assustava, e ela reconhecia isso nas pessoas. Sabia como era o olhar delas. A expressão de angústia. Ela vira isso no Dr. Collins. Ele tinha aquela expressão, mas ela teve apenas um vislumbre. Talvez, tivesse imaginado isso.

Ela suspirou, fitando as chamas que crepitavam, quando escutou passos no corredor. E depois, a figura do médico estava na porta. Ele a observou, com um olhar vago. Ele parecia distante e quando a viu, ele se assustou. Mas, rapidamente endireitou as costas, cruzando os braços atrás de si. Ela se levantou, desajeitada. Jacob deveria ir para a cama, ela pensou, nervosa. A presença de Collins era enervante para ela. Era como se o ar da sala ficasse intenso demais, sufocante demais. Ela se viu prendendo a respiração e com as pernas engessadas.

— Desculpe-me, senhorita – ele disse, com um olhar tenso – Eu não sabia que estava aqui. Deve ser a governanta, senhorita Williams, eu presumo.

Ela assentiu, sem saber o que falar.

— Eu não queria incomodá-la – ele disse, parecendo desajeitado.

Ela ficou parada, esperando que ele saísse da porta. Mas, ele não fez um movimento para deixá-la passar.

— Não há incomodo algum – ela disse – Eu preciso ver Jacob. Ele deve ir para cama agora.

Ela tentou passar por Collins, mas ele a segurou pelo antebraço.

— Não precisa – ele disse, a fitando com curiosidade – Ele já foi com a baba Thompson.

Ela recuou, retirando o braço. Queria tomar distância daquele homem. Ele era um estranho. E ela não queria contato com ninguém.

— Eu preciso ir – ela disse.

— Sim, a senhorita já disse isso – ele falou, em tom jocoso. Ele sorriu amplamente.

E era como se tudo brilhasse. Era o mesmo sorriso que recebia de Thomas. Um sorriso que parecia queimá-la por dentro. Ela se sentiu tola e vulnerável e sua expressão se tornou uma carranca. Esperava assustá-lo assim, mas não surtou o efeito desejado.

— Então, senhor poderia me dar a passagem? – ela perguntou, impaciente.

— Sim, é claro - Ele piscou e se afastou.

Ela saiu, apressada, se afastando dele, o máximo possível. Seu coração estava palpitando, se sacudindo, como se a mera presença daquele homem pudesse despertar sentimentos intensos nela. Ela não iria nomeá-los. De maneira alguma. Já sentiu aquela sensação. Thomas a deixava assim, a flor da pele. Como se precisasse tocá-lo e beijá-lo. Sentir seu toque e seu amor. Jamais sentiria isso de novo. Jamais.

 


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