Te amavi escrita por Eliz de Liz


Capítulo 4
Capítulo IV: Désir


Notas iniciais do capítulo

finalmente por aqui de novo, agora posso postar o capítulo que tanto queria.
espero que gostem e que não achem maçante, porque esse daqui é bastante descritivo (não que a história toda não seja) e exigiu muito de mim.
"se prepara, viu... sei de nada não... mas se prepara... vem aí uma coisa muito forte, não posso dizer mais nada."
LEIAM AQUI:
deixei nas notas finais uma playlist que fiz para caso queiram ouvir, são músicas que ajudam a construir o tom da história para vocês, leitores.



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— Mônica, eu estava falando sobre… Mônica! — Anabel me chamava, no mínimo, pela segunda vez em um curto intervalo. Pela tonalidade imprimida na voz da minha colega de trabalho, certamente não era apenas a segunda. 

— Oi, Bel, pode falar. Desculpa! — Olhei-a de relance enquanto terminava de passar o café para a garrafa. A cozinha do fórum não era muito grande e meu intervalo também não, mas sentia que de um tempo para cá algumas atividades se tornaram especialmente complexas pra mim, demoravam mais do que deveriam. Aliás, sabia o exato instante em que haviam se tornado mais labirínticas, mas simplesmente me recusava a aceitar.

— Já falei que você tá diferente? Tipo, de umas semanas pra cá. — Ela disse numa entonação carregada.

— Diferente como, Bel? Eu sou a mesma. — Ri rápido. — Acho que eu tô só um pouco… cansada. — Acrescentei, apoiando-me suavemente sobre o balcão.

— Mô… Não! — Ela parecia procurar com afinco o que ia dizer, como quando buscamos uma expressão que está na ponta da língua. — Parece que tem alguma coisa desviando a sua concentração. Eu não sei exatamente o que é, só sinto isso. — Ela parou por um momento, tomando um gole de seu capuccino. — Você tá com seus exames de sangue em dia? — Falou como se tivesse uma revelação. — Pode ser isso. Às vezes deficiência em alguma vitamina interfere na atenção.

Internamente, sorria com seu esforço para entender o que estava acontecendo e resolvi entender tal cuidado como uma gentileza, efeito da nossa amizade.

— Pode deixar, senhorita, daqui a 2 semanas eu vou fazer check-up no médico. Já tá marcado. Eu volto com meu hemograma pra você conferir também, tá? — Rimos. — De verdade, acho que é porque eu realmente tô preocupada com umas questões lá em casa. Mas já tô resolvendo, já já eu melhoro. — Tranquilizei-a, olhando nos olhos verdes da defensora pública. — E o , como está?

— Ai, menina, agora ele aprendeu a subir nos lugares. Sobe na mesa, sobe no armário e esses dias estava quase pulando do sofá. Quando eu tô de Home Office, quase fico doida, sabe? — Ela passou a mão sobre o volumoso cabelo moldado em diversos cachos ruivos, tirando o celular do bolso. — Mas ele é tão fofo que tudo vale a pena. Olha só ele falando as cores das coisas que eu mostrava pra ele. — Ela abriu a galeria e me mostrou um vídeo de uma das crianças mais fofas que eu já havia visto. — Inclusive, ele tá morrendo de saudades suas. Quando o Henrique vem me buscar de carro e ele tá na cadeirinha, sempre pergunta “Onde tá a tia Mô?”

— Ahhh… — Eu me derreti toda. Sempre amei crianças e acho que quem geralmente se incomoda, incomoda-se porque as crianças demonstram tudo que aprendemos a reprimir conforme crescemos. O jeitinho tão genuíno sempre me alegra e eu acabo interagindo quase que naturalmente com as crianças do meu dia a dia. — Eu também tô morrendo de saudades dele. Aquele cabelinho cacheadinho e o jeitinho da mamãe, não tem como não amar.

— Ah, imagina. — Ela agradeceu, ruborizada. — A propósito, daqui a uns dias eu mando o convite do aniversário dele pra você. Espero muito que vá!

Replicou e conversamos mais um pouco, enquanto finalizava meu intervalo.

***

A noite já havia despontado, 19:48 marcava meu relógio de pulso, mais um dia em que precisava de um tempo a mais para resolver as demandas do meu serviço. Tendo desligado o computador, retirei do monitor os post-its que sinalizam atividades que já haviam sido concluídas, rasgando-os e os jogando na cestinha que ficava próxima à minha mesa. Separei mais alguns processos que havia organizado, colocando-os do lado esquerdo da mesa e ajeitei alguns detalhes finais, passando — por fim — a bolsa transversa que trazia sobre meu corpo. Ajeitei o terno cor creme e me direcionei ao banheiro para conferir minha aparência antes de ir.

Estopim foi a expressão que descreveria minha irritação quando ouvi duas meninas — aparentemente pouco mais jovens que eu — conversando.

— Foi muito bom, não sei como descrever de um jeito realista. Mas ele pegou minha cintura e me imprensou. Cara, eu fiquei louca nessa hora. — A loira mais alta comentava com a morena de cabelos lisos, entregando que aparentemente eram amigas.

E foi nessa hora mesmo que decidi que deveria pressionar a torneira metálica e passar uma água no rosto, pois me senti paralisada por alguns segundos, lembrando-me da exata cena que havia alugado uma mansão na minha cabeça  durante as últimas semanas. Quando menos percebi, vi-me de olhos fechados, respirando fundo.

Eu estaria ao menos indiferente ou até um pouco feliz por ouvir sobre romances de gente ao meu redor se não me encontrasse evitando todo e qualquer pensamento sobre esse aspecto da minha vida.

As cenas da minha personalidade romântica tomavam conta dos meus pensamentos, invadindo meus raciocínios quando eu menos precisava, e meu corpo sempre reagia. Sempre ficava tensa, rígida, arrepiada.

Todo esse combo de sensações que eu não controlava me deixaram irritadiça desde quando vira Do Contra.

Tentando desvencilhar-me dessa teia de sensações e já no ônibus, peguei meu celular, que costumava evitar olhar no horário de trabalho.

Enquanto o aparelho ligava, mais uma vez me imergia na realidade de São Paulo, admirando desta vez um prédio desgastado na rua que percorria. Em tom creme, com algumas pilastras em pedaços, a pintura manchada e a fonte d’água abandonada em uma espécie de praça decorativa à frente da entrada do casarão faziam-me pensar sobre como era a dinâmica daquele lugar quando havia vida nele. Pessoas dançando, bailes do século XX? Quem sabe…

Olhando meu WhatsApp, algumas notificações despontavam, chamando minha atenção. Curiosa para ler as mensagens sem visualizar, acabei clicando nelas e fazendo justamente o que não queria.

Do Contra havia escrito: “Podemos ir às 20h, eu passo e busco você.” 

Meu coração saía pela boca. Era a primeira vez que iríamos sair desde o fatídico dia em que nos vimos. Se eu estava nervosa para respondê-lo ali, por mensagem naquele momento, quem diria vê-lo novamente. Ver aquele rosto que já estava gravado em minha mente e ficava passando como a única fita existente em um cinema.

***

Quase que num piscar de olhos — não pela facilidade em enfrentar a semana, mas pelo tanto de tarefas que me foram designadas —, a sexta-feira havia chegado mais uma vez. Como de costume, havia finalizado o trabalho total aproximadamente às 17 horas da sexta-feira e voltava agora para casa, tendo a oportunidade de ver o pôr-do-sol que, por conta da poluição, a cada dia pintava o céu de tons diferentes na capital. Seria bonito se não fosse trágico, ou seria mais trágico se não houvesse tanta beleza.

Em meus fones ressoava Glory Box, de Portishead.

“A thousand flowers could bloom

Move over and give us some room

Just

Give me a reason to love you

Give me a reason to be a woman

I just wanna be a woman”

***

— Sim, Magá, com o cabelo solto… — Respondia à minha amiga ao telefone no viva voz enquanto saía do banho. 

— Meu Deus, eu mal espero pra ver Mônica Sousa nessa roupa. — Ela respondia empolgada, trazendo-me reminiscências de nossa época adolescente. — Achei que você nunca iria usar.

— Eu estava só esperando a ocasião. — Ri com uma certa intenção. — Sei lá, eu achava ela meio clássica e meio romântica ao mesmo tempo. Mesmo que seja meu estilo, eu não tinha bem uma ocasião pra usar. — Completei. — Vou terminar de me arrumar aqui e te mando uma foto depois, tá? Obrigada por ter me ajudado a decidir.

— Ah, imagina! Me manda a foto sim que eu já estou curiosíssima. Eu também, vou terminar de arrumar a mala aqui pra pegar o vôo.

— Bom congresso, amiga! Certeza que você vai arrasar na sua apresentação, não teria como — em hipótese alguma — dar ruim um artigo tão bom daqueles. Você é incrível, Magali Fernandes! E isso me faz te amar mais. — Finalizei. Magali iria ao CONBRAN (Congresso Brasileiro de Nutrição) em Maceió, em que iria apresentar um trabalho submetido. Obviamente, estava extremamente orgulhosa de minha amiga e muito feliz por sua carreira. — Não se esqueça dos vídeos e das fotos, eu quero a gravação desse momento icônico, hein!

Sabia que ela teria destaque na área que escolhesse, mas nutrição materna certamente era uma subárea que fazia seus olhos brilharem e vê-la correndo para amplificar o acervo mundial deste assunto me deixava puramente acalentada por ter a oportunidade de ver trajetórias tão únicas durante minha vida. 

Cada indivíduo tem sua história, isso é óbvio. Mas durante a vida, somos especialmente tocados por algumas e nos sentimos na obrigação acompanhar aquilo, porque acaba se tornando envolvente. Desde muito cedo, era nítido demais o esforço da minha melhor amiga para concluir a sua graduação. Sua luta já havia começado no ensino médio, quando começamos juntas a estudarmos para o vestibular.

Havia sido desgastante, algo que drenou minha força e sua autoestima, pois o processo da competitividade em si é doloroso. Todavia, são companhias como as dela — que estendem a mão, que abraçam e acolhem o sofrimento — que tornaram essa jornada mais fácil. Ajudávamos-nos naqueles dias em que muitas vezes uma das duas se encontrava esmorecida pela rotina exaustiva de um cotidiano que ia muito além do estudo. Nossos laços somente se estreitaram durante a nossa maior crise e isso me fez ter a certeza de que realmente, nossas histórias seriam entrelaçadas pra vida toda.

Arrematando o encaixe do meu vestido escolhido — que era de cor vermelho cereja, mangas bufantes (puff sleeve), colo justo e com uma saia mais larga a partir da marcação do quadril, que possuía uma fenda que se iniciava na altura das coxas e terminava, juntamente ao vestido, um pouco abaixo do joelho — fui para o sapato, uma sandália  de cor perolada e tiras finas. O visual era basicamente estas peças em companhia a uma pequena bolsa tiracolo cor creme, de um couro sintético e os acessórios — uma pulseira com pequenas pérolas e um colar da mesma composição, conjunto que havia ganhado de minha mãe ao ser aprovada em meu curso e que guardava com muito afeto, pois me trazia certa sensação de tranquilidade. No rosto, havia optado por pentear as sobrancelhas preenchendo-as com uma sombra do tom natural, olhos com um clássico delineado, um blush bronze avermelhado e um batom nude mais escuro que meu tom de pele.

Pronta, posicionei-me em frente ao espelho e enviei uma foto para Magali. Por fim, ao passar meu perfume, conferi o celular novamente, que marcava 19:50.

“Sem querer ser ‘a emocionada’, mas se esse cara não quiser casar com você, não vai querer casar com mais ninguém nesse mundo não. TÁ SENSACIONAL, socorro.” — Vi a notificação pipocar enquanto abria o WhatsApp e ri com a reação da minha amiga.

***

Narração por Maurício

O relógio do carro marcava 19:50 e o GPS indicava que estava próximo ao seu endereço.

Não sabia o quê esperar ao vê-la em todos os sentidos: sua aparência sempre conseguia me deslumbrar em um aspecto diferente a cada vez que a via — fosse pelo celular ou enfim pessoalmente —, aquele rosto era uma exibição de arte à parte, suas reações sempre me surpreendiam — e eu estava gostando demasiadamente dessa imprevisibilidade —, enquanto as minhas fugiam de meu domínio.

Antes de virar sua rua, dei uma última conferida em como estava: vestia uma calça de alfaiataria — formalidade que não costumava seguir — marrom acinzentada cujo comprimento ia até um pouco acima do meu tornozelo, uma camisa de um branco-creme de linho e um um sapato social preto, enquanto a jaqueta preta de couro permanecia pendurada no banco do motorista.

Ao chegar ao edifício em que ela morava — um pequeno prédio simples, de uns 5 andares e com um gracioso jardinzinho —, vi-a descendo as escadas para a rua — que felizmente era calma e desértica — e tive certeza de que era privilegiado por uma das mais lindas visões da minha existência. Extasiado, perplexo, encantado, tentava a todo custo manter a compostura sóbria, recatada, tarefa que se tornou extremamente difícil ao sair do carro estacionado e vê-la mais de perto.

A roupa, o estilo que ela imprimia correspondiam exatamente à aura aprazível, fantasista, misteriosa da mulher que — sem esforço algum — governava meus sentidos.

— Boa noite, Mônica. — Aproximei-me dela, dando-lhe um abraço. Queria gritar ali mesmo o quão linda ela estava, o quão deslumbrado eu estava; queria levá-la a um mundo em que só estivéssemos eu e ela, todavia não conseguia expressar metade do que sentia pela tensão que aparentemente, não dominava apenas a mim. Meu coração palpitava, conseguia senti-lo eliciando uma onda de adrenalina em todo meu corpo.

— Boa noite, Do Contra. — Ela disse sorridente. Notoriamente, havia percebido seus efeitos sobre mim.

Abri a porta para a moça, que entrou.

Ao entrar no carro, percebi que Mônica parecia estar com dificuldades de ajustar o cinto e, embora fosse a cena mais clássica de um livro, cogitei prontamente ajudá-la. 

— Licença, vou te ajudar porque acho que ele travou. 

Aproximei-me de seu banco e acabei por aspirar o perfume floral ardente que ela usava. Puxando o cinto, passei-o por seu colo e seu tronco, apertando a fivela. O vermelho cereja contrastava com a sua pele morena, iluminada pela luz da rua.

Envolvente.

Ao observar os lábios acastanhados — tão bem contornados pela tintura marrom —, perdi-me. Nossos olhares se cruzaram magneticamente, seus olhos que só ficavam chocolate à luz do sol pareciam compunham uma cena estarrecedora de forma que apenas desviei-o para me concentrar em puxar o cinto.

Esse momento que se resumia a alguns segundos foi tentadoramente difícil, ainda mais pela proximidade de nossos rostos e a respiração descompassada que exalava não apenas pela força imprimida para ajustar seu cinto, como pela simples proximidade entre nós. Sincronicamente, ouvia a sua respiração e entendia o nervosismo entre nós.

— Obrigada. — Disse-me perto de meu ouvido, antes de me sentar. — Acho que ele tava emperrado mesmo. — Riu levemente.

Para incrementar o ambiente liguei o aparelho de som, conectado ao meu celular que tocava Deja Vu, de Requin Chagrin, e logo começamos a conversar com mais despojamento.

— Essa música é muito boa. — Ela dizia, enfatizando o “muito”, quando começou a tocar “Tranquility Base Hotel & Casino”, de Arctic Monkeys. 

— Pois é, e o interessante é que esse álbum no geral não foi muito bem recebido pelos fãs quando saiu. — Expus, embora fosse um dos meus álbuns favoritos da banda.

— Então… Acho que realmente foi porque é um estilo diferente do que eles produziam, mas um diferente original, um diferente autêntico. É um dos meus álbuns favoritos deles. — Com a janela aberta, ao olhar de relance, via o vento bagunçar seus cabelos castanhos.— Parece o tempo todo que o Alex está acobertando um crime no hotel. — Rimos.

— É essa a impressão mesmo. Não sabia que você gostava de Arctic Monkeys. — Olhei-a ligeiramente para que não perdesse a vista do trânsito. O GPS indicava que estávamos quase chegando ao restaurante. — Geralmente as pessoas tendem a achar meio adolescente.

— Talvez seja exatamente por isso. Não perdi meu lado adolescente. — Ela me olhou e um sorriso gaiato brotava nos lábios iluminados. — Mas… Me diga sobre você… qual é o seu gosto “Do Contra”?

Agora, Golden Trunks tocava.

“Last night when my psyche's

Subcommittee sang to me in its scary voice

You slowly dropped your eyelids

When true love takes a grip, it leaves you without a choice

And in response to what you whispered in my ear

I must admit, sometimes I fantasize about you too

[Tradução:

Ontem à noite quando

O subcomitê da minha psique cantou para mim com sua voz assustadora

Você lentamente deixou suas pálpebras caírem

Quando o amor verdadeiro toma conta, você fica sem escolhas

E em resposta ao que você sussurrou no meu ouvido

Eu devo admitir: às vezes eu fantasio com você também]

— Acho que o mais Do Contra que eu tenho é The Neighbourhood. Não que não seja popular, é que as pessoas costumam achar que a banda caiu num padrão de músicas iguais, que não tem muita personalidade, mas… Acho que é só prestar um pouco de atenção aos detalhes das composições que dá pra achar muita excentricidade. — Pensava. — Confesso que eu tenho um certo apego, comecei a gostar na adolescência e o estilo do Jesse Rutherford meio que me inspirava, ele agia de um jeito que eu não conseguia. — Lembrava-me da minha adolescência, em que queria conseguir romper a bolha das minhas frustrações.

— Sempre é uma fase complicada, pra você deve ter sido difícil de um jeito ímpar. — Em nossas diversas conversas, ambos compartilhávamos nossas histórias e isso incluía como a relação com o mundo havia mudado ao longo do tempo, como enfrentávamos nossos problemas. Ela sabia da sociofobia e nunca me julgou; pelo contrário, Mônica me acolhera. — Mas é muito bom ver que você está superando isso a cada dia. — Ela se virou para mim. 

— Isso também me faz muito feliz. Você sabe que tem um papel importante nisso. — Disse sorrindo e muito corado, enquanto chegávamos ao restaurante de comida japonesa onde jantaríamos.

Estacionando o carro, saímos e ela aparentemente admirava o local onde já havia feito várias refeições ao longo dos anos na capital — claro, aos finais de semestre, quando tinha um dinheiro ajuntado.

Ao adentrarmos o espaço, escolhemos uma mesa que abrigava uma vista através da janela, embora a vista dentro do restaurante em si fosse suficientemente charmosa.

Narração por Mônica

Uma mesa para dois. Nossos rostos um de frente para o outro. Nossas mãos não tão afastadas.

O restaurante que ele havia escolhido era incrível. Pelo que vi da decoração da grande sala, parecia ser mais voltado para uma culinária clássica do Japão — coisa que certamente ele conhecia bem, por conta da família e das raízes.

Havia mesas com assentos no chão e mesas com bancos acolchoados — opção que preferimos — e as luminárias (chouchin) tradicionais, de estrutura de bambu e cobertura de papel. As paredes eram trabalhadas em talhas na madeira e a iluminação era mais intimista, com luzes amarelas não tão intensas.

Olhando o cardápio, pedimos sushi pra dividir e eu me decidi por um rámen com carne de soja, enquanto ele escolheu Okonomiyaki, uma espécie de panqueca recheada e grelhada com os ingredientes escolhidos pela pessoa que vai comer. Acompanhando nossa entrada, fomos servidos por um sakê produzido na casa.

— Esse lugar me traz tantas memórias. Todos os finais de semestre vinha aqui, com meu avô, comemorar que estava um passo mais próximo de me formar.

— Parou de vir? — Que eu me lembrasse, ele ainda não havia se formado.

— Desde 2020, quando meu avô faleceu, sim. — Completou olhando um pouco para o saquê, um pouco para a mesa. Senti-me levemente constrangida por ser tão direta na pergunta, mesmo que não tivesse como saber.

— Sinto muito. — Sorri docemente, meio melancólica. — Vocês eram muito próximos?

— Sim. — Ele sorriu, revelando uma mente nostálgica que provavelmente não estava aqui agora. — Desde bem criança, tipo com uns 6, 7 anos, quando a minha família se mudou para Mogi das Cruzes, onde meus avós moravam, passei a frequentar bastante a casa deles. Foi como conhecer alguém de novo; antes disso, a gente não costumava se ver sempre, a gente ia quando meus pais podiam ter uma folga do trabalho. — Ele tomou um gole da bebida. — Quando eu cheguei em Mogi, estava me recusando a acreditar que já não moraríamos mais em São Paulo, ficava triste e achava que aquela cidade seria entediante, sabe? — Encarou-me, que ouvia a história com atenção e curiosidade. — Mas meu avô teve toda paciência comigo e com meu irmão, ele sempre levava a gente pra uma feira japonesa que costumava acontecer aos domingos e a gente comia gyoza. Eu sempre pedia de carne de porco e o Nimbus, de vegetais. Só de passar aqueles momentos sentados na feira, vendo o movimento e brincando enquanto nossos pedidos não chegavam, eu já poderia dizer que ele fez parte especial da minha infância. Mas meu avô me ensinou muitas coisas… Eu aprendi japonês porque ele tinha toda a paciência do mundo para me ensinar e me interessei pela medicina porque ele próprio seguia muitas práticas da medicina chinesa. — Ouvir de parte de sua infância era enternecedor, pois se abrir desta forma é um gesto de vulnerabilidade.

— Uma história muito bonita, DC. Quando você o perdeu, como fez pra lidar com isso? Eu não sabia. — Estava interessada. Nós conversávamos desde essa época e DC não parecia tão abalado.

— Eu sempre tentei manter a memória dele viva. Comecei a escrever sobre essas coisas, tocar as músicas que a gente gostava de ouvir, mas foi muito difícil. Foi um momento em que eu me isolei ainda mais do mundo, meus pais não sabiam como me ajudar. O Nimbus conseguiu. Ele sempre vinha pra cá e acabava me puxando pra fazer umas coisas, pra sair por mais que eu não quisesse. Acho que foi a época em que eu mais conheci São Paulo. — Fez uma careta pensativa e me fitou. — Mas e você? Como foi sua infância?

— Pra começar, acho que diferente da sua. — Rimos. — Cresci aqui em São Paulo mesmo e você sabe o quão agitado é aqui. Minha rotina era corrida, mas uma das coisas que mais me deixavam feliz eram as aulas de ginástica de um Centro Cultural perto de casa. Foi lá que eu conheci a minha melhor amiga, a Magali. Descobri que a gente tinha muito em comum no dia em que ela chegou pra aula como aluna nova, a mochilinha dela era do Totoro, de um filme que eu gostava muito. Cheguei até ela no intervalo e a gente comeu juntas, sentadas nas bancadas da quadra. E desde então, a gente não se largou mais. — Sorria feliz ao me lembrar da nossa infância. — Éramos sempre eu e ela e o mais engraçado é que a gente era meio opostas: a Magá sempre foi mais delicadinha, quase sempre chegava em casa com o cabelo intacto e gostava bastante de comer e eu era mais brava, às vezes corria atrás de uns meninos que vinham me provocar e acertava com coelhadas do meu bichinho de pelúcia, um coelho que eu chamava de Sansão. — Acrescentei.

— Coelhadas, Mônica? — Do Contra parecia meio incrédulo. — Você não parece muito violenta, mas imaginar isso é engraçado.

— Não pareço, mas não me desafie. — Brinquei. — Depois, conforme eu fui crescendo, eu aprendi a controlar meus acessos de raiva. Mas quem convive comigo me acha um pouco geniosa.

— Com certeza é dona de uma personalidade muito forte, mas isso é muito cativante. — Maurício abriu aquele sorriso que mostrava suas covinhas. Aquele que — descobri — quase me fazia desaprender a respirar.

Nossos pedidos chegaram e continuamos conversando, descobrindo mais coisas um sobre o outro.

***

Entrando em seu carro, estávamos indo… 

— Não acabou ainda. — Ele diz, confiante. — Quero que a gente veja um lugar hoje. — Disse-me tranquilo. Meu coração já começava a palpitar, sabia e sentia que as coisas estavam ficando mais sérias.

A expectativa do que poderíamos vivenciar me deixava nervosa — não era muito difícil me lembrar das cenas no bar da Augusta quando fechava os olhos —, mas sua companhia me acalmava.

Conforme o carro fazia voltas e voltas pelas ruas da capital, comecei a reconhecer e me familiarizar com a região por onde passávamos: Vila Mariana. Quando nos aproximamos do conhecido Ibirapuera, senti-me ainda mais animada.

Caminhávamos calmamente à luz da lua pelas ruas do parque, devidamente organizadas e verdejantes quando avistei um Food Truck de sorvetes.

— Do Contra… — Proferi meio absorta na ideia da sobremesa.

— Faço questão de pedir, que sabor você quer? — Ele disse risonho, me olhando. E eu reparei que havia deixado minha lombriga interna evidente demais.

A maioria das pessoas diz ter um leão interno, como uma fera que sempre aparece em conflitos morais e expressa a tendência de agirmos por impulso, instintivamente. Pois eu digo que tenho uma lombriga interna, porque frequentemente me deparo com uma vontade incontrolável de doces.

No fim, ele também queria um sorvete. Ambos pegamos casquinhas… Eu escolhi de morango com lascas de chocolate e ele de pistache com menta — junção que eu particularmente nunca tinha pensado em fazer. Tomamos nossos sorvetes sentados no banco da praça do lago do parque, em uma vista iluminada pelas reflexões da luz na água.

Mas como tudo em São Paulo, a chuva chegou de forma imprevisível quando havíamos terminado nossas sobremesas e, assim, saímos correndo para a árvore mais perto.

E foi assim que, quando vi, já entrelaçava minha mão à sua e nossas roupas estavam molhadas pela água que escorreu inevitavelmente no trajeto.

— Mônica, eu realmente preciso saber de uma coisa. — Do Contra me olha sério enquanto passava a mão sobre meu vestido.

— Pode falar, Do Contra. — Eu o encarei de volta, sinalizando que estava ali para o que precisássemos conversar.

— Quando a gente se viu pessoalmente, eu falei que queria saber várias coisas e não sabia se aquele era o momento sério. — Engoli em seco. — Mas eu já não posso mais esconder, isso me incomoda faz uns dias porque entra em conflito com o que eu sinto. O que você quis dizer com aquela mensagem sobre o seu texto favorito? Você sabia que era meu, não sabia? — Ele me encarava tão de perto que meu rosto ardia.

— Sabia. — Eu falei respirando com uma certa dificuldade. — Eu sabia, Do Contra. — Respondi à sua pergunta, o que exprimia minha irritação. Com tantas atitudes pra tomar, ele resolveu trazer um assunto sobre o qual eu não queria falar.

— Por que nunca me disse antes que lia os meus textos daquele perfil? Eu sempre fiz questão de não deixar aparecer no meu perfil do Facebook, não sei como você descobriu, mas eu escrevia coisas muito pessoais ali. Era pra ser um pseudônimo. — Ele disse e, embora sempre fosse doce, eu senti uma certa chateação, até uma irritação em sua voz.

— Me desculpa. Me desculpa por ler os textos que você não queria que eu lesse. — Eu disse um pouco mais zangada do que gostaria. — Se você quiser, pode mudar o nome do perfil, saiba que eu nunca mais acesso. — Disse levemente ressentida. — Eu só não entendo por que isso se tornou uma questão tão grande agora… — Estava a um passo de lacrimejar. Tudo que vivemos naquela noite havia sido tão bom para acabar de uma forma tão abrupta, em um caminho tão subversivo ao que eu sentia que precisava…

— Porque eu escrevia sobre você, Mônica. — Ele tocou meu queixo, erguendo-o levemente. — Em quase todos os textos, tinha você. — Ele estava corado, mas parecia mais colérico para falar do que para calar. — Sempre você.

Lembrando-me das palavras tão bem colocadas, dos textos tão envolventes que lia, não pude não me emocionar em pensar que poderiam me descrever.

— E eu queria ter certeza de que você soubesse disso quando nós estivéssemos juntos. Como aqui, agora, sabe?

Não pensei nem duas vezes.

Meu corpo já não me obedecia, minha mente não queria escutar mais comandos.

Abracei-o como nunca antes. Era tudo tão lindo, um turbilhão de pensamentos me invadia sem alguma cerimônia.

— Muito obrigada por isso. Acho que é a declaração mais genuína que alguém poderia receber. — Disse enquanto algumas lágrimas involuntariamente escorriam. Ficamos um bom tempo assim, ou talvez eu não tenha percebido o tempo passando naquele abraço tão bem encaixado. — Eu também preciso dizer que, tem uma coisa que eu fiz que gostaria de corrigir. 

Afastei-me por um momento, desfazendo o abraço e me aproximando novamente.

Encontrava-me à altura dos seus lábios, então ergui a ponta dos meus pés.

— Eu quero te beijar sóbria.

Voltei o olhar aos seus olhos, que me transmitiam um enigma que indubitavelmente queria desvendar. Olhos turvos como o céu em um dia de chuva.

E saboreá-lo foi uma das melhores sensações que poderia guardar para despertar todas as sinapses dos meus cinco sentidos. Quando nossos lábios se tocavam, sentia facilmente que poderia derreter. Quando suas mãos apertavam minha cintura e me guiavam a me apoiar na árvore que abrigava esse momento, poderia paralisar aquele momento pra sempre.

Quando nossas peles, levemente molhadas pela água da chuva, se atritavam, eu me sentia recomposta, rearranjada.

Quando nos uníamos ainda mais, sentia um calor que se irradiava por toda minha extensão.

— E eu quero te beijar sempre. — Ele dizia, quase sem fôlego. — Sempre. — Beijou minha testa. — Não importa quando. — Beijou meu pescoço e eu começava a arfar, sufocada pelo meu próprio desejo. — Não importa onde. — Beijou meu colo e eu me concentrava para me manter firme. — Eu quero você, Mônica.


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Notas finais do capítulo

sim, meus amores. VEIO AÍ!
link da playlist: https://open.spotify.com/playlist/74u0xAC2cf7Ref5neADgBW?si=fb74907ce8e54500
pra vocês terem uma noção do vestido da mô: https://images.liketoknow.it/51d9f233-05fd-11ec-817f-0242ac110004?v=0&auto=format&fm=webp&w=450&q=80&dpr=3&epik=dj0yJnU9dm5sMmM3UmNwUDBqeDRYVE9ldGd1andrSTNIUmtvT2omcD0wJm49ZnpvZExGNFhacnptNUNQZGNrclBXQSZ0PUFBQUFBR0xrV1Zz
enfim, espero que tenham gostado e expressem esse contentamento nos comentários.
até o próximo



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