Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 38
Alegria, padrinhos e legados




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Nem o noivo estava tão nervoso.

Ao meu lado, Victor era a calma em pessoa. Apoiado em sua bengalinha, observava toda a decoração com um sorriso tranquilo. Entre elogios aqui e ali para Angie, ele se voltava para eu e Gil e fazia alguma piadinha sobre o próprio nervosismo. Como alguém conseguia ser calmo daquele jeito, pelo amor de Deus?

Ryan desceu correndo a distância entre a casa e o jardim da frente, muito pleno com sua roupa agora livre de pelos. Ele sorriu para nós, acenou para o senhor Bell respeitosamente e aprumou a postura.

— Cecilia pediu para vocês irem para os fundos. E para a senhorita Sharpe recepcionar a senhorita Georgette. Ela não me disse qual era a ordem das coisas.

— Ok — Angie pareceu satisfeita com o desempenho do mordomo mirim diante de seu espetáculo. E, o mais surpreendente, segurou a mão dele com toda a delicadeza. Como se fosse uma tia, ou algo parecido. — Você e a May vêm comigo. Vou mostrar seus lugares.

— Desde que a bola de pelos fique bem longe de mim — May resmungou.

Ryan olhou para ela, muito confuso.

— O que é que você tem contra o Walt?

— Eu? Nada. Eu não escolhi ter alergia, guri.

— Ah... Puxa, alergia deve ser ruim... Ficar sem brincar com gatinhos? Eu jamais faria isso.

May abriu um sorriso de escanteio. Para os padrões dela, já era muita coisa. A menina tinha postura de quem queria arranjar uma briga até com o ar!

Bem... Nem tudo precisava ser preto ou branco, certo? Entre eles, a escala de tons de cinza. E todo um espectro de cores, ad infinitum.

— Bem-vindo à vida adulta, Ryan. Adultos tem alergias idiotas. Pessoas se casam. Usam roupas cafonas. O único estiloso aqui é você. E eu, obviamente.

Ryan gargalhou harmonicamente. O resto de nós, os cafonas, os seguiu com um sorriso bobo no rosto. Quando menos percebi, Victor enlaçou o braçoo ao redor do meu e deu duas batidinhas amigáveis.

— Grande dia, hein? Você aguenta mais uma piadinha deste velho sentimental?

— Do senhor, Victor? Mas é claro — sorri. — Eu prefiro as suas piadas às minhas, na verdade.

— Oh, é mesmo? As pessoas te acham bastante carismático.

— Carisma não significa fazer boas piadas, senhor. Carisma significa grandes chances de ser um grande palhaço. Se a May me fizer uma maquiagem caprichada, quem sabe eu trabalhe com isso.

Victor riu. Sua alma estava no auge. Eu queria saber o que os mais velhos faziam para conservar a jovialidade mental enquanto o corpo... Deteriorava-se.

Matthew, o Impulsivo, pensando em morte numa ocasião feliz. Estou perdido e fadado a ser um velho pessimista.

— Por falar um em trabalho — Victor pigarreou. — Como vai San Francisco? Você... Conseguiu renovar o contrato com a sua chefa?

— Chefa... Ah, merda! Eu me esqueci de ligar para o senhor, não foi? — bati em minha testa, enaltecendo minha burrice. — Mil desculpas, senhor Bell. Eu... Andei pensando numas coisas, desde San Francisco.

— Que tipo de coisas, filho?

Olhei para ele, estudando sua fisionomia. Eu sempre quis saber como era ter um avô. Meu pai sempre colocou o meu avô em posição de apoteose por ter morrido na Batalha da Grã-Bretanha. Ele era um piloto, e depois de sua morte o governo foi bastante generoso com pensões e auxílios. Minha avó... Bem, ela tinha um filho para criar, mas não imagino como é que arranjou forças para lidar com isso e com um luto intenso. É engraçado como meu pai nunca falava sobre ela sem que eu o obrigasse. E então... Ele resolveu seguir os passos de meu avô. Meu pai esperava que eu fizesse o mesmo – pegasse para mim uma farda e defendesse o país. Ao invés disso...

Nada novo sob o sol, certo? Ter um artista na família é sinônimo de vergonha. É uma vergonha ter um homem sensível por perto.

O senhor Bell se aproximava em demasia do que eu imaginava ser uma família gentil e compreensiva. Eu não podia deixar isso escapar.

— Eu gostaria... — senti minha voz trêmula, então pigarreei para recomeçar. — Gostaria de perguntar para o senhor se eu estou apto para... Para ser efetivado na livraria. Só por curiosidade.

Ele ergueu as sobrancelhas, dois conjuntos de penugem grisalha que me lembravam do Corujão de O Ursinho Pooh.

— Se você está apto? Garoto, todos me perguntam para onde é que você foi! Eu mesmo não pude deixar de ficar um tanto melancólico com a sua partida... Mas é como dizem: o pássaro, quando quer bater as asas, a gente tem que deixar voar.

Fiquei encabulado com o elogio.

— Puxa, Victor, obrigado...

— Está pensando em ficar, garoto? — ele baixou o tom da voz, me encarando com expectativa. — Você e Cecilia têm planos juntos?

— Bem, eu...  Não sei. Eu pretendo oferecer isso, mas esperava que o senhor pudesse me ajudar com a cartada do emprego.

Victor riu, atraindo o olhar de Sam e Gil. Pude ver que eles trocaram uma expressão de quem acha uma fofura. Eu não podia julgá-los, podia?

— Eu ofereceria o emprego a você com ou sem a Cecilia, Matthew — ele acrescentou com um sorriso. — Você é um funcionário modelo. E... É um bom menino. Vou ficar feliz de deixar os negócios para alguém como você. Pat e Poppy... Ah, eles são ótimos, mas não compreendem o carinho que sinto pelos livros. Provavelmente venderiam após minha morte. E você... Bem...

Assenti com a cabeça. Qualquer sonho cultivado há tempos merecia ser conservado com carinho. Segurei a mão dele e sorri. Pedi gentilmente para o Impulsivo ficar quieto por um motivo.

— Eu prometo pensar sobre isso com calma e toda a consideração do mundo, Victor. Eu dou ao senhor a resposta assim que a tiver. Por ora... Muito obrigado pela confiança.

— Não para menos, Matthew. Você cativou esta simples raposa.

Eu ri, bagunçando meu cabelo.

— Entendi. É porque eu sou loiro, não é? Boa analogia, senhor Bell.

O bom velhinho riu junto a mim. Deixei-o sentadinho na cadeira do noivo – adaptações matrimoniais para os noivos suportarem a cerimônia –, obtendo um joinha como resposta. Walt subiu em seu colo, servindo como meu substituto à altura.

Fiquei perambulando pelo cenário em silêncio até que o juiz de paz chegasse. Estava em meu encargo verificar se a papelada e as credenciais todas se encontravam em ordem, verificar algumas vezes se as alianças ainda estavam lá e fazer gracinhas para Ryan ocasionalmente. Após o que pareceu uma eternidade, a senhorita Georgette adentrou o jardim com toda a pompa que lhe cabia, acompanhada de Angie e a senhora Parker.

— Olá, Matty — ela me cumprimentou com um beijo estalado na bochecha. Eu me senti uma criança, no melhor dos sentidos. — Está muito elegante, Victor.

— E você também, Georgette. Às vezes, é bom se arrumar um pouco, não acha?

— Sem dúvida. Este é o evento da década!

Sorri sozinho, observando o perímetro. Da porta lateral da casa, apenas a cabeça de Cecilia fez uma aparição. Ela estabeleceu contato visual comigo, sinalizando um ok com a mão. Disse ao juiz que estávamos prontos para começar e voltei ao meu lugar ao lado do noivo.

Alguns minutos depois, o silêncio foi quebrado. Ao invés de a Marcha Nupcial, a caixa de som tocou Carpenters. A música do pó lunar e cabelos de ouro. Resisti à vontade de rir, mas ficou difícil ver Cecilia segurar a risada e permanecer sério enquanto ela e Noelle entravam.

Close to you — cantarolei para ela, recebendo um risinho como resposta. Foi Cecilia quem ofereceu a mão para mim, então fiz questão de entrelaçar nossos dedos. — Pronta, madrinha?

— Meu primeiro e último trabalho como Cupido, escreva o que eu digo.

— Eu duvido. Estamos em Healdsburg. Fofocas e intrigas em tempo recorde. Espere até semana que vem para afirmar alguma coisa, querida.

Cecilia gargalhou com as minhas gracinhas. Ainda assim, ninguém se incomodou com a interrupção. Estávamos todos absurdamente felizes.

Lado a lado, ouvimos o juiz de paz realizar o seu discurso inflamado de paixão. Ficava cada vez mais difícil não me sentir parte daquela cidade e daquelas pessoas. Pouco me importava que eu estivesse me convidando a ficar. Um pouco do espírito de Gil não faria mal.


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Notas finais do capítulo

Esclarecendo a família complicada do Matt que sempre ficou subentendida :')



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