Em uma casa, na Rua dos Segredos escrita por An Imaginary Angel


Capítulo 1
Era uma vez uma porta




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Em uma cidadezinha do interior, na Rua dos Segredos, morava Confiança. Confiança era uma menina gentil e espirituosa, que fazia a alegria do bairro. Todos a conheciam, seu temperamento era tão marcante quanto forte, o que a deixava segura para perambular dia e noite pela cidadezinha. No entanto, sua mãe, Dona Lealdade, não gostava que Confiança fosse a lugares sem pessoas conhecidas, o que acabava mantendo-a dentro de casa a maior parte do tempo.

As duas eram inseparáveis, amavam a companhia uma da outra. Ao longo do dia, desde que Confiança era muito pequena, elas tinham uma rotina: a mãe saía cedo de casa, passava em vários lugares que a deixavam triste e voltava. A menina nunca entendeu por que a mãe fazia isso, mas nunca sentiu necessidade em perguntar. 

Por vezes, quando estava muito entediada com as mesmas paredes, portas e janelas, a pequena fazia uma visita rápida aos vizinhos, Seu Conforto e Senhora Respeito. Passava horas e horas conversando com eles, umas vezes sobre sua vida, outras sobre as deles. Eram momentos mágicos, em que se sentia quase tão bem quanto ao lado da mãe. Ainda assim, quando o sol estava forte no alto do céu, Confiança se apressava em se despedir e ir até a porta de casa, esperar ansiosa a chegada de Dona Lealdade para o Grande Abraço. Não importava o clima, não importava o humor, todos os dias eram dias de um bom e aconchegante Grande Abraço entre Lealdade e Confiança. Nesse momento, em alguns dos dias bem ruins, Dona Lealdade olhava para a filha e dizia como eram chatos todos aqueles locais que visitava, mas que era muito importante que ela passasse neles todos os dias. Confiança sabia que a mãe estava mais lembrando-se disso do que a explicando, porém ouvia e confirmava firmemente todas as vezes. Então, elas entravam para o almoço, conversavam durante algumas horas e Dona Lealdade ia para o porão da casa.

As escadas do porão ficavam bem no meio do corredor para o banheiro, escondidas por uma porta cinza. Confiança sempre achou aquela porta chata, mas Dona Lealdade brigou quando a criança pintou uma árvore em sua base. Após escovar os dentes, Confiança abria a porta devagar e descia sem fazer barulho. No último degrau ela ficava, espiando a mãe e se escondendo, apenas suas risadas preenchendo o quartinho por vários minutos até Confiança subir correndo e bater a porta com um grande sorriso. Esse era o momento favorito do dia de Confiança. Talvez vencido apenas pelo Grande Abraço, mas ela gostava de pensar que era um empate. As horas que passava desenhando enquanto a mãe não subia estavam em terceiro lugar, porque só eram especiais graças às lembranças daqueles momentos.

Assim eram os dias, todos eles, e Confiança amava como eram simples e felizes. Até que, um dia, ao abrir a porta chata, ela não se mexeu. Nem um movimentozinho, por mais que ela tentasse de novo. Tudo estava normal, dentro da rotina até então, mas a porta não abriu. Sem entender, Confiança olhou toda a casa. Olhou em seu quarto, na sala, na cozinha. Procurou alguma coisa fora do lugar, algo que tivesse esquecido de arrumar. Nada, tudo estava certo. E a porta continuou sem abrir. Ela esperou no quintal, espiando pela janela se uma criatura esquisita iria sair. Seu Conforto até estranhou a movimentação, lhe ofereceu café fresquinho, mas a menina estava determinada. Entrou só tempos depois, quando ouviu a porta se abrir e, ao olhar, viu a mãe sair tranquilamente, botando uma chave no bolso.

Apesar de estranho, Dona Lealdade agia normalmente e ainda era bom estar ao lado dela, então Confiança não perguntou. Não gostava da situação mas fez pouco caso, esperando que no dia seguinte tudo se normalizasse. Só que não aconteceu; lá estava a porta sem se mover mais uma vez. E no próximo dia também, e no próximo. Em algum momento, já começando a se indignar, Confiança atrasou a escovação e espreitou pela porta enquanto a mãe entrava na porta. Pulou para o corredor a tempo de ouvir claramente o som da fechadura, e não ousou chegar perto do batente depois disso. Ficou sentada do outro lado do corredor, encarando aquela madeira chata, pintada de um cinza totalmente sem graça. Pensou em todas as coisas legais que ela poderia ser, todas as formas e cores que caberiam nela se a mãe não lhe impedisse. E correu para o quarto quando ouviu os passos se aproximando do outro lado da porta.

A situação não melhorou nada, só piorava. A nova rotina era parada e entediante, assim como aquela porta. Aos poucos, a noite foi perdendo a graça também e logo Confiança só conseguia pensar naquela porta chata e imóvel durante o almoço também; e este também ficou chato. Até o Grande Abraço, mas Confiança não gostava de falar disso. Talvez algumas semanas, talvez alguns meses depois, um dia em que Seu Conforto foi ao mercadinho, Confiança tomou coragem e visitou a Senhora Respeito. Sem saber por que, ela hesitou ao bater na porta da frente; e chorou antes mesmo da idosa abrir. Se sentiu extremamente boba explicando a situação, mas foi acolhida por braços longos e macios. “Ser simples não é o mesmo de ser bobo”, a senhorinha disse, mas Confiança não entendeu muito bem. As lágrimas desceram tão rápido que elas só perceberam a existência do tempo quando Dona Lealdade chamou por Confiança, andando rápido pelo quintal. A Senhora Respeito a recebeu para o lanche também, mas o olhar da menina não encontrou a mãe em nenhum momento. As visitas costumavam ser regadas de boas conversas, mas aquela foi preenchida pelas histórias da senhora de forma quase desesperada. Dona Lealdade fungou algumas vezes e Confiança culpou o tempo exagerado que ela passava no subsolo. Em pensar em toda poeira que haveria lá...

No dia seguinte, durante o Grande Abraço, que se tornara um momento triste conforme passou a durar cada vez mais, Confiança decidiu não olhar para a porta dessa vez. Tentou se lembrar do tempo de antes, o que fazia depois de bater aquela porta chata, mas não conseguia. A porta só se fechava e ficava lá, existindo e lhe encarando de volta até que a menina piscasse e a mãe saísse. Tentou preencher as infinitas horas daquele dia e não olhou para a porta nenhuma vez, nem umazinha. No próximo dia, fez a mesma coisa, e escovou os dentes no banheiro do quarto para não passar pela porta. Em algum momento, se convenceu de que aquele era o melhor, melhor para todos. Contou para Seu Conforto, que a entendeu e comentou que, se fosse ele, olharia uma última vez. Olharia para aquela porta, faria uma grande careta para ela e nunca mais mexeria com aquilo. A ideia era tentadora e maravilhosa e Confiança esperou de peito estufado pelo barulho da chave. E então, foi até a porta, cheia de si, e encheu os pulmões para soltar uma enorme careta para aquela porta metida. Um objeto, simples e pequeno, chamou sua atenção assim que levantou seus olhos, interrompendo seu momento. O chaveiro colorido e decorado no meio da porta destoava totalmente do cinza sem graça. Confiança não sabia por que exatamente, mas seus olhos se encheram quando tocou a arvorezinha de borracha e tirou a chave do novo ganchinho.

Ela tocou cada pontinha da chave novinha (de verdade, tinha até cheirinho de nova). Por alguns minutos, ficou decidindo se tentava ou não encaixá-la na fechadura. Quando tentou, Confiança se espantou com a facilidade do encaixe. Não hesitou, no entanto, ao tentar girar. Dois giros completos, perfeitamente executados. A maçaneta girou também e uma brechinha automaticamente se abriu no beiral. Surpreendentemente, o sorriso que iluminou seu rosto foi o mesmo de quando fechava a porta, tanto tempo atrás. Inspirou devagar o ar poeirento que saía de lá; e fechou a porta um segundo depois. Botou o chaveiro no ganchinho com todo cuidado, prestando atenção em cada milímetro para que ele ficasse perfeito. Dando alguns passos para trás, admirou seu trabalho (muito mais harmonioso do que o jeito jogado de antes) e foi para o quintal. Esperou ansiosa pelo ranger irritante e surpreendeu a Dona Lealdade com um Grande Abraço quando ela a procurou. Nenhuma das duas falou nada, naquele momento ou em outro, mas elas entenderam. A partir daquele dia, a rotina teria dois Grandes Abraços e não havia negociação.

Com o tempo, as conversas de Dona Lealdade com Privacidade, filha de Senhora Respeito e Seu Conforto, passaram a ser presenciais. Confiança quase sempre abria a porta para elas, antes de seguir para o banheiro. Quando voltava, ela trancava a porta e botava o chaveiro no gancho antes de buscar seus cadernos e lápis. Quando as mulheres subiam, eram recepcionadas com desenhos super coloridos e dois braços bem abertos. Privacidade era muito gentil, apesar de reservada, mas Confiança não demorou a gostar dela também. Até mostrou para ela o lugarzinho escondido do quintal onde gostava de brincar. As vezes, enquanto Dona Lealdade estava na rua, Privacidade levava doces e bichinhos de pelúcia para o esconderijo. Confiança só achava de tardinha, e Dona Lealdade achava engraçado e confuso os cochichos e risadinhas das duas quando Privacidade ia embora.


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Notas finais do capítulo

Uma descarga de emoções, um surto e uma homenagem. Espero que você entenda que eu não vou perguntar e você não precisa responder. Não quero informações cuspidas, só uma novidade eufórica quando ela vier.



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