Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 6
Gatos, acordos e (mais) bolo




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Quando a tia Georgie me disse que todos aqui se conheciam e eventualmente viriam a me conhecer, eu não pensei que seria por conta de uma calúnia.

Certo, confesso que a portadora das noticias não foi lá muito agradável, o que contribuiu para que eu ficasse com um pé atrás na história. A mulher chegou toda empertigada, como se a palavra dela fosse lei, olhando para mim como se eu fosse uma mercadoria. Tia Georgie a olhou com seus olhos de falcão enquanto ela falava, e depois a enxotou com uma tirada inteligente. A mulher, que ia buscar a filha nas aulas particulares, contou a mesmíssima história que a garota – May –, com exceção do tom debochado.

— Essa mulher acabou de dizer que ouviu falar muito bem de mim? — franzi a testa. — Eu deveria ter entendido?

— Ah, não. Eu não me envolvo na rede de fofocas, mas há um grupo seleto que se sente na obrigação de me informar mesmo assim.

— Oh, nossa... Mas... De quem estamos falando? Digo, quem é que eu abandonei, meu Deus?

— Da florista. Emilia? Se não é isso, é algo parecido. É uma mulher inofensiva, não compreendo como pode estar relacionada a uma coisa como essas — então, tia Georgie suspirou. — Se bem o conheço, vai tirar isso a limpo, não vai?

— É bom, não é? — dei de ombros. — Não quero começar aqui com a reputação de adolescente emocionado. Onde posso encontrar essa Emilia?

Tia Georgie escreveu o endereço num pedaço de papel rasgado, entregando-o a mim.

— Ela mora na rua do “velho Lyle”, se não me engano. Pelo menos, se não a encontrar, vai encontrar quem o guie.

— É mesmo tranquilizador — tamborilei os dedos nervosamente no papel, com a forte impressão de que as letras saltavam para fora direto nos meus olhos. — Dá para ir desse jeito?

Ela me mediu de cima a baixo, no melhor estilo Miranda Priestly. Franzi a testa e acompanhei o movimento de seus olhos, me dando por vencido depois dessa.

— Ok, eu já estou indo — ergui as mãos em defensiva, fazendo com que ela risse. — Não vou deixar ninguém dizer que ando como mendigo pela rua.

— Acho bom mesmo. Vai, anda.

Após ser enxotado com classe, tratei de colocar uma roupa mais casual e me programar para não me perder nem no Maps nem presencialmente. O problema era que eu não sabia o que esperar nem o que eu diria quando chegasse lá. Eu precisava resolver aquela história, aquilo era óbvio. Mas... Eu não sabia ao certo o que sentia sobre. Ao menos, até o momento não.

Era um mal-entendido daqueles. Mas parecia um que talvez eu fosse rir depois, então... Para quê me antecipar? Nunca diria em voz alta, porém creio que nunca tive tanto autodomínio para especulações mirabolantes quanto naquele dia.

Talvez autodomínio até em excesso, porque hesitei uns belos minutos antes de bater à porta. Respirei fundo e estendi a mão, percebendo tarde demais que havia uma campainha logo ali ao lado. Meu Deus, é claro que havia, eu estava em outro planeta por acaso? Percebi igualmente, tarde demais que, enquanto estava com a mão no ar, a porta havia se aberto magicamente e que parecia que eu estava prestes a socar alguém. Isso se reafirmou quando escutei o arquejo sufocado da mulher atrás da porta.

— Ai meu Deus — ela se tremeu toda, abraçando-se ao refratário que trazia em mãos. Um gato se enroscava em suas pernas, então concluí que a cena não poderia ser mais cômica. Definitivamente nada como o esperado. Ainda bem que não especulei nada. — Walt, calma aí! Moço... Abaixa essa mão, eu juro que não fiz por mal.

Intrigado com todo o conjunto da obra, eu pisquei confuso.

— Eu... Não ia bater em você, ia bater na porta. Foi você quem a abriu antes de eu fazer isso. Eu vim em paz.

Aparentemente, eu estava em outro planeta.

— Hum... Bem que Walt tentou me avisar. Desculpe-me, querido.

Quando pensei em estranhar o fato de a mulher me chamar de “querido” assim sem mais nem menos, percebi que ela falava com o gato nessa sentença. Perdi uns segundos analisando sua aparência – olhos castanhos e cabelos bem escuros, compridos, uma franja um pouco maior que devia... Nariz pequeno, fino, lábios grossos... Meu Deus. Era uma modelo perdida, e eu esperava uma solteirona acabada...?

Pigarreei, tanto para voltar à realidade quanto para relembrá-la de que eu estava ali, pedindo algum norte. A mulher empertigou-se com o refratário, fazendo com que o gato voltasse correndo para dentro como se fosse um foguete. Pobrezinho.

— Eu procuro... É... Emilia Lewis?

Ela exprimiu um muxoxo, deixando os ombros caírem em completo desânimo.

— É Cecilia. Mas a sonoridade é... Parecida.

— Ah! — senti minhas bochechas pegando fogo de vergonha. — Perdoe-me. Eu sou...

— Matthew Carpenter, é. Eu sei, eu inventei você. Não se preocupe... Ninguém acerta o nome de primeira. E-eu estava saindo para ir te ver. Oi.

Franzi a testa, pela segunda vez no ambiente, adicionando um lembrete mental de fazer isso mental de fazer isso menos vezes se quisesse aparentar ser uma boa pessoa.

— Acho que poderíamos começar de novo — a mulher, que agora tinha nome, suspirou e enfiou o refratário debaixo do braço e estendeu uma mão para mim com um sorriso polido. — Olá. Eu me chamo Cecilia.

Entrei em seu jogo e apertei sua mão.

— Matt. Muito prazer.

— Eu fiz bolo — Cecilia soltou-se de minha mão, apenas para me estender o refratário. — Sei que não se compra ninguém com comida, mas... Torna a conversa mais agradável.

Recebi o pote alegrando minha criança interna. De qualquer maneira, o bolo já estava ganho.

— Nisso sou obrigado a concordar. Há algum lugar que podemos conversar sem ser na porta?

— Ah, claro! Por favor, entre — Cecilia abriu mais a porta, liberando o espaço. Acompanhei-a casa dentro, evitando olhar muito as coisas alheias. — Eu... Obrigada por não vir com sete pedras na mão. É muito legal da sua parte.

— Não faz muito meu estilo. Sou péssimo no estilingue.

Cecilia riu nervosamente, estendendo o braço em direção à mesinha da cozinha, com apenas duas cadeiras e decoração modesta. A composição do arranjo de flores era em tons de branco e lilás, e eu como amante de cores nada mais podia fazer do que admirar tudo ao me sentar.

— Vamos colocar os pingos nos i’s. O que quis dizer com ter... Inventado?

— Ah, isso — Cecilia franziu o nariz, buscando o bule mais próximo. — Quer café?

— Claro... Café e bolo. É bom, obrigado.

Enquanto servia duas xícaras, Cecilia suspirou e iniciou sua história extraordinária:

— Eu realmente inventei uma história. Mas foi uma muito boba... Muito inocente — daí, ela empurrou a xícara para mim, negando com a cabeça. — Nunca faria nada para prejudicar ninguém. É só... Muito difícil ter sangue de barata e ser viciada em clichês de amor de verão e aí... Eu inventei uma história sobre um namorado falso só para contrariar. Eu jamais imaginei que fosse surgir... Bem, você logo depois. Ah, eu entrei em pânico.

Diferente do que ela esperava que eu fizesse, imagino eu, gargalhei generosamente. Agradeci por não ter tomado o café ainda, senão teria sido um engasgo daqueles.

— Eu imagino! Isso explica a velha enrugada que brotou na minha porta querendo “ver como o garotinho da Lewis era” — finalmente tomei o café, sorrindo pelo bom gosto. — E também explica o ataque de nervos de Sarah na sexta-feira. Achei que aquilo fosse uma tática de flerte, eu fiquei muito confuso.

Talvez aquela fosse a sentença mais longa que eu já havia dito. Eu era um sujeito nervoso, afinal de contas, então imaginei que só de pensar nisso eu já estaria me confundindo na dicção.

— Ai, Sarah... — então, Cecilia levou uma mão à testa em completa vergonha, gesto esse que já me provava ser merecedora de perdão. — Foi ela quem te contou...?

— Ah, não. Ela fez umas perguntas muito específicas, mas guardou seu segredo. Foi uma Geller que começou a expor... Hum... O meu caso amoroso para a tia Georgie. E declarou que ouviu isso da sua boca.

— Que bagunça... Não está bravo?

Neguei com a cabeça, terminando a xícara de café. Cecilia pareceu ter se lembrado do café apenas naquele momento, porquanto que segurou a xícara como se ela fosse sumir.

— Não fico bravo com muita coisa. Na verdade, seria até irracional ficar irritado com algo que não aconteceu. Eu teria ficado bravo se você tivesse me pintado como um ex-namorado abusivo, eu sei lá.

— Jamais inventaria algo assim — ela reafirmou mordendo os lábios, pensativa. — Posso ter sido uma boba, mas não sou maldosa, entende?

— Entendo. Todo mundo já teve algum caso de impulsividade catastrófica — eu mesmo, por exemplo, tive o meu há dois dias. — Não vou condená-la por isso.

Cecilia suspirou aliviada, recostando-se na cadeira como se tivesse acabado de se livrar de um grande peso nos ombros. Pelo que eu pude entender aquilo não tinha sido motivo de riso para ela nos últimos dias.

— Obrigada. Mas... Imagino que não dê simplesmente para fingir que nada aconteceu.

— Não, não dá. É por isso mesmo que gostaria de propor algo a você.

Ela se achegou para frente, interessada. Logo o gato de mais cedo saltou para seu como, fazendo cm que ela parecesse uma vilã caricata acariciando seu pet antes de expor os planos malignos para o protagonista.

— Estou ouvindo.

— Olhe, eu... Estou enroscado com um projeto, e você parece ser a pessoa certa para me ajudar. Não entendo nada de flores, já você é especialista nelas. E... Se não se importa que eu diga, você é perfeito para modelagem.

— Esse foi o elogio mais... Abstrato que recebi, não tenho como negar — Cecilia escondeu-se atrás da xícara para não exibir as bochechas coradas.

— Obrigado. Enfim. Se me deixar usar seu rosto como modelo e for minha consultora de flores quando for pintar o quadro, posso agir conforme o que inventou de mim.

Ela ergueu uma sobrancelha, posando o café sobre a mesa com graciosidade.

— Acho um preço justo.

— Assim, quando for embora, a história de que “concordamos que somos melhores como amigos” terá mais embasamento — acrescentei.

— Você destacou um bom ponto. Por mim, ótimo! Nossa, não sabe como estou aliviada. Vou ficar te devendo para o resto da vida.

Ri baixo, indicando o bolo com a cabeça.

— Nem tanto. O bolo já é suficiente.

Então, ela riu. Era um som verdadeiramente agradável, portanto não me importei de ser o piadista da vez. Apesar disso, não contive minha curiosidade em perguntar:

— Mas então... De onde tirou “Matthew Carpenter”? De algum lugar deve ter sido, nem que tenha sido do subconsciente. Confesso que eu fiquei intrigado.

 Cecilia riu de nervoso, duas risadas parceladas. Naquela altura do campeonato, o gato já havia deitado confortavelmente em seu colo.

— Veja bem, “Matthew” é um nome bem comum e foge do grande clichê que é “John”. Começamos por aí.

— Não tem um filme com esse nome? — uni as sobrancelhas. — Alguma coisa John?

— É Querido John — ela gargalhou. — Tem o livro também, mas... Bom, não faz o meu tipo. É também o nome de um personagem que eu gosto, mas o dele é Mateo. Eu só... Adaptei, eu acho.

Reprimi um riso.

— Entendi. E quanto a Carpenter?

— Aí é mais fácil. É a minha banda favorita.

— Existe uma banda com esse nome?

— Existe! Claro que existe — ela parecia verdadeiramente surpresa com a minha ignorância musical. — Eles fizeram o maior sucesso nos anos 70!

Dei de ombros.

— Me desculpe, eu não sou muito ligado em música... Mas vou deixar como lição de casa para nosso primeiro “encontro” — finalizei a sentença com um sorriso um pouco brincalhão demais, porquanto que ela me respondeu com um meio resmungo. — Me passe o seu número que depois combinamos um horário bom para não te atrapalhar.

Daí, Cecilia salvou seu número no meu celular com toda calma do mundo. Nesse meio tempo, levantei-me para ajuntar a louça na pia.

— Obrigada — ela se espreguiçou para me acompanhar, deixando a bola de pelo marrom na cadeira. O gato mal se mexeu mais do que o necessário, o que me levou a imaginar que a cadeira deveria estar quentinha. — Espero poder ajudar com o seu projeto.

Assenti com a cabeça, segurando o bolo com cuidado. Encostei-me ao batente da porta, retornando à posição original, dessa vez na ordem certa.

— Hum... Até depois, então?

— Uhum! — Cecilia sorriu, esfregando as mãos uma na outra. — E... Cumprimente a senhorita Georgette por mim, sim? Não a conheço pessoalmente, mas ainda assim...

— Vou dizer a ela que você não se chama Emilia.

— Ah, ok. Agradeço o reconhecimento.

Foi minha vez de rir, acenando com a cabeça em seguida para me despedir. Esperei até que ela fechasse a porta para respirar, aliviado.

Agora era só torcer para Cecilia não dar para trás no acordo. Porém, pensando pelo lado que ela estava disposta a ir até a tia Georgie para se resolver, eu não acreditava que seria o caso.

Pelo menos se não houvessem vaquinhas em Healdsburg, eu teria uma história daquelas para servir de entretenimento ao Gilbert.


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