Cinco Vidas escrita por Anna Carolina00


Capítulo 12
Pride and Crown - parte 1




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Punho abotoado. Colarinho engomado. O tecido de linho lhe cobria o corpo como uma misteriosa armadura lhe convergindo a uma postura austera. Nicholas não sabia se gostava daquele ser que se refletia no espelho, mas não podia fugir de si mesmo.  Era filho de um duque, sua herança consanguínea jamais poderia ser quebrada, assim como sua responsabilidade para com a família real.

—Como se sente, vossa excelência? 

Seu mordomo lhe questionou enquanto alinhava uma última vez o lenço em sua lapela. Seu sorriso discreto também se refletia no espelho. Essa imagem, sim, agravada o herdeiro.

—Me sentiria melhor se me tratasse pelo meu nome, Charlie.

O moreno riu da expressão jocosa do mais velho.

—Precisa se acostumar com esse tratamento, Nick. Já  não será mais apenas o segundo na linha de sucessão do condado de Arran. Se vossa excelência, seu irmão, firmar o acordo com o duque Heaney, você estará a um passo da Câmara dos Lordes. Um passo de fazer parte do Parlamento… Isso é… Realmente… Desculpe, eu não devia me intrometer. Só quero que se sinta bem no jantar de hoje, vossa excelência.

O acordo, por mais prático e vantajoso que possa parecer nas palavras de Charlie, era nada mais, nada menos que um casamento arranjado de Nick com a filha única do Lorde Heaney, Imogen. O acordo mudaria completamente seu destino. Para sua família representa mais apoio no Parlamento, mas para ele… Significa passar o resto de sua vida ao lado de uma mulher escolhida por seu irmão. 

Nick sentiu um toque reconfortante em seu ombro.

—Imagino o que está pensando, mas você conhece Lady Heaney.  Estudaram juntos latim, ensinei  geometria a ambos quando eram pequenos. Lembro de serem amigos. Por que sente tanto receio?

O loiro lhe encarou por um par de segundos pelo espelho buscando forças para revelar seus desejos… Mas o medo lhe fez abaixar os olhos, como sempre.

—É complicado, Charlie.

Duas batidas na porta. Era o sinal, hora de descer e encarar o futuro que lhe aguardava ao redor da mesa de jantar. 

Antes de sair do quarto, Nicholas gastou toda a coragem acumulada para segurar na mão de Charlie e dizer:

—Preciso falar contigo. Depois do jantar, por favor.

Antes de ouvir a resposta ou perceber o rosto corado do moreno, o jovem nobre se direcionou à porta. Sem trocarem mais olhares, o moreno se prestou a abrir a porta enquanto encarava o chão e viu apenas a silhueta austera passar pela porta seguindo em direção às  escadas.

* * *

Suas pernas tremiam. É claro que era bobisse criar devaneios a respeito do que Nick… Ou melhor, vossa excelência, gostaria de conversar. Tentou , sem sucesso, fazer a sua própria refeição na cozinha do Castelo de Gore, mas mal tocou na comida. Com pontualidade, sabia o momento em que deveria se dirigir para o quarto do herdeiro mais novo para lhe ajudar a se preparar para dormir. 

  Esperava em pé, sabendo que o guarda do outro lado abriria a porta para o loiro. As paredes de cores pastéis causavam um efeito estranhamente sufocante e amedrontador. Podia ouvir o leve ressoar de tique e taque vindo do corredor. 

Nick devia estar aproveitando a companhia de Imogen na sala. Talvez a ouvindo tocar piano, ou contando suas histórias de equitação. Conseguia imaginar ambos brincando com Nellie, a cachorra de estimação de Nicholas. Quem sabe um encontro agradável como esse sane suas dúvidas sobre o casamento. Era o que Charlie se esforçava para imaginar, um final feliz para os receios atuais. Enquanto se distraía em tais pensamentos, foi pego de surpresa com a porta se abrindo. 

—Oi.

—Oi!

Porta fechada, estavam novamente sozinhos.  A última rotina entre Nick e sua companhia pessoal consistia em lhe ajudar a se despir para enfim se dirigir à cama. Sem trocar mais palavras, apenas seguiram os movimentos automáticos. Primeiro as abotoaduras, então Nicholas arqueia os braços para que Charlie retire seu paletó. Os botões do colete são desfeitos quase que em câmera lenta e sem troca de olhar. Mas naquela noite, o ato soava ligeiramente diferente para Nick, talvez mais… Íntimo do que se lembrava de outrora.  

Sobrando uma fina camada de tecido branco sobre seus braços fortes, Charlie desafivela o cinto e num movimento delicado com as mãos, o leva a se sentar na cama para tirar suas botas. 

Tudo soava como uma tradição executada toda noite de jantares especiais como aquela. Charlie sempre o tocava daquela forma, mas algo nessa noite lhe intrigava… Por que sentia sua pele arrepiar daquela forma? Por que… Apreciava essa sensação?

As últimas peças seriam retiradas para que o nobre vestisse sua roupa de dormir, mas antes que seu peitoral fosse descoberto, Nicholas o cortou:

—Charlie… Precisamos conversar.

—O que quer falar, vossa excelência?

—Sabe que não gosto que me trate assim.

—Eu sou seu criado… É como devo lhe tratar.

Nick tentava enxergar algum rancor em suas palavras, mas não havia nada. Charlie parecia irredutível quanto a manter essa postura, mas o loiro sabia como o fazer deixar as formalidades de lado.

—Já viu o céu de hoje? Está uma noite fresca… Podíamos conversar na varanda, como nos velhos tempos.Como amigos.

Charlie sorriu. Adorava olhar as estrelas com Nick desde que ambos eram apenas crianças. Mais que tutor e aluno, sentia que naquele momento eram realmente amigos.

Logo passaram pela porta da varanda com uma grande coberta para forrar o chão. Deitaram com os olhos voltados para a imensidão escura pincelada de pontos brilhantes. Ao longe, uma gigantesca esfera redonda cintilava roubando toda a atenção para si.

—Dizem que os americanos planejam chegar à lua.

—Ou os russos!

—..Ou os russos, de fato. Quem vencer essa corrida certamente vai ganhar a atenção do resto do mundo de uma vez. É uma pena que não sejam os ingleses... Eu adoraria fazer parte de algo grandioso assim.

—Vossa e… Digo, Nick, você também está trilhando algo importante. Fazer parte do Parlamento. Isso … Realmente pode mudar a vida das pessoas, daqui e de todo o Reino Unido!

— Como meu irmão faz?

Um ponto delicado a se apontar. Charlie e Nick concordavam que Arthur, o irmão mais velho de Nick era conservador demais e apoiava ideias igualmente retrógradas no Parlamento. Não era atoa que insistia no casamento com Imogen, o alinhamento de sua família era igualmente conservador e juntos teriam mais forças para manter o status quo.

—No fundo eu sei que ele  vota pelo que acredita ser certo… Ainda que passe dos limites.

—Bem, você não seria assim. Tenho certeza que votaria pelo que as pessoas realmente queiram e precisem no momento. Seria um bom representante dos interesses das pessoas…

— Como eu faria isso? Sequer os conheço! Sequer sei o que eu quero da minha vida… Agora vou me casar sem ter vivido de verdade, sem ter … Você sabe… Sentido coisa que um… Homem… Devia sentir…

Um silêncio constrangedor. Por sorte, Nicholas olhava para cima, ou notaria o rosto corado de Charlie ao seu lado lhe vendo de esgueira e tentando imaginar do que esse viver de verdade se tratava.

—Charlie… Era o que eu desejava falar contigo. Um pedido, na verdade.

— O que desejar, Nick. Estou aqui para lhe servir. 

—Não. Não como um serviço, mas como um… Amigo. Bem, você tem uma vida longe do castelo. Família, amigos… Talvez já tenha namorado...  - o moreno congelou ao ouvir esse comentário - Eu sequer fui beijado na vida. Não consigo nem fingir que estou preparado para me casar sem saber como é beijar alguém. O que eu deveria fazer, o que deveria sentir...

— Não é tão complicado assim, Nick. Você não tem que saber essas coisas. Só precisa…Deixar suas emoções falarem por você. Querer mostrar o que sente e receber o que alguém sente por você. O beijo é um jeito de demonstrar isso.

O loiro cobriu os olhos e manteve  em mente aquilo que há tempos queria pedir e essa poderia ser sua última chance.

—Quero beijar você, Charlie Spring. Para entender essa troca de sentimentos. Eu não estou pedindo que tenha esse tipo de sentimento por mim. Eu só… Vou enlouquecer se continuar apenas pensando em como é.

Em outras circunstâncias, o jovem Spring poderia alegar que o mais velho está delirando e sair imediatamente do quarto, mas ele o conhecia muito bem. Se chegou ao ponto de pedir algo assim, é porque era importante.

Ainda escondendo o próprio rosto, o loiro clamou.

—... Eu não tenho mais ninguém para pedir algo assim, Charlie. Por favor! - sentindo uma sombra se formando sobre sua face, abriu os olhos mais uma vez vendo o rosto de Charlie acima do seu. Ele também parecia nervoso com isso, mas mantinha a serenidade para ajudar Nick a se acalmar - Charlie… Será nosso segredo, eu juro.

Então Charlie o beijou de maneira despretensiosa. Tocando os lábios e sentindo um sabor adocicado inebriar sua mente. Queria poder dizer que apenas o fez para ajudar o amigo, mas não conseguia mentir como aquele beijo o fez se sentir num aconchegante abraço, como queria abraçar também.

O que pareceu parar o tempo, se encerrou em poucos segundos.

Nick sentou lado a lado com Charlie e ambos se encararam sem trocar palavras. Como se soubesse exatamente o que fazer, a mão do loiro seguiu para os cachos negros lhe guiando para mais um beijo, dessa vez mais longo e consciente do que faziam. O corpo do nobre era quente e Charlie podia sentir  ao se apoiar em seu torso. Uma leve mordiscada nos lábio do loiro o fez arrepiar completamente. Aquilo definitivamente não era um beijo apenas  por “amizade”. Havia desejo e insegurança envolvidos, deixando-os sedentos por prolongar até que…

Batidas na porta.

Devia ser o guarda, estranhando a demora para o mordomo sair. 

Assustado pelo impulso, Nick se levanta abruptamente e se dirige à própria cama.

—Agradeço-pela-ajuda-agora-devo-dormir-boa-noite!

Se enrolando na própria coberta escondendo o rosto, restou a Charlie o papel de recolher a coberta no chão, fechar as cortinas, desligar a luzes e sair do quarto desejando um último:

—Boa noite. Durma bem.

* * *

Mais um dia começa. Mais uma rotina de cuidados com o jovem herdeiro do ducado. Charles acordou cedo, como sempre, para garantir que tudo saia como esperado. Quando é chegada a hora de acordar Nicholas, o guarda prostrado em sua porta, o mesmo da noite passada cuja a troca da guarda ainda não ocorreu, informou que por ordens de vossa excelência, seus compromissos diários deveriam ser cancelados por motivos de saúde.

Charlie riu, apesar de tudo. Não é a primeira vez que o nobre tenta usar essa desculpa para se livrar de compromissos… Mas é a primeira vez que a usa tendo mais de 10 anos. Exceto se… Realmente estiver doente. 

Com essa preocupação em mente, entrou em seu quarto já receando pelo pior:

—Vossa excelência! O que você está…

Sua voz foi se abaixando à medida que enxergava a cena em questão. Primeiro, sir Nicholas não parecia doente. Na verdade, estava bastante disposto para inclusive já ter banhado e se vestido sozinho. Segundo, sua escolha de roupa parecia bastante questionável. Parecia estar intencionalmente tentando parecer um plebeu utilizando roupas casuais sem alfaiataria. Terceiro, não apenas falhou em parecer  plebeu, como também não tem prática em secar o próprio cabelo, chegando a um resultado catastrófico.

O loiro estava prestes a falar algo quando foi cortado com um simples olhar:

—Não. Não quero saber. Antes de tudo, sente aqui e vamos salvar o que quer que tenha tentado fazer em seu cabelo.

Rindo de sua expressão julgadora, Nick apenas aceitou a ordem e se prostrou de frente com o espelho. Logo as mãos ágeis e delicadas de Charlie secaram com cuidado o cabelo, sem ter a pretensão de deixá-lo com a estética do topete: marca registrada da aparência da nobreza. Seu rosto, enfim, parecia quase comum, se não fosse pelo sorriso irresistível que apenas Nick Nelson era capaz de ter.

Os olhos curiosos de Nick pediam permissão para falar o que quer que o tenha inspirado a esse pequeno carnaval matinal. 

—Diga.

—Quero conhecer o condado… As cidades mais próximas ao menos! Você estava certo sobre eu tentar ver nesse casamento uma chance de fazer algo bom. Preciso saber o que seria esse bom antes de me casar. Você pode me apresentar a cidade de onde você veio, o que acha? Truman é aqui perto, não?

Havia certa decepção nos olhos de Charlie. Nick apenas falando do casamento e ignorando o quer que tenha acontecido na noite passada. Mas precisou de apenas um segundo para se recompor. Nicholas é um visconde. Uma questão de tempo até ser um conde após o casamento e Charlie… Apenas um mordomo plebeu. 

—Qual o grande plano para sair de seu quarto, sir?

—Bem… Estou doente, certo? Preciso ficar de cama… E a roupa de cama deveria ser trocada, meu caro.


 

Minutos depois, Charlie saia do quarto de Nick empurrando um carrinho cheio de roupa de cama diretamente para a lavanderia, fazendo um pequeno desvio pela estufa que dava diretamente para uma das saídas dos funcionários do castelo.

Saindo do carrinho, Nick recebeu uma muda de roupa que realmente poderia se passar como plebeu. 

—Vista-se e fique escondido. Vou tentar conseguir o dia de folga informando a governanta que vossa excelência precisa descansar o resto do dia.

Se esperar resposta, o moreno saiu, voltando pouco tempo depois vestido com suas roupas casuais, o que certamente impressionou Nicholas ao vê-lo tão despojado, para não dizer atraente. Charlie usava uma jaqueta de couro preta e óculos escuros. O melhor de tudo, não viera andando, mas pilotando o que parecia uma máquina robusta e corpo curvilíneo, o que deixou Nick ainda mais curioso.

—Iremos de motocicleta?!

—Não apenas em uma motocicleta…É uma Harley Davidson, meu caro. - entregando-lhe um capacete, Charlie sentiu que faltava um toque final no disfarce para o nobre e em seguida lhe entregou o próprio óculos escuro - Agora sim. É melhor se segurar, Nick.

O loiro não sabia como descrever a sensação em seu estômago de ver seu querido mordomo daquela forma mais… descolada. Entretanto, não podia dizer que não estava gostando. Tudo naquela situação o deixava maravilhado e ainda mais empolgado por conhecer o mundo real e a verdadeira vida de Charlie Spring.

 Assim que ouviu o barulho do acelerador, já estavam na estrada e Nick não teve outra alternativa além de abraçá-lo com todas as forças. Passado um bom caminho, sentiu Charlie lhe chamar atenção indicando que olhasse um pouco para a paisagem. De fato, era uma bela paisagem. A estrada cortava o início de uma montanha e ao longe a vegetação rasteira era iluminada pelo sol. 

Se sentia em um cartão postal.

Ali, tão perto de Charles Spring, o desejo de se casar com Imogen apenas diminuía. Mas Nicholas manteria isso em segredo até entender o que realmente sentia e, principalmente, se Charles Spring compartilhava do mesmo tipo de sentimento.


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