Blindwood escrita por Taigo Leão


Capítulo 6
O Terceiro Andar




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805763/chapter/6

Eu tive um sonho em um lugar estranho.
Era muito parecido com os corredores do Chariotte, mas era um lugar mais deteriorado. Algo não cuidado, como se fosse abandonado.
O papel de parede estava sujo e rasgado em algumas partes e a porta de alguns quartos estava aberta, entreaberta ou simplesmente quebrada. Também haviam poucas portas completamente fechadas. O cheiro era horrível e eu vi algo parecido com pessoas, mas não sei explicar ao certo se aquilo era realmente humano. Era algo que abandonou essa definição a algum tempo. Algo entre o vivo e o morto, entre o racional e o irracional. Eu via essas pessoas apenas de relance. Sentia que se eu olhasse diretamente elas iriam desaparecer, como se fossem fruto de minha imaginação.
Em alguns quartos, juro por Deus que vi sangue nas paredes. Tenho certeza de que era isso.
Entrei em um quarto qualquer à minha direita e vi algo se formando na parede. Eram palavras vermelhas que apareciam lentamente, como se alguém realmente estivesse escrevendo ali naquele momento, mas não havia ninguém além de mim.
"Me... Ajude"
Algo pegou em meu ombro e o apertou, fazendo com que eu sentisse um pouco de dor neste susto. Me virei para trás a tempo de ver uma pessoa com uma aparência que me assustara um pouco.
Era uma mulher muito magra com um longo cabelo escuro. Ela usava um simples vestido branco encardido e seus olhos eram profundos.


Elaine acordou cheia de suor. Ela havia dormido com seu casaco.
Embora as ruas de Blindwood fossem nubladas e frias, dentro do hotel era possível sentir um clima mais fresco, até mesmo o calor.
Ela se levantou e foi direto tomar um banho, sem perceber que após arremessar o casaco no divã, seu celular saiu do bolso e foi parar embaixo da mesa de centro.


—---------~~~----------


Após se despedir de Sarah Bove e de Elaine Campbell, Marco seguiu caminho rumo a casa de seu tio. Sua própria casa. Ele custara para se lembrar do nome de sua nova conhecida. Mas por alguns momentos manteve a imagem dela em sua mente. Não por um desejo carnal ou um sentimento novo, ele apenas pensava muito sobre as coisas e pessoas, principalmente as que o rodeavam, e, se Sarah Bove gostou dessa nova pessoa, então certamente ela rodeará Marco e fatalmente fará parte de sua vida.
Ele se lembrava de seus olhos expressivos e plenos e como ela o encarava durante toda a conversa; como ela realmente prestava atenção no que Marco falava. No desabafo dele para essa desconhecida. Ele não gostava de chamar atenção, na verdade não sabia como se portar diante de ter atenção e até tremia apenas de imaginar possuir isso, mas agora, em sua mente, admirava como a mulher manteve o olhar e o interesse naquele homem meio bêbado enquanto ele olhava para o balcão e de soslaio, para ela. Ele não gostava de falar por muito tempo, sempre pensava que o ouvinte se sentisse cansado e apenas torcesse pelo fim do assunto, então realmente apreciou o fato de que Elaine se interessou por aquilo. Novamente, não era algo carnal ou interesse, ele apenas admirava gestos e algumas, poucas pessoas. Pessoas como Sarah Bove e agora, pessoas como Elaine Campbell também.
Marco caminhava com as mãos dentro dos bolsos de seu sobretudo. Ele estava cansado, mas teve uma idéia. Ele iria até a oficina de Ivan para saber mais sobre o carro de Elaine, sua nova... Amiga.
Marco desviou de seu caminho, mas não por muito; a oficina não ficava tão longe de sua casa.
Eles chamavam de oficina, mas era apenas a grande garagem da casa de Ivan, o mecânico de Blindwood. Marco sabia que até mesmo para Blindwood, aquilo não passava de uma garagem com um homem que realmente sabia o que estava fazendo.
Mecânica não é um dos pontos fortes de Blindwood, afinal ninguém anda de carro por ali. São poucas, pouquíssimas pessoas que se arriscam a fazer isso. Mesmo quem vive naquele lugar prefere andar. Todos estão acostumados com a neblina, mas ninguém consegue ver através dela. Ver o que está a sua frente, no desconhecido. A silhueta que não se revelou. Então, quem tem um veículo não dirige em velocidades muito altas. É algo semelhante a ir andando com suas próprias pernas, mas um pouco mais complicado. No fim, vale mais caminhar com suas próprias pernas, é algo mais simples, eficiente.
Ivan consegue viver de sua profissão, mas isso porque ele não concerta apenas carros. São pouquíssimos os carros que ele recebe em sua oficina. A realidade é diferente, este mecânico, o melhor (talvez o único verdadeiro) de Blindwood, conserta todo tipo de coisa. Geladeiras, televisões, algumas motonetas. Marco é seu ajudante.
O mecânico diz que Marco tem jeito para isso e até pensa em deixar sua "oficina" quando partir deste mundo, mas não disse uma única palavra a Marco sobre isso. O segundo já pensou nessa idéia, mas logo repreendeu a si próprio dizendo que não está na altura de receber essas coisas: o universo não agiria a seu favor dessa maneira. Ele era apenas o ajudante e continuaria sendo isso. Ele pensava que não adiantava nada fantasiar com coisas acontecendo a seu favor, pois era mais fácil um raio cair em sua cabeça do que ele receber algo do tipo. Os dois possuem o mesmo pensamento, mas ambos não dizem nada sobre isso.
Quando chegou na casa, viu que todas as portas e janelas estavam fechadas, mas isso não surpreendeu Marco. Ele bateu na porta e após não obter uma resposta, rodeou a casa. No fundo da mesma, no quintal, estava ele. Ivan estava ali sentado em uma cadeira frente a uma pequena árvore que havia em seu pequeno quintal. Haviam duas latas de refrigerante vazias no chão, próximo dele.
— O que está fazendo por aqui hoje se eu não lhe chamei?
— O veículo.
— Ora, você já a conheceu? Alguma coisa Campbell... Uma forasteira, devo dizer. Ela me perguntou como eu sabia, mas você sabe, ninguém daqui anda com carro nessa velocidade. Ninguém corre o risco de bater em um muro ou algo do tipo! Ninguém dirige nessa velocidade e... Aliás, melhor dizendo.... Ninguém sairia daqui e voltaria logo em seguida, batendo assim no muro da entrada. Isso é impossível, você sabe. Quem sai deste lugar não retorna nunca mais.
— O vale da calmaria...
— O vale onde o sol é silencioso.
— Tudo aqui é silencioso. Mas e sobre o veículo?
— Ora, eu solicitei a peça, deve chegar em um ou dois dias, quem sabe. Mas não tenha pressa... Ela está com pressa?
— Eu não sei, imagino que não.
— O que uma mulher como ela veio fazer em um lugar como este?
— Eu não sei, mas ela é uma boa pessoa.
— Boas pessoas às vezes passam por coisas ruins, lembre-se disso. E você é uma boa pessoa.
— Eu tento ser.
— Você é.
Ivan olhou para Marco, seus olhos eram expressivos. O homem tinha Marco como um filho, mas nunca disse sobre para ele. Era apenas seu aprendiz, seu talento na mecânica que deveria o mais breve possível sair daquele vale e ter uma vida de verdade e feliz longe dali. Mas o homem sabia que fatalmente o destino de Marco era continuar em Blindwood. Ele tinha duas grandes pedras que o prendiam naquele lugar: A primeira se chamava Sarah Bove, uma boa menina, isso ele sabia. A segunda era seu próprio tio e o demônio de sua família que o assombraria dali para o resto de sua vida.
Ivan até passava alguns dias no mesmo lugar onde Sarah Bove trabalhava. Ele a conhecia bem. Embora sempre fosse atendido por ela e a garota conversasse com ele às vezes, eles nunca conversavam sobre Marco, não havia motivo para tocar em tal assunto. Vendo a garota de perto, ele deduzia o motivo que o prendia naquele lugar, mesmo que Marco não soubesse. Ninguém sabia ao certo o que era aquilo, mas todos os envolvidos deduziram algo. Era apenas algo.
Sobre o tio do garoto, Ivan não se envolvia. Embora fosse algo duro, ele não ousava fazia isso. Se Marco precisasse, ele estava ali, mas o mesmo nunca tomaria a dianteira para entrar nesse ponto tão particular da vida de seu aprendiz.
Após tanto tempo convivendo com aquele garoto ele conseguia, de certa forma, entender o que se passava em sua mente e explicar suas ações. Por esse motivo ele sabia dizer que, no último dia, Marco havia brigado com seu tio e passou a noite no Chariotte e agora, ao passar ali, estava criando coragem e ganhando tempo para finalmente voltar para casa, e a forma que saiu, sem se despedir, e com as mãos em seus bolsos só significava que ele havia criado coragem e estava voltando para sua casa.
Marco saiu da oficina e foi rumo a sua casa, que ficava na rua S****, não muito longe da oficina, ainda neste lado de Blindwood. O clima nublado ao anoitecer lhe parecia muito agradável. Era um clima ameno para ele, que já estava acostumado após passar toda sua vida naquele vale. Na verdade, ele não conseguia imaginar como seria sua vida ao caminhar um dia sem enxergar nem que seja um relance daquela neblina cercando ele e tudo a sua volta.
A porta de sua casa estava fechada, mas não estava trancada. Marco entrou sem problemas. Ele passou pela cozinha e pela sala, mas seu tio não estava em nenhum destes cômodos. Agradecido pela situação e pelo pouco tempo que ganhou, ele subiu até seu quarto e fechou sua porta com cuidado, trancando a mesma. Marco deitou em sua cama e agradeceu, torcendo para que o próximo dia seja ao menos um pouco melhor do que o último que viveu.
No outro dia, Marco acordou assustado. Ele havia dormido em paz. Quando se levantou, não escutou um único barulho e sua porta estava da forma que ele deixou.
Marco logo desceu as escadas degrau por degrau, sabendo que havia algo lá embaixo que ele precisava encarar. Havia algo que após todas essas situações, ele não gostava desta parte do ciclo. Era a (breve) encarada.
Na sala havia uma pessoa. As janelas ainda estavam fechadas mas a luz estava acessa.
Ali havia um homem mais velho, com um cabelo clareado ralo e longo. Sua barba estava por fazer e sua barriga era um pouco grande. Ele estava sentado de mal jeito, com suas costas curvadas, as mãos para frente e olhava fixamente para o chão.
— Tio...
—...Hm? Você voltou.
— É muito cedo?
— Você passa noites naquele hotel como se fosse um turista. Você sabe a época em que estamos. Não frequente aquele lugar. Não mais.
— Novamente esse assunto?
— Você mora neste vale. Você sabe mais que ninguém. É aquela garota novamente?
— Não. Eu apenas estive lá... E no parque.
—... Não, não abra as janelas. Não precisamos ser vistos. Deixe-as como estão... Você está de saída, não está? Usando este sobretudo novamente. Você parece com ele...
— Está zangado?
— Não. Apenas... Com dor de cabeça. Não faz mal. Vá logo para eu poder ficar em paz por um momento. Droga, este lugar é um inferno e você queimará ficando aqui ou lá fora. Me deixe em paz.
Marco saiu sem fazer barulho. Seu tio estava mais tranquilo, ele percebeu que sim.
Ele não sabia para onde iria agora. As opções que lhe vieram a mente eram as de sempre: Sarah Bove ou parque, ele gostava daquele lugar. Marco escolheu a segunda opção.


—---------~~~----------


Após tomar seu banho e colocar outra roupa, Elaine se sentou em seu divã e começou a refletir sobre seu próximo movimento. Ela poderia ir até o endereço do que não sabia se era um sonho ou não ou ir até o lugar indicado por Agatha. O famoso terceiro andar, do qual foi alertada para ficar longe no dia em que chegou no Chariotte, por aquele homem que ela nem sequer sabia o nome. Ela estava decidida, iria explorar um pouco o hotel: ela iria até o andar. Ela saiu de seu quarto e caminhou em direção ao elevador. Entrando no mesmo, apertou o botão para o 3° andar. Ela apertou de novo e de novo, mas nada acontecia. O botão estava quebrado.
Ela pensou em sair do elevador mas neste momento o mesmo se movimentou e desceu até o andar, mas sua porta permaneceu fechada, como se algo impedisse sua abertura. Elaine não teve opção a não ser voltar para o quarto andar. Foi o que ela fez.
Ela resolveu descer pela escada de emergência, que ficava do outro lado do andar, virando no último corredor a direita. Naquele corredor não haviam portas além das duas no final do mesmo. Uma da escada de emergência e a outra do elevador de serviço, que Elaine nem sabia que existia naquele edifício. Ela tentou chamar por este, mas precisava de uma chave de força para abrir sua porta e claramente ela não tinha uma dessas em mãos e não conseguia nem imaginar uma forma de conseguir uma neste momento.
Ela desceu pela escada de emergência.
A mesma não possuía luz e as janelas, na parede oposta, estavam fechadas e não era possível alcançá-las. O cheiro de mofo era bem presente e claramente aquele lugar não era limpado a algum tempo.
Quando Elaine chegou no 3° andar e abriu a porta, seu corpo estremeceu por inteiro. Ela sentiu um arrepio e não sabia explicar ao certo o que estava acontecendo. Aquela sensação medonha; um certo déjà vu.
O local era igual o cenário de seu sonho da última noite.
Era exatamente como os outros andares do hotel, mas era como se estivesse abandonado: o papel de parede estava sujo e rasgado em algumas partes do mesmo e, se houvesse luz naquele andar, ela estava desligada ou não funcionava. O mofo era presente no ar, o andar fedia. Não haviam janelas ali e o lugar estava escuro, mas Elaine conseguia enxergar um pouco o que estava a sua frente.
Sem saber ao certo o que estava procurando, ela avançou lentamente mas seu primeiro passo fez um barulho considerável após ela pisar em um piso solto.
Ela seguiu por aquele corredor mas a decadência das portas eram visíveis. Poucas, pouquíssimas estavam realmente fechadas e novas (o normal dos outros andares que era considerado novo naquele lugar), as muitas que fechavam o total ou estavam entreabertas, completamente abertas ou o quarto simplesmente não tinha uma porta. Muitas dos dois últimos grupos estavam quebradas em alguns lugares, demonstrando claramente que aquele local não era cuidado por ninguém.
Ela seguiu naquele corredor principal até o final mas não viu ninguém ali. O mais próximo que chegou de ver alguém foram as visões de relance para algo dentro de algum quarto, mas no final, ao observar direito, aquilo era apenas um amontoado de cobertas ou algo do tipo.
Elaine procurou seu celular em sua roupa para usar como lanterna, mas não conseguia encontrar o mesmo. Ela passou sua mão por cada bolso mais de uma vez, mas não conseguia encontrar o mesmo e gastou para se lembrar que o deixou no casaco que dormiu na última noite, o mesmo que ela jogou em cima do divã. Sem luz para lhe guiar, ela apenas seguiu em frente até que escutou passos vindo de trás de si mesma. Eram pequenos passos de alguém com pressa: alguém que corria. Elaine olhou para trás e conseguiu ver a silhueta de algo pequeno, era uma garota. A mesma garota que correu em sua direção no elevador do quarto andar, ela estava ali novamente e novamente corria em sua direção, vindo da porta para a escada de emergência. Mas a garota não veio para Elaine, ela virou no primeiro corredor a direita e Elaine estava dois corredores na sua frente.
— Espere aí!
Elaine pediu mas a garota não se importou, ela virou ali e o barulho de corrida cessou, sendo substituído pelos passos ligeiros da própria Elaine, que foi na direção do corredor, mas ao chegar ali, ela não viu a garota.
— Céus, novamente isso... Acho melhor eu voltar.
Elaine voltou para a porta das escadas do prédio mas para sua surpresa elas estavam trancadas. A garota havia trancado as portas e agora ela desapareceu. Elaine tentou forçar a saída, girando a maçaneta várias vezes, mas a mesma não se abria, apenas fazia um barulho alto. Alto demais para aquele andar tão silencioso e sem vida. Uma porta se abriu no final do corredor. Elaine olhou para trás e viu uma silhueta um pouco curvada, talvez corcunda, vindo em sua direção e sussurrando algo para si mesma. Ela suou frio.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Quem será essa pessoa misteriosa?



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Blindwood" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.