Tardes de Outono escrita por isa


Capítulo 1
Blowin' in the wind


Notas iniciais do capítulo

༄ Bom, talvez essa história tenha ficado um pouco mais triste do que eu tinha premeditado, então acho importante avisar desde já. De todo modo, eu espero que seja uma boa leitura.
༄ Obrigada desde já a quem ler e queria deixar também um agradecimento especial pra little alice, trice e foster por manterem acessa a vela do projeto por mais um ano.



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Agora que a dor vinha em ondas cada vez mais curtas, as lembranças ficavam mais fortes. Era como nadar em maré cheia: quanto maior o medo, maior também a sensação de estar viva ao vencer com sucesso a fúria do oceano. De todas as memórias que habitavam suas águas internas, amava e revivia sobretudo as tardes de outono ainda na virada do milênio, quando bruxos e humanos comuns deliberavam sobre o futuro próximo e ela, Astoria Greengrass, no auge da juventude, não conseguia pensar em mais nada além daqueles passeios a cavalo na propriedade de Wiltshire.

Havia outras tantas poderosas, é claro: a viagem solitária para a Ásia, a despedida da mãe, o abraço que Daphne lhe deu por livre e espontânea vontade pós batalha em Hogwarts, o nascimento de Scorpius e todas as constelações brilhantes que o filho tinha sido capaz de acender dentro dela desde então. Se emergia naquelas lembranças específicas com Draco, não era por ordem de importância, nem porque elas guardavam o começo de sua vida adulta, e sim porque continham algo do frescor que seu corpo não comportava mais. Elas tinham algo de verde, que sempre fora sua cor preferida, mesmo que a paleta exata dos tons daqueles dias fosse terrosa por conta da estação.

Naquela janela entre setembro e novembro, para onde quer que a vista podia alcançar, tudo era laranja e marrom, do momento que o sol se levantava em torno das sete até a hora em que ele se punha, às dezoito. Havia um silêncio de expectativa. Dali a pouco, a neve e o frio assolariam tudo, mas por enquanto, era como se toda a natureza estivesse tirando um cochilo gostoso. Astoria se lembrava do som das folhas secas no chão e de como as coisas pareciam adquirir um filtro sépia. Era estranho ainda viver setembro longe de Hogwarts. Greengrass vivia se esquecendo de que havia se formado. A guerra alterara toda a sua percepção de tempo e havia roubado qualquer alegria que ela podia ter sentido nos momentos finais como veterana.

Era um alívio estar livre da escola, mas também era angustiante a sensação de não ter para onde ir. Então ela ia para casa de Draco, o lugar mais improvável e menos desejável do mundo. Ia porque dentro daqueles tantos hectares que pertenciam aos Malfoy, à leste havia um estábulo onde alguns cavalos eram bem cuidados por elfos domésticos dia sim, dia não. Ia porque havia nascido sob a tutela de alguma estrela do contra. Ia porque Draco, de alguma forma que ela ainda não conseguia verbalizar em palavras, carregava uma dor e uma culpa com as quais ela conseguia se relacionar.     

Astoria achava que era muito difícil ser uma adulta funcional e razoável. Draco achava que era quase impossível. Mas um com o outro, até que eles se saiam bem. A amizade improvável, se é que podemos chamar dessa maneira, começou em algum dos inúmeros e entediantes eventos promovidos por bruxos de sangue puros. Após a guerra, a maior parte das famílias assim proclamada, encontrava-se ideologicamente fragilizada. Os bailes, chás-da-tarde, jantares e saraus eram um modo de varrer para debaixo do tapete tudo aquilo que o lorde das trevas havia escancarado. Muitas coisas tinham sido manchadas, mas o dinheiro, no fim das contas, promovia milagres.

Os que não tinham sido condenados à prisão, lambiam-se uns aos outros como se o fato fosse imperativo para expurgá-los de qualquer culpa. Os encontros reforçavam o senso de unidade daquela elite decadente. No entanto, nem toda polidez, bom vocabulário e regras de etiqueta do mundo poderiam salvá-los aos olhos de Astoria. Ela participava de tudo com um misto de mortificação e frustração que desaguavam numa sensação entorpecente de tédio paralisante. Não havia escapatória. Ao menos, não em um horizonte tão próximo. Ela era a filha mais nova dos Greengrass e enquanto não possuísse um plano bom o suficiente para fugir, aquele era o preço que pagava para ter um teto luxuoso sob sua cabeça, uma cama confortável e alimentação.

Então tinha Draco, preso pelas mesmas questões e outras tantas que ela sabia só superficialmente. A primeira coisa que notou quando decidiu conversar com ele é que diferente da expressão de nojo que ele costumava carregar na escola, como se estivesse sempre sentindo o cheiro de algo desagradável, agora ele carregava uma de horror contínuo. Grengrass tinha a impressão de que se olhasse por muito tempo nos poços profundos que eram os olhos de Malfoy se depararia com a pintura trouxa que vira certa vez chamada O Grito.

Talvez fosse por isso que decidira ser gentil, ela não sabia dizer. O certo é que ele não parecera muito animado – nem com ela, nem com nada, a bem da verdade – mas as respostas monossílabas do inicio tinham sido boas o suficiente para que ela continuasse fazendo longos monólogos. Por vezes quase parecia que ele ia sorrir, mesmo que no final fosse sempre só um esgar trêmulo nos lábios finos.

Em algum momento, o vínculo se tornou confortável o suficiente para que ela sempre surrupiasse bebidas para os dois em eventos grandes e para que Draco apresentasse o terreno ao redor da mansão – as sebes, os jardins, a sua árvore retorcida favorita – quando ninguém estava prestando atenção o suficiente. Eles costumavam perambular por horas, as vezes em absoluto silencio. Astoria brincava que a propriedade dos Malfoy era do tamanho de um pequeno vilarejo, e nesse caso em específico, ela quase estava certa.

Numa das expedições de terreno, Draco a levou ao estábulo pela primeira vez e inaugurou, sem saber, uma tradição: Astoria ficou encantada com o par de cavalos árabes que eram vigiados por um porlock rabugento. Num geral, Draco não era muito fã de criaturas (mágicas ou não), então parecia uma feliz coincidência que um dos poucos animais que ele apreciava na verdade eram os preferidos de Astoria. Em termos menos românticos: coisas possíveis graças ao recorte de classe. 

Os equídeos eram bem treinados e tinham um temperamento fácil. Astoria não demorou a fazer amizade com eles. E assim começaram os passeios, que eventualmente ultrapassaram os eventos coletivos. As vezes eles simplesmente se viam e era bom ter alguém com quem conversar ou apenas apostar corridas. Ela vencia sempre e Draco achava que o som da risada de vitória que ela dava era a coisa mais linda do mundo. Ela não sabia disso, mas gostava do modo como ele a olhava naqueles instantes em que ela se sentia invencível.

Uma década inteira e meia a separavam daquele tempo. Era estranho que ela quase fosse capaz de sentir novamente o cheiro da terra batida e o vento dançando com seu cabelo a medida que ela ganhava velocidade. O modo como ela sentia a própria pulsação durante as primeiras confidências trocadas. O conforto dos longos silêncios. O modo como a grama seca pinicava quando eles se deitavam sob ela e apenas ficavam vendo nuvens preguiçosas deslizando pelo céu. O dia que ela notou que o amava – já em novembro, quando ele riu genuinamente pela primeira vez. Foi um som curto, abrupto, que não durou mais do que cinco segundos. Quase um “ha!”: mistura de risada e susto. Astoria se perguntava se ele sabia de todas as portas que abrira naquele instante.

A verdade é que não importava se sabia ou não. Eles seguiram juntos. E foram muito felizes em certos pontos, muito tristes em outros, e encontraram apoio – e conforto – um no outro. De algum modo, tudo que se desenrolara entre eles, individualmente e como casal, já estava sinalizado naquelas tardes de outono e sentir isso fazia com que Astoria sorrisse, mesmo agora, quando seu corpo estava fraco a ponto de sucumbir a um ponto do qual não tinha retorno.

Suspirou, voltando para o presente, para o quarto amplo e claro pela luz da manhã gradualmente. Ela se sentia fraca e achava que tinha pouco tempo. Pensou em Scorpius em Hogwarts, e em como estava satisfeita de ele não a ver assim. Apesar de tudo, era a primeira vez que a perspectiva da morte não lhe causava grande comoção. Tinha sido uma vida grande, brilhante e subversiva dentro dos seus próprios termos. A morte não era um dia triste de se viver dentro dessa perspectiva. Pelo contrário. Era um jeito de honrar as memórias. Um último tributo: tornar-se elas.


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