Recreio Inesquecível escrita por Renan


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

É a primeira vez que publico algo neste site com personagens originais.
Se possível, comentem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805225/chapter/1

Assim que a terceira aula do dia terminou e a professora começou a guardar suas coisas, Jéssica levantou da carteira e ia sair da sala, como quem está com pressa de resolver alguma coisa. Antes que pudesse sair, teve sua atenção chamada pela colega que sentava atrás dela.

— Ei Jeh, a gente vai resolver sobre os fundos pro clube de teatro agora?

— Ah... – foi dizendo Jéssica, sentando-se de novo – Pode ser depois da escola? Tenho algo pra resolver agora.

— Claro, qualquer coisa a gente sai junto. – respondeu Lana, com um sorriso discreto.

— Obrigada. – disse Jéssica educadamente, enquanto ia se afastando e sendo observada pela outra.

Jéssica correu em direção ao banheiro feminino, olhou cabine por cabine e saiu após perceber que todas estavam vazias. Em seguida correu para a quadra, que estava cheia de meninos esperando alguém trazer uma bola. Jéssica conferiu um espacinho entre a quadra e a secretaria onde os alunos normalmente deixavam suas bicicletas, não encontrou o que procurava. Fugiu discretamente dali antes que acabasse atrasando um jogo de futebol, e envergonhada com a hipótese de poder estar sendo observada por alguns meninos, enquanto passava a mão por seu cabelo escuro comprido.

A sala de música costumava ficar vazia durante grande parte da semana, em parte porque muitas vezes não havia necessidade de subir escadas pra ter aula lá se o conteúdo podia ser passado nas classes normais. Jéssica foi em direção à sala de música, abriu a porta silenciosamente e entrou. Caminhou alguns passos olhando para os lados e para o fundo da sala, parando por um instante ao perceber um tênis all-star e pernas cobertas por calça jeans pertencentes a um corpo meio escondido por um armário.

Andou mais alguns passos e colocou as mãos na cintura, fazendo uma pose de autoridade enquanto visualizava cada vez mais o corpo da jovem ali escondida, encostada no armário. Uma garota com cerca de 1,60 de altura, cabelos castanhos razoavelmente curtos, uniforme escolar coberto por uma jaqueta jeans, e os já mencionados all-star e jeans na parte inferior do corpo. Ela estava ouvindo música no celular com fones de ouvido, enquanto balançava a cabeça. Mesmo imersa em seus pensamentos que podiam ou não ter alguma relação com a música que escutava, percebeu algo diferente pelo canto do olho. Virou-se e tomou um susto momentâneo ao notar alguém lhe encarando, mas suspirou aliviada logo em seguida enquanto arrancava os fones de ouvido puxando-os forçadamente.

— Que susto! Pensei que era a faxineira.

— Bem que podia ser, Laura.

— Como me achou aqui?

— Eu vi você de relance no pátio hoje de manhã com cara de sofrência, mas não te vi na classe e resolvi te caçar. Conheço suas poucas opções de refúgio pra matar aula.

— Vai contar pra diretora? – perguntou Laura, com cara de frieza.

— Talvez na próxima vez. Agora é melhor você ir pra classe.

— Você é tão certinha, devia estar num colégio de freiras.

— E você num reformatório, quem sabe. Só estou fazendo o que é melhor pra você, pois se não gosta da escola provavelmente não vai querer demorar um ou dois anos a mais pra se formar. O 2º ano é como os 20 ou 30 do segundo tempo.

— Eu bebi ontem e acordei com a cabeça uma merda. Se eu fosse pra aula e ainda tivesse que ouvir bronca da professora, eu ia acabar com enxaqueca. Ainda bem que passou.

— Acho que eu não preciso fazer papel de mãe e lembrar que você é fraca com bebida, ou que devia esperar se formar pra beber assim. – disse Jéssica, sentando-se em uma cadeira enquanto a colega levantava do chão e se espreguiçava.

— Eu fiquei um pouco no banheiro e enjoei dali, dormi um pouco juntando uns bancos aqui mas teria sido melhor dormir no chão. Não deu tempo nem de ouvir três músicas antes de você chegar.

— Seu cabelo ia ficar sujo se deitasse no chão.

Tãããão certinha...

— Não tem nada a ver com ser certinha, toda garota valoriza o próprio cabelo. Ser meio tomboy não te torna menos mulher. Fora que você gosta muito mais de atrair pessoas do que eu.

— Vai me chamar de vadia mesmo? – perguntou Laura, fazendo a mesma pose com mãos na cintura que a colega havia feito anteriormente. Jéssica deu um risinho.

— Eu não julgo as pessoas tanto quanto você pensa, eu apenas gosto que elas tenham a cabeça no lugar pra não acontecer besteira. Por coisas assim me elegeram presidente do conselho estudantil mesmo eu sendo menos extrovertida que você, por exemplo.

— Estudante-modelo introvertida e garota-problema extrovertida, isso dá uma comédia romântica. Oh, lembrei que você é da igreja. Não pode andar muito com uma bi pecadora como eu. – disse Laura, com uma certa teatralidade.

— Você sabe que eu não acho que LGBT’s vão pro inferno. Não ligo pro fato de você ser bi.

— Verdade, e você ainda não me explicou aquela curtida sua num post sobre bissexuais no Facebook.

— De novo essa história? Eu apenas concordei com a descrição do post, não é motivo pra você achar que eu também sou bi. E não desvie tanto do assunto, você vai acabar repetindo se continuar matando aula assim.

— Que saco! – exclamou Laura, encostando-se na parede com os braços cruzados e olhando para o outro lado.

— Eu sei que você me acha chata, mas eu não tô nem mandando você parar de andar com gente questionável, ir pra igreja, tirar dez nas provas, nem nada assim. Só tô te dando o toque que sua mãe e suas amigas não te dão.

— Minha mãe me dá o toque sim. – foi dizendo Laura, séria. – Mas ela não se importa comigo o suficiente, então eu não ligo muito.

— Mas ela paga a sua escola, você tem que ter uma certa consideração também. Eu sei que vocês não se dão muito bem, mas tem como isso ir mudando.

Por alguns segundos, houve um silêncio desconfortável. Jéssica sabia que era um tema delicado e não tinha mais muita ideia do que dizer, enquanto Laura estava bem pensativa.

— Tive uma ideia. – disse Laura. – Vamos tirar no cara ou coroa. Se sair coroa você me deixa quieta pelo menos por essa semana. Se sair cara... hum... beijo os seus pés por um minuto, volto pra classe depois do intervalo e você pode ficar sem conversar comigo amigavelmente até o fim do ano caso eu não tire pelo menos 7 na próxima prova.  

— Não precisa exagerar incluindo isso de beijar os pés. E eu quero que você vá pra sala de qualquer maneira.

— Oh, não, não, não! Quero sair bem no prejuízo se for cara, já que a madame está se controlando pra não brigar mais comigo. Se sair coroa você ainda vai poder implicar comigo nas poucas semanas seguintes antes das férias.

— Ainda acho isso dos beijos desnecessário. – disse Jéssica, enquanto olhava para seus pés calçados com sapatilhas. – Mas já que quer ir longe, beleza.

Laura tirou uma moeda do bolso e conferiu ela de forma estranha. Jogou pra cima com um peteleco do dedo indicador e a fez cair nas costas de sua outra mão, cobrindo a moeda.

— Seja o que o seu Deus quiser.

Laura afastou a mão e revelou o resultado. Saiu cara, para a felicidade de Jéssica.

— É, parece que Deus está do seu lado mesmo. – atestou Laura, num misto de desânimo com um enigmático sorriso.

— Do nosso lado! Ele sabe o que é melhor pra ambas. Mas não ponha o nome do Senhor nisso, ele não necessariamente intervém em tudo e você nem acredita nele.

— Não é que eu não acredito, eu sou agnóstica. Diria até que agnóstica teísta, só não penso muito sobre. Mas alguém que acredita em anjo da guarda tem que acreditar em Deus também.

— Não sabia que acreditava em anjos.

Laura virou de costas e respirou fundo algumas vezes, fingindo que estava se preparando para alguma coisa, quando na verdade apenas não queria que ficasse evidente que estava se controlando pra não rir. Laura admirava um pouco a ingenuidade de Jéssica, exemplificada pela incapacidade de perceber que se referiu à ela quando mencionou anjo da guarda.

— Bem, agora vou ter que pagar a aposta e beijar os seus pés por um minuto. Olha no cronômetro do meu celular.

— Não acha isso anti-higiênico ou algo assim? Mesmo sendo a parte de cima?

— Não interessa o que eu acho. Prometi, tenho que cumprir. Posso ser uma vadia que mata aula mas tenho minha moral e ética.

Jéssica tirou suas sapatilhas e ajeitou o cronômetro do celular da colega. Estava sentindo uma certa adrenalina por dentro, porque alguém podia abrir a porta e encontrá-las naquele ato estranho, mas parecia tarde pra dizer alguma coisa e Laura já estava ajoelhada com seus pés nas mãos.

— Vai! – disse Jéssica, acionando o cronômetro.

A coisa toda foi mais estranha do que ela esperava. Observou que Laura estava de olhos fechados enquanto beijava seus pés, e estranhou a expressão dela. Parecia alguém que estava realizando alguma espécie de fetiche, ou que não parecia estar fazendo isso como uma punição, ou até que estava dando uma demonstração exagerada de admiração por alguém. Ela cobria toda a parte de cima dos pés de Jéssica com beijos, e apressadamente deu bitocas em cada um de seus dez dedos. Jéssica estava corada de vergonha e até esqueceu de olhar o cronômetro. Quando percebeu, o minuto já havia passado, mas o misto da vergonha que estava sentindo com o divertimento que Laura parecia estar tendo a fez não saber como deixar qualquer som escapar da sua boca, mas resolveu não tirar mais os olhos do celular.

Mais 10 segundos haviam passado, e outros 10 em seguida. Ia ficar muito evidente que o tempo estava correndo além do combinado, e alguém podia acabar flagrando elas ali.

— Já deu o tempo, Laura. – avisou Jéssica.

Laura abraçava os pés de Jéssica, não dava pra ver direito o rosto dela. Ignorou o aviso.

— Laura, eu disse que o tempo acabou! – avisou novamente Jéssica, um pouco trêmula.

Quando estava prestes a dar o terceiro aviso, Laura subitamente parou de beijar, fazendo apenas um carinho em seus dedões. Mas Jéssica sentiu algo estranho em seu pé, algo como uma gota caindo. Era uma lágrima.

— Ahm... Laura?

Jéssica recolheu seus pés. Laura levantou o rosto, estava chorando com um olhar triste enquanto olhava para a amiga.

— O que houve com você? – perguntou Jéssica, preocupada.

— Eu não sou importante, Jéssica. Pra todo o resto eu posso só me foder que ninguém liga, e ainda ajudam a me afundar ainda mais – disse Laura, com cada vez mais lágrimas caindo.

Jéssica rapidamente ajudou Laura a levantar, e a puxou pro seu colo enquanto sentava novamente na cadeira. Ajudou a limpar as lágrimas dela.

— Calma, respira e me diz o que acontece de errado.

— Lembra da vez que você tirou uma lata da minha mão, quando eu estava na varanda daquela festa no mês passado, e me deu um tapa na cara?

— Ai, eu tinha medo que você lembrasse disso! Me desculpa, não era pra eu me meter assim na sua vida e muito menos te bater. Eu teria faltado se a Lana não tivesse insistido pra eu ir. 

— Não é isso. Você tirou porque sabia que eu era fraca com bebida e estava passando do ponto. Mas eu não te contei que o Johnny tinha me desafiado a tomar três latinhas inteiras e ia me dar 100 reais se eu conseguisse. No calor do momento eu aceitei.

— Você tem que tomar cuidado com essas coisas. Mas ainda não justifica o que eu fiz.

— É que ontem... eu descobri que o Johnny assediou uma amiga minha, por pouco não aconteceu algo pior. Foi por isso que eu peguei bebida na geladeira ontem e fiquei meio bêbada antes de dormir, eu precisava me acalmar depois de saber disso.

— Calma, não se sinta pressionada a continuar falando. – disse Jéssica, percebendo que a amiga estava aflita.

— Naquela noite, naquela festa... eu provavelmente teria entrado em coma alcoólico, ou ele se aproveitaria do meu estado pra fazer algo comigo, e eu estaria muito mais incapaz de reagir do que a minha amiga. – Laura pôs as mãos nas bochechas. – Teria dado uma merda muito grande! Parece que tudo na minha vida tem risco de dar uma merda grande. E mesmo minha mãe não querendo que eu vá pro fundo do poço, ela às vezes parece que me despreza.

— Me escuta, só me escuta. Um dia vai ficar claro que a sua mãe se importa com você, ela só não sabe como lidar com as suas mudanças de adolescentes, e ainda deve estar se recuperando pela morte do seu pai. Eu sei que eu sou chata tentando te fazer “entrar na linha”, mas é justamente porque eu me importo com você. Você tem vários amigos e amigas a mais do que eu, mas a maioria não bate muito bem da cabeça e acaba que ninguém te dá uns toques que você precisa, mas também não quer dizer que não ligam pra você. Sei lá, não quero que você ache também que tô tentando controlar com quem você anda.

— Eu entendo. Na verdade agora eu vejo que eu exagerei. – disse Laura, levantando do colo de Jéssica. – Eu tenho que aprender a controlar minhas emoções direito, e dar uma maneirada na bebida.

— E no cigarro?

— Juro que só fumei um maço e meio na vida, e não pretendo fumar outro! Me desentendi com o povo que me aconselhou a experimentar. – explicou, limpando os últimos resquícios de lágrima em seu rosto.

— Melhor assim. Bem, o recreio deve estar quase acabando já.

— “Recreio”, hihi.

— Sim, caralho, quer que eu fale intervalo?!

— Nossa, que má influência que eu sou! Você tá até falando palavrão.

— Eu falo palavrão às vezes... só quase nunca vejo motivo pra isso. Agora me escuta.

Jéssica começou a ajeitar o cabelo e a roupa amarrotada da amiga.

— Eu realmente não gosto de ser considerada chata pelas pessoas, embora seja inevitável, eu só quero aconselhar mais uma vez pra você tomar cuidado com essas pessoas com quem você anda e esses excessos. Se você repetir de ano, eu e você não seremos da mesma classe no ano que vem. E eu quero te ajudar a deixar sua mãe orgulhosa. Entendeu?

— Aham. – respondeu Laura, meio envergonhada enquanto a outra lhe ajeitava. – Você é legal, pena que as pessoas não falam muito com você sem ser pra pedir ajuda e resolver as coisas do conselho. Você é prestativa.

— Eu sou um tédio de pessoa, mas consigo conviver com isso. Você está prontinha.

Laura fez um biquinho e fez que ia dar um beijo na boca de Jéssica, que reagiu defendendo-se com uma mão.

— Não vou perder meu BV assim de jeito nenhum. Para de palhaçada. -disse Jéssica, um pouco contrariada.

— Desculpa.

— Lembre-se do que combinamos na moeda, tem que tirar uns 7 pra cima na próxima prova e evitar ficar matando aula.

— Jóia. – disse Laura, fazendo um sinal positivo.

Repentinamente, Jéssica segurou as bochechas de Laura, que era uns 10 centímetros mais baixa, e beijou sua testa. Laura teve uma inesperada reação de dar um passo pra trás e puxar a gola do uniforme pra cima, cobrindo o rosto até a altura do nariz e se virando.

— Ei, eu acabei de ajeitar a tua roupa! E que surpresa é essa?

— É que foi muito “do nada”, sei lá. – disse Laura, corada, sem se virar.

— Nem faz sentido, tu já beijou um monte de bocas. Quantas mesmo?

— Não tenho certeza... menos do que você deve achar.

Na verdade Laura tinha 80% de certeza de que já havia beijado 14 pessoas (10 meninos e 4 meninas), mas queria ter o benefício da dúvida, além de imaginar que a outra considerava considerava muito pra quem ainda é menor de idade. Virou-se de volta para Jéssica.

— Mas sabe... ninguém nunca me deu um beijo terno na testa antes. Talvez só minha mãe quando eu era pequena.

— Você ainda é meio pequena. – zombou Jéssica, em referência ao fato da outra ter uns 10 centímetros a menos. Laura respondeu com uma língua pra fora, de brincadeira.

— Posso te chamar de mamãe?

— Cê vai acabar me chamando independente de eu deixar ou não.

— Nossa mamãe, me acha tão malcriada assim?

— Aiai...

— Quero mamá! – disse Laura abraçando Jéssica e tentando beijar os seios dela por cima do uniforme.

— Sai, doida! E toma aqui sua moeda.

Laura pegou de volta a moeda que havia esquecido de escondeu no bolso, e por um segundo temeu que Jéssica tivesse percebido que era uma moeda falsa que os dois lados eram cara, mas mesmo se ela percebesse, provavelmente não diria. Saíram da sala de música ao perceberem que estavam atrasadas pra voltar do intervalo.

— Quer sair comigo mais tarde? – perguntou Laura.

— Tenho coisas do conselho pra ver, e no fim da tarde vou pra igreja.

— Tem alguém sentada atrás de você hoje?

— A Lana.

— Ah, a cachorrinha do Conselho.

— Não fala assim dela, é uma das pessoas que mais me respeita.

— Tá bom...

— Ciúmes? – perguntou Jéssica, indo pra um lado.

— Nem um pouco. – respondeu Laura, indo se hidratar no bebedouro antes de entrar na sala.

Cochichou para Lana uma pequena ameaça de revelar um segredo que tinha conhecimento caso ela não mudasse de lugar. Apesar da garota em sua frente ser mais alta e isso dificultar pra que enxergasse a lousa, queria poder olhar de perto o cabelo dela sem que ela percebesse e talvez sentir um pouco do aroma. Mas também prestaria um pouco de atenção nas aulas, pra garantir uma nota boa na próxima prova.

De alguma forma, aquele recreio com certeza tinha sido uma experiência inesquecível.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!