Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 30
Domingo, famílias e novidades




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Primeiro, eu fiquei me perguntando se na Califórnia o trabalho infantil era legalizado. Afinal de contas, a criança que abriu a porta era praticamente um mordomo. O garoto era minúsculo – duh, era uma criança –, mas se vestia como um funcionário de escritório. Camiseta e calça social, suspensórios e tênis All Star, como os de Cecilia. Com cabelos encaracolados, castanhos, compridas e perfeitamente penteados, grandes bochechas coradas e grandes olhos castanho-esverdeados. Um pequeno mordomo.

E Cecilia continuava o encarando como se ele tivesse vindo de outro mundo. Por isso, fui obrigado a responder em seu lugar. Eu bato e eu falo.

— Sim, ela é a Cecilia. E eu sou o Matthew — estendi a mão para ele, por mais que eu tivesse de abaixar metade da coluna para alcançar seu tamanho. No caso, sua falta de tamanho. — Como vai?

Ele apertou minha mão com firmeza, chacoalhando os suspensórios no processo.

— Ryan Scott Parker. Eu vou bem, e o senhor?

Senhor... Ah, céus. Eu tinha chegado à melhor idade.

— Por favor, entrem — o agora identificado Ryan abriu mais a porta, indicando a entrada com a mão. — A parte de dentro é mais bonita do que a de fora, eu garanto. E tem comida. Vamos?

Assenti com a cabeça, passando um braço ao redor dos ombros de Cecilia. Perguntei com os olhos se estava tudo bem e recebi um aceno positivo. Conduzi-a para dentro da casa, evitando olhar tudo ao redor. Aquilo não dizia respeito a mim, mas sim à Cecilia.

Seguimos a criança pela sala, e eu podia sentir os músculos dos ombros tencionarem. Cecilia parecia prestes a desmoronar, por isso massageei a área afetada com cuidado. Posso jurar que a escutei grunhir.

— Mãe! — Ryan gritou em direção à cozinha. — Eles chegaram! Cecilia e seu acompanhante, Matthew.

Senhor, acompanhante... Totalmente fragmentado.

E então, A Mãe veio.

Cecilia era pouco parecida com ela. Eu via no máximo o nariz e o formato do corpo. Apesar de tão diferentes – A Mãe tinha o cabelo loiro-escuro, olhos cinzentos e opacos, e leves sardas no nariz –, elas também tinham o olhar gentil e distante em comum.

Foi então que eu me toquei.

Se a Mãe que Ryan chamou era a mesma que Cecilia estava esperando...

— Olá, querida — A Mãe sorriu tímida. E olhou para Cecilia como se ela fosse uma deusa na terra. Não que ela não fosse, mas... — Eu... Bem-vinda.

Cecilia pigarreou desconfortável. Trocando o peso dos pés, ela encarou A Mãe com um olhar de avaliação.

— É... Oi. Obrigada.

Foi um festival de silêncio vergonhoso. Por sorte, eu e Ryan entendemos que aquilo era um estado de calamidade e trocamos a pose de apresentações.

— Senhora — me adiantei e estendi minha mão em sua direção. — Sou Matthew. Prazer em conhecê-la.

— Ah! Leila... Como vai, Matthew?

— Bem, obrigado — sorri. — E a senhora?

Ela assentiu com a cabeça, sorrindo de lado. Assumi minha pose de falso extrovertido e me voltei para o pequeno adulto. Ryan parecia esperar por isso.

— Você disse que tinha comida?

— Eu disse! Meu pai foi buscar a bebida porque foi a única coisa que nos esquecemos de comprar, mas temos algumas entradas para forrar o estômago.

Pisquei um tanto confuso, e Leila riu como se aquela fosse uma reação comum. Não duvidava nada.

— Quantos anos você tem mesmo?

— Sete anos e doze dias. E você?

— Trinta anos e alguns quebrados. Depois dos 30, a gente meio que para de contar.

Ele riu de uma maneira muito agradável, aquela gargalhada gostosa de criança, o que ajudou a quebrar o gelo. Gil ficaria orgulhoso da minha intervenção social.

— Joga no Google a data do seu nascimento e pede pra contar até hoje, aí aparece — Ryan explicou enquanto nos conduzia até a cozinha. — Sentem-se, por favor. Vou pegar os aperitivos pra vocês.

Leila pegou a função de servir os convidados, enquanto Ryan sentava-se ao meu lado na mesa. Ele sorriu para mim, e não pude deixar de retribuir. Ryan exalava simpatia – bem como Cecilia em seus dias normais. Fomos servidos de mini sanduíches (de maionese, pepino, patê de frango e tomate cereja, como eu viria a descobrir depois de provar) e Leila pareceu querer estar com as mãos ocupadas, uma vez que passou deixar copos e pratos na mesa ainda que a refeição principal não tinha sido servida. Eu não a julgava.

— Vocês são namorados? — Ryan perguntou para Cecilia, e eu dei a ele um ponto por isso. — Você e Matthew?

Ela assentiu com a cabeça, forçando-se a sorrir.

— Legal. Vocês parecem uma boa dupla.

— É — sorri para os dois. — Eu fico de mudo e ela de tagarela na maior parte dos dias, mas aos finais de semana nós trocamos de personalidade para variar.

— Eu acho que é bom não ser a mesma pessoa sempre — Ryan opinou com uma carinha pensativa. — Acho que nem pra fazer isso. Dá?

— Dar até dá, mas é... Complicado. Sendo a mesma pessoa sempre, você se impede de descobrir coisas importantes sobre si mesmo... Ou de evoluir como pessoa.

Ryan assentiu muito sério. Eu quase podia ver as engrenagens girando em sua cabeça.

— Vou pensar sobre isso. Mas é um bom tema.

— É claro que é! — ensaiei uma cara convencida, arrancando um riso perdido de Cecilia. Congratulei-me por isso. Matt Carpenter salvando o dia. Era isso que significava ter autoestima? — Domingos foram feitos para pensar, não é?

— É... Provavelmente é... Quer dizer, deve ser...

E aí ele franziu tanto a testa que achei que as metades da face fossem se unir. O pensamento quase me fez soltar um riso aleatório que não pegaria nada bem no primeiro almoço com a segunda família da namorada.

— Cuidado para não quebrar, querido — Leila dirigiu-se para o filho, presenteando-o com um sorriso contido. — Pode anotar a ideia e trabalhar nisso mais tarde.

O mordomo mirim aquiesceu uma vez mais, saindo da mesa por um minuto para fazer o recomendado. Cecilia acompanhou-o com o olhar, em seguida movendo a cabeça para Leila. A Mãe notou o gesto e pigarreou em resposta à indagação silenciosa.

— Ryan está sempre pensando em muitas coisas ao mesmo tempo... Às vezes é difícil de acompanhar, então sugerimos que ele começasse a anotar.

— Ah — foi a única concessão que Cecilia fez. E nada mais.

Eu via que ela estava tentando. Era nítido que estava. O problema era que ela estava tentando e se esforçando, porém sem resultado. Ou um resultado inconclusivo. Acho que Ryan era um pouco demais para sua concepção. Ele era adorável, certo, mas havia uma grande barreira entre todos os elementos envolvidos.

Por sorte – ou azar, meu Deus –, a conversa constrangedora foi interrompida pela chegada do tão esperado Pai, que adentrou a casa com um engradado de refrigerantes em mãos e nada do que eu esperava da imagem de um pai de família. É pena o que vou dizer, mas alguns estereótipos falam alto na criação de determinados preconceitos.

O Pai tinha por volta da minha idade, cabelos compridos e cheios como os de Ryan, barba bem aparada e roupas metade social e metade casual. Calça jeans, uma camiseta engraçadinha onde se lia “química é como cozinhar (mas não lamba a colher)”, paletó tweed e tênis Vans. Confesso que gostei do estilo. Cecilia ficaria traumatizada se eu começasse a me vestir assim?

— Ah! Parece que eu estou atrasado — ele riu com o bom-humor intacto. — Espero que não tenham comido todos os sanduíches!

— Chegou bem na hora — Ryan voltou com um sorriso, atirando-se nos braços do Pai. — Eles acabaram de chegar. Com a pontualidade britânica!

— Isso é uma boa característica — o Pai retribuiu o abraço com uma manobra que tirou o mordomo mirim do chão em meio a risadas. — E aí, carinha? Vai me deixar cumprimentar os visitantes?

— Oh! Desculpe.

Ryan escondeu-se atrás dos ombros do Pai, ainda no colo, permitindo que O Pai também realizasse a cerimônia de aperto de mãos conosco. Cecilia saiu do estado de choque naquele momento, finalmente parecendo dar-se conta da realidade da situação. Por mais incomum que fosse, era real.

— Geralmente não sou pontual, mas agradeço o elogio duplo — Cecilia abriu um sorriso sem-graça.

— Então deve ser uma ocasião especial! Meu nome é Sam. E você deve ser a Cecilia. Certo? Estávamos ansiosos para conhecê-la! Não é Ryan?

Ryan aquiesceu, sabiamente permanecendo em silêncio após descer do colo do Pai. Agora ele olhava para Cecilia, os olhos castanho-esverdeados inteligentes tentando decifrá-la. Ele tinha algo em comum com a irmã, afinal de contas.

— Bem, eu... Poderia dizer o mesmo, mas meio que eu descobri a existência de vocês só agora...

É, e a Cecilia Impulsiva atacou impiedosamente. Leila interveio o comentário:

— Fui eu quem sugeriu de não dizer... Queria que fosse surpresa... Eles só concordaram...

Consegui ler o que ela quis dizer nas entrelinhas. Eu fiquei com medo de dizer que eles existiam e você desistir de vir até aqui por conta do rancor que você provavelmente guarda.

— Foi uma surpresa, de fato — Cecilia endireitou a postura, parecendo abrandar a hostilidade. — Bem, eu... Não julgo suas escolhas. A... A vida é sua, afinal de contas... Enfim, eu... Fico feliz em conhecê-los também, Sam e Ryan. Obrigada pelas boas-vindas.

Ryan pareceu ficar satisfeito com a posição da nova figura que apareceu em sua vida sem aviso. Ele caminhou ao lado dela até a mesa da cozinha, sentando-se com muita classe. Então, teve um grande insight e comentou com O Pai:

— Pai! Matthew me deu uma ideia para refletir. Podíamos chamá-los mais vezes para o almoço?

O Pai e A Mãe trocaram um olhar cúmplice.

— Se eles quiserem aceitar mais convites, querido — Leila sorriu ao sentar-se a mesa. — Por mim tudo bem,

— Depende. Se Matthew trouxer uma ideia nova toda vez que vier, teremos que limitar as visitas — Sam ergueu uma sobrancelha para mim, com uma expressão de divertimento no rosto. — Nesses termos, quem sabe?

Ryan riu com gosto, esperando até que alguém servisse o almoço do forno – enquanto beliscava os sanduichinhos, enquanto Leila ficava aguardando feito uma rainha. Não que isso fosse errado, mas era uma cena rara de se ver no esquema familiar americano. A minha família era assim, a de Cecilia tinha sido assim também.

Talvez tenha sido por isso que Leila trocou a vida de dona do lar por alguém que era seu parceiro e compartilhava as tarefas tendo noção de que aquilo era o mínimo a se fazer morando com outra pessoa.

Eu entendi parcialmente o sentimento. Era revoltante morar com os meus pais e ver que meu pai não fazia nada para manter as coisas em ordem. Minha mãe tinha de se desdobrar em quarto para dar conta de tudo, enquanto meu pai trabalhava fora, chegava em nossa casa e não saía da frente da televisão. E eu, se fosse ajudar minha mãe, era chamado de “além de gordo, é mulherzinha”. Enfim. Fazer o que.

Agora, morando sozinho, eu era responsável pela minha própria bagunça. Eu não ficava estressado com as injustiças dos outros moradores. Não precisava me preocupar com alguém que comeu a comida que eu reservei para mais tarde...

— Se vocês pensam em uma coisa por dia e já tem duas páginas adiantadas...? — Cecilia dizia muito confusa. — Quer dizer que tem assunto pra pelo menos dois meses...!

— Basicamente... Por isso que anotamos!

É, eu tinha viajado no meio da conversa.

— Entendi. Bom... Faz sentido.

— Certo — Leila pontuou, esfregando as palmas das mãos umas nas outras. — Então podemos almoçar.

Dessa vez, prestei atenção ao que estava sendo servido.

Era cachorro-quente. E não qualquer um. O mesmo tipo que Cecilia havia me servido. Com panelas com molhos, purê de batata, condimentos diversos, muito queijo, milho e chips para enfeitar.

Eu não sabia se era o prato favorito de Cecilia, mas na minha humilde opinião foi um belo acerto. Quebrado o gelo inicial, todos se serviram como bem quiseram.

Estávamos apenas começando.


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Notas finais do capítulo

Ryan Parker seria a versão masculina da Rayle Parker, do meu grande amor, a Sariinha ♥ confiram aqui a inspiração:https://fanfiction.com.br/historia/756635/Parker



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