Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 20
— Um choro mudo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/806051/chapter/20

— Um choro mudo 

Azul, pacata e viçosa, a tarde no reino de Órion prosseguia como se nada estivesse fora do lugar. Os trabalhos de reconstrução das áreas que mais sofreram com a explosão de dois anos atrás marchavam a passos rápidos para o fim, os mercados prosperavam, seus pontos turísticos recebiam visitantes, as pessoas paravam de desconfiar umas das outras. Kin e Arashi estavam reerguendo a nação. Contra a expectativa geral. Especialmente entre os ministros e os retalhadores, a aposta era no fracasso deles. Nenhum dos tais iria admitir que errou sobre os dois.

Lire, apesar de ser sua inimiga, acreditou neles desde o início. Tinha certeza de que conseguiriam. Porque conhecia-os. Foi por essa razão que iniciou sua conspiração o quanto antes. Graças a isso, por outro lado, duas das pessoas que mais confiavam na gestão do casal passaram metade do dia desbravando os intrincados túneis lúgubres que existiam debaixo da terra governada por eles. Yue não dormia há dias, então todos concordaram que uma parada faria bem. Haru e Sayuri aceitaram guardar a última esquina percorrida enquanto Sora e ela dormiam. 

Mas a garota mal pôde fechar os olhos. Como conseguiria? Um conflito de proporções titânicas fez sua mente de arena. Tinha o coração bom demais para ficar em paz com a quantidade de gente que estava arriscando a vida por seu bem e, no processo de tentar adormecer, Yue o perscrutou até encontrar nele uma coisa que achou que já havia perecido há muito. Estava com medo de morrer. "Que coisa mais ridícula", se castigava, virando de um lado para o outro. "Você é uma retalhadora, não pode ter medo de morrer", condenava-se, mudando novamente. 

A bem da verdade, a contextura dos túneis não ajudava. Pedregosos, frios, empoeirados, ninguém dormiria ali. Nem mesmo Sora, convicto, até então, de que não existia lugar no mundo no qual ele não pernoitaria. Até então. Inquieto, sentou-se. Rascou o rosto com as mãos, como se o culpasse pela distância que o sono mantinha. 

— Achei que você podia dormir em qualquer lugar. — Yue o detratou, usando quase as mesmas palavras que o ouviram usar quando se gabou disso. Deitara-se alguns metros acima dele, que, para protegê-la se necessário, ficou mais perto de onde pararam Haru e Sayuri. 

Troca de provocações e de palavras sarcásticas eram normais entre os dois, Sora, entretanto, creu ser inapropriado retrucar com uma brincadeira.

— Eu estava errado. — Confessou. Alongou os braços para o alto, pôs-se de pé e estalou o pescoço. Escorado na parede, desculpou-se sem olhá-la: — Eu não queria te acordar. 

Yue se sentou. Encostada na parede, o olhou. Estava de costas para ela. Quando foi que imaginou que aquele garoto grosseiro e valentão com quem discutiu tantas vezes seria um amigo tão leal? Nunca. Entre todas as pessoas que conhecia, não pensou que Sora fosse ser nem a décima a estar ali, lutando por ela. E ele foi um dos primeiros a se prontificar. Deu uma risada que ecoou por toda a caverna. Sora pôs a mão na cintura e, cismado, virou-se. A espreitou. Estava achando aquilo tudo tão estranho quanto ela.

Ficou curioso quando a melancolia repentinamente se apossou da expressão da jovenzinha. Voltou a atenção para a frente.

 — Sei o que você tá pensando. — Disse Yue. — "A miss perfeitinha tá sentada enquanto os outros arriscam a vida por ela. Que covarde".  — Quando se sentiu de acordo com essas palavras, parou de conter as lágrimas. Elas jorraram como as águas que caem de uma verdejante e florida nascente na primavera. — Juro que não sei o que foi que deu em mim. Eu achei que estivesse preparada para encarar a morte, mas... eu tô com medo! Eu não quero morrer! — Se abriu. Tal qual os primeiros lírios róseos que ao fim de um árduo inverno para os agricultores desabrocham num campo maltratado pela neve, sua beleza reluzia e avivava suas feições, que outrora a tristeza maculou. Sora, quieto como um amordaçado, aguilhoado a ela por meio dos olhos, lhe dava toda a atenção. — Deve ser a primeira vez que você ouve uma retalhadora falar assim. Sinto muito.

 O jovem guerreiro abaixou a cabeça. 

— É, é a primeira vez que eu ouço uma retalhadora falar assim. — Concordou. Mirando-a de novo, completou: — Mas eu nunca convivi com gente que tem razões pra viver. É por isso que você não quer morrer, e isso não é nenhum crime, nem covardia... Isso é só felicidade. 

Muito do peso que a oprimia se desfez como que por mágica. Não tinha pensado assim. Não sabia ao certo por que estava tão surpresa: porque viu em Sora alguém tão bom em consolar uma amiga ou porque já se sentia melhor? Não fez muita questão de saber a resposta. Pouco importava. Enxugou as bochechas com o dorso da mão. 

 — Ainda assim, todo o Reino de Órion tá correndo perigo por minha culpa. Tô sendo egoísta. — Objetou.

— Ei, você é a pessoa mais inocente dessa história toda, não fez nada pra tá nessa! — A cortou, sorridente. Viu um sorriso finalmente descongelar a expressão dela. — Já eu... bom, minha vida finalmente tá valendo alguma coisa, eu nunca lutei por nada tão nobre. Só usava meus poderes pra me divertir, pra dominar e conseguir as coisas. Eu... — Pausou. Sentia nojo do que estava prestes a dizer. Sem disfarçar o asco na voz e na face, seguiu em frente: — Eu lutava pelo Kikuchi. Ganhava dinheiro pra ele, raptava guerreiros pra ele, essa era a minha vida... E, mesmo depois que me libertei, eu continuei nessa direção. Estava me tornando igual a ele. Lutar por você me faz acreditar que eu posso acabar diferente de como ele acabou. Então se prepara pra andar porque nós vamos até o fim! 

 Yue chorou muito mais intensamente — agora, de felicidade. "Obrigado, Sora", pensou, apenas. No estado em que estava, não conseguia falar. Pensou além das angústias que experimentava e deu-se conta de que aquilo tudo que estava acontecendo ali era maior do que ela. Nenhuma outra atitude sua, na ocasião, cobraria tanta coragem quanto a resolução de seguir em frente. Recuperada, ficou de pé. Pronta para o que quer que acontecesse.

Encerrado o concílio no Reino de Órion, uma exata hora voou como a mais ligeira das águias. Ninguém além de Kin e Arashi permaneceu na sala. Os dois, no entanto, não trocaram uma palavra em nenhum dos minutos que sucederam a dissolução do colóquio. Ela lia e assinava uma série de documentos, ele folheava um livro. Ambos sabiam a razão do silêncio. Sentiam sua estranheza. Discordavam com relação ao responsável por ele, convergiam sobre sua existência e seu caráter. 

Assim que proclamou-os líderes da equipe de elite da defesa de Órion, Hayate foi com os dois ao ponto mais alto da nação. Um local para o qual cada casa do Estado se fazia visível. Disse-lhes, então, algo que formou raízes tão profundas quanto as de uma robusta palmeira na memória do guerreiro glacial. Que resistiu a todas as ventanias e tempestades. Todavia, pensar naquelas palavras aumentaram sua indignação. 

Qual a nevasca que corta o ar com tanta fúria que produz sibilos pavorosos, sons que enfeitam os pesadelos dos que tentam dormir, assim estava o íntimo do guerreiro. Uma mistura de revolta com desapontamento. Revolta contra Lire, pois não tinha a menor dúvida de que aquele era mais um dos ardis dela para destruí-los. Revolta, também, contra o reino em troca do qual ofereceu a própria vida. E desapontamento. Este, contra Kin. Assim que fechou o livro, ficou quase dois minutos divisando-a. 

A loira o olhou de relance, mas fixou os olhos nos dele quando se apercebeu de que os dele a observavam. 

— Quando o primeiro ministro se prostra na presença do primeiro ministro de um outro reino, ele está dando ao reino estrangeiro permissão para acampar ali com suas tropas. É uma das primeiras cláusulas do contrato que rege os concílios internacionais. — Arashi foi direto ao ponto. Em tom de lamento, esforçando-se para manter a calma, questionou-a: — Por que você fez isso? 

Um sol eclipsado por um corpo celeste frio, infrutífero, dessa forma parecia a personalidade de Kin. Sem o calor dos dias normais. 

— "É o seu reino ou o seu orgulho". Você me disse isso uma vez, lembra? — Rebateu, inflexível. 

Àquelas palavras, Arashi meneou a cabeça. Estupefato. 

— Entregou o nosso reino. Sabe que ela vai tirar proveito disso. Aliás, você tem alguma noção do que fez? — Vinha evitando se exaltar, o que verificou, entretanto, foi a impossibilidade disso. 

Kin assinou o último papel. Levantou todos sobre a mesa, colocou-os em ordem e respondeu:

— Nos salvei de uma guerra que não podemos ganhar. Você não-

— Para e pensa por um minuto no que você fez! — Estrondeou, como uma avalanche despenhando num vasto vale frio e inabitável. — Sabe muito bem quem ela é, sabe que o objetivo da vida dela é te destruir porque você a venceu quando eram crianças! Você deixou a neurótica que raptou seu irmão formar uma colônia na sua pátria!  

— Para de pensar com o coração e você vai concordar comigo! Você viu o que a Yue fez! Precisávamos agradar a Lire, precisávamos-

— Para! Por favor, não fala mais nada... — Interrompeu-a. Não aguentava ouvir aquilo. — Quanto mais você fala, pior fica! 

Estavam diante do maior impasse de suas vidas. Claro que já discordaram um do outro antes, a respeito de muitas coisas. Nunca, todavia, com tanta ênfase, nem concernentemente a um assunto tão relevante. Naquele instante, os dois estavam pensando exatamente nisso. Não disseram-no em voz alta. Seus lábios permaneceram selados por vários minutos a fio. Chocados pela gravidade do problema, eles trocavam olhares como se perguntassem, sem palavras, se havia a possibilidade da concórdia. Temendo a resposta, escolheram a discrição. 

E tudo teria acabado ali, não fosse a súbita onda de raiva que explodiu em Kin. Num segundo, reviu todos os sonhos ruins que a perturbaram naquela madrugada. Reviveu o momento em que Hayate expressou o desejo de que ela herdasse dele o cargo de primeiro ministro. Por fim, o dia em que o próprio Arashi falou que acreditava nela, poucos anos após se conhecerem.

Na noite do aniversário de quinze anos dela. Seus pais já estavam mortos, Haru ficou doente, Mari passou o dia com ele no hospital e todos os retalhadores de elite estavam fora do reino, então não houve nenhum tipo de comemoração. Arashi voltou para casa às dez da noite e, mesmo esgotado, foi vê-la. Presenteou-a com uma presilha de cristais azuis claros nos quais mandou pintar o símbolo do signo de Áries e a data na qual Kin conquistou aquela bandeira para o Império de Órion. Tocada, guardou-a na caixinha de prata onde depunha os regalos mais especiais que ganhava.  

 Tal memória não a amoleceu. Com torvo aspecto, Kin andou dois passos na direção dele e advertiu: 

— Arashi, eu amo você. Com todo o meu coração. Mas, entre você e o meu reino, eu vou escolher o meu reino. 

 A lembrança que Kin acabou de ter veio sobre ele. Quando encomendou a presilha com a qual a obsequiou, a voz triste dela quando lhe disse que Haru estava doente, sua pressa para chegar em casa e poder vê-la. Nele, porém, a recordação exerceu efeito. Seus ânimos esfriaram-se. 

— Achei que fosse o nosso reino. — Contrapôs, com um sorriso amarelo. Vendo-a desconcertada, avançou: — Lembra do que Hayate disse quando fomos com ele ao Monte das Dálias? O Reino de Órion não é suas ruas, seus palácios e nem as casas que existem nele. É cada pessoa que mora nele, obedece suas leis e o protege. Ele disse que deixaríamos de ser o Reino de Órion quando nos esquecêssemos disso... quando valorizássemos mais as coisas do que os cidadãos. Prometemos que jamais faríamos isso. 

Alguém bateu na porta. Kin, sabendo que se tratava de Kande, permitiu que entrasse. Kande obedeceu, bateu a porta e sentiu a tensão no ar. De imediato. Os dois, muito sérios, não paravam de se encarar. Como se desafiassem um ao outro.

— É que eu trouxe umas coisas que a senhorita Keiko me pediu pra deixar com vocês... — Se desculpou, constrangida. Apontando a porta com o polegar, sugeriu: — Não queria interromper, posso voltar outra hora.

 — Não, tudo bem, Kande. — Disse Arashi. Um pouco mais descontraído, tomou pela alça a mala marrom de couro que levava, tirou-a de cima da mesa e passeou até a saída. — Já terminamos por hoje. 

No segundo que o viu bater a porta, Kin, bem baixinho, pediu algo a amiga:

— Quero que você e o Gray fiquem de olho nele, tudo bem? Também vou falar com o Inari e a Hana.

A guerreira de elite quase saltou de susto quando a escutou. Por um breve segundo pensou até que fosse brincadeira, mas algo em toda a escuridão dos olhos castanhos de Kin a fez rejeitar essa ideia. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Retalhadores de Áries II" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.