Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 12
Ratatouille, chantagem e impulsividade


Notas iniciais do capítulo

Oi gente! Me perdoem pelo atraso no capítulo, essa semana foi bastante corrida.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805110/chapter/12

Pauline ficou agradavelmente surpresa com o rascunho que a mandei. Por incrível que pareça, recebi até um elogio. Valeu a pena a espera, vejam só! Confesso que, apesar de ser encucado com as ações da curadora, todo mundo gosta de um elogio, não é? Sendo assim, me deixei ser comprado pela bajulação.

Ao invés de trabalhar mais no quadro, preferi descansar um pouco e me concentrar na minha anfitriã. Se normalmente sextas-feiras eram dias de preguiça, para tia Georgie elas eram sinônimas de criatividade culinária. Portanto, quando cheguei da biblioteca/livraria, o cheiro na cozinha já era predominante. Inspirei o aroma e permiti que um suspiro apaixonado me anunciasse.

— Seja bem-vindo, meu amor — ela sorriu, os pés de galinha como charme complementar. Não me ajudou em nada em tentar evitar dar um beijo estalado em sua bochecha. Fui obrigado a fazer isso. — Veio pelo cheiro, foi?

— Não... Mas confesso que está uma delícia. O que é?

— É ratatouille. Você está muito amarelinho, uns vegetais e legumes vão fazer bem. É melhor fazer um prato desses com mais de uma pessoa, eu tenho medo de estragar, sabe?

Assenti com a cabeça, deixando minha bolsa improvisada para lavar as mãos. Coloquei a cabeça para fora do banheiro e levantei a voz para que ela pudesse me escutar:

— Parece apetitoso!

— E está mesmo! — tia Georgie devolveu num tom bem-humorado. Após alguns segundos, acrescentou sem vergonha alguma: — Por que não chama a sua Cecilia para jantar conosco?

Ah, é claro. Estava demorando.

— Em primeiro lugar, tia, ela não é minha Cecilia. Em segundo lugar, ela já está ocupada esta noite.

Escutei-a murmurando algo. Quase como uma criança que não quer responder os pais, mas que também não quer aceitar a derrota de cabeça baixa. Peguei-me sorrindo com a constatação.

Mas, se te consola, ela convidou você e eu para irmos lá domingo à tarde e ficar para o jantar — completei retornando para a cozinha. Cheguei atrasado para a orquestra sinfônica de pratos, mas por sorte ainda dava tempo para o segundo ato com os copos. Ajudei a colocar a mesa, movido pela educação e pela fome. — Disse que aceitávamos com a condição de que você levaria a comida dessa vez.

Tia Georgie aprovou meu plano com um sorriso solene. Daí, ela foi calçar suas preciosas luvas térmicas para tirar o rato do forno. Observei tudo como se fosse uma bomba-relógio prestes a ser desarmada. Por sorte, nada explodiu. Estávamos falando de um MacGyver perdido, afinal de contas.

— Sendo assim, sim. Alguma restrição?

— Hm-hm. Quer dizer, fora o peixe, ela disse que só não gosta de ketchup e mostarda. Que estranho, não é?

— E faz muito bem. Essas coisas fazem mal — ela exprimiu uma careta desgostosa. — Vou pensar em algo.

Fiz que sim, me sentando com ela para comer. Enquanto jantávamos, conversamos sobre nossos dias. Era uma vida livre de muitas emoções, mas não necessariamente significava uma vida monótona. Ainda que a tia Georgie se isolasse um pouco, não deixava de ser uma engrenagem na movimentação de Healdsburg. Consequentemente, com Cecilia do outro lado, nós três éramos peças pequenas que se conectavam ocasionalmente com outras grandes. Minha engrenagem grande eram o senhor Bell e os irmãos Graham, já Cecilia compartilhava o conforto de Noelle Mendez e pairava perigosamente próxima da supremacia das Sharpe. Era curioso de pensar assim.

Depois de meditar sobre a cadeira hereditária de Healdsburg por mais alguns minutos, eu e tia Georgie nos organizamos com a louça e não demorou muito para cairmos nos braços de Morfeu. Como o próximo dia era sábado, era um dia inteiro com o senhor Bell, então aproveitei bem meu descanso. Pela manhã, encaminhei o quadro para San Francisco por um precinho bacana – o que fez o meu velho avarento interno pular de alegria – e fui direto para a livraria. Já estava mais fácil me locomover pela cidade, pelo menos no trajeto que estava acostumado a percorrer.

Naquela hora da manhã, somente eu e o senhor Bell marcávamos presença na livraria. Portanto, quando entrei não foi preciso pisar em ovos para cumprimentá-lo, uma vez que ele mesmo me recepcionou com uma festinha.

— Seja bem-vindo, senhor Carpenter!

— Bom dia, senhor Bell — devolvi o cumprimento com um sorriso ladino. Aproveitei para guardar a notinha do correio na carteira, já que vim tamborilando ela ao longo do caminho. — Como passou a noite?

Ele riu jovialmente, estendendo a mão para que eu a apertasse.

— Ah, meu filho... Quer mesmo que eu responda?

— Não precisa! E então, o que temos para hoje?

— Hum... Tem alguma sugestão para os livros que ficam expostos no balcão principal? — daí, ele apontou com cabeça indicando o local em questão. — Já começam as férias e os estudantes procuram mais pelos de ficção, mas eu nunca sei o que está em alta...

Assenti com a cabeça muito seriamente. Como se eu soubesse o que estava em alta... Aproveitei a falta de internet para sacar o celular e mandar uma mensagem rápida para Cecilia: “Você ou Sarah Palmer têm ideia do que está em alta na mídia?”.

— Podemos separar o balcão por gêneros literários — sugeri enquanto esperava sua resposta. — Sabe, organizar as pilhas pra caber bastante e ainda ficar bonito de olhar. Porque... O senhor sabe, as pessoas consomem pelos olhos primeiro.

— É verdade... Aquele ditado sobre não julgar um livro pela capa é bem relativo.

Concordei, resgatando o celular do bolso da calça quando a notificação chegou. Li a mensagem pela barra de notificações. “Eu te digo se, em troca, ir comigo ao Clube de Costura. Ou me levar ou me buscar. Faça sua escolha”. Foi impossível não rir de suas condições, mas respondi um “ok” e um emoji com um novelo de lã e agulhas. Reprimi um suspiro, preferindo voltar minha atenção para o senhor Bell. Por sua vez, ele parecia muito entretido com a leitura do jornal.

— A ajuda está a caminho — informei, me sentando ao seu lado no balcão. — Hoje compramos o notebook, amanhã uma amiga disse que me ensina a programar tudo certinho e já na segunda-feira deixamos o balcão nos trinques. O que o senhor acha desse cronograma?

O bom velhinho ergueu os olhos do jornal, sorrindo.

— Garoto! Você deveria ter aparecido aqui antes! — com o elogio, não tive outra reação a não ser corar. Ao menos, condizia com o “garoto”. — Então quer dizer que já fez amigos além dos meus sobrinhos, hein?

— Ah, sim. É uma história engraçada, mas não me cabe contar. Conhece Cecilia Lewis?

— Mas é claro que sim, ela é um doce de menina — o senhor Bell sorriu um tanto quanto aéreo. — Eu a conheço desde moleca. E a amiga dela ainda mais, desde que eu tinha 17.

— Noelle?

Daí, ele assentiu com a cabeça, desviando o olhar. Farejei uma história inacabada nas entrelinhas de suas reações. Eu não iria perguntar nada a respeito, porém o idoso tomou partido no desabafo. Já diziam as línguas antigas: é preferível, às vezes, se abrir para quem não lhe é íntimo. Enxergar por outra perspectiva, menos emocional.

— Nós... Nós já fomos noivos. Há 50 anos.

— É mesmo? — dediquei toda minha atenção a ele. — O que aconteceu, não deu certo?

O senhor Bell negou com a cabeça. Parecia estar encabulado. Achei sua expressão curiosa.

— Teria dado, mas eu agi como um tolo. Eu aprendi, meu filho, que se deixar levar pela opinião alheia não traz benefícios. Se eu tivesse ficado onde estava... — então, ele suspirou. Era de cortar o coração. — De qualquer maneira, são apenas devaneios de um velho. Não vale a pena.

Fiz minha réplica com um meneio em negativa.

— Eu não concordo. Se isso é algo importante para o senhor, não são apenas “devaneios de um velho”. Eu... Não me importaria se o senhor quisesse contar. Sabe, minha amizade com a Cecilia ou a senhorita Mendez não me impede de ser leal ao senhor também.

Minha escolha de palavras pareceu sentir efeito no seu julgamento. Arrumando a postura, o senhor Bell assentiu com a cabeça. Observei-o enquanto ele caminhava a passinhos de tartaruga até o bebedouro. Ficamos eu, ele, o galão de água lutando com a pressão atmosférica e o copo de plástico sendo amassado de cinco formas diferentes na mão do livreiro. Depois de respirar fundo, ele se encostou à parede com inquietação.

— Vejamos bem... Por onde eu posso começar...?

— Como se conheceram? — sugeri. — Com os seus 17 anos?

— Oh, sim — ele franziu a testa. — Era 1962 e eu estava no colégio. Noelle tinha seus 15 anos. Foi bem depois do lançamento daquele filme, Amor, Sublime Amor... Sabe...?

Fiz que sim. Eu que não ia dizer que vivia cantando Maria quando me distraía pintando...

— Enfim. Porto Rico ficou com uma reputação... Difícil. Todos zombavam do sotaque e da cultura dos porto-riquenhos, apesar do território. Eu sabia que ela preferia passar a impressão de ser durona para os outros, mas era só ela enfrentando um país inteiro — ele suspirou frustrado. — Ainda que Healdsburg não seja Nova York, é muito difícil suportar o falatório da idade onde todos parecem saber quem você é.

Cecilia não estava errada. As pessoas por ali tinham mesmo um sentimento agridoce por aquele lugar. E quem poderia culpá-los por querer enfrentar o problema ao invés de fugir dele?

— Então o senhor primeiro fez amizade com ela por compaixão — concluí para ajudá-lo a voltar para sua linha de raciocínio.

— De início, sim. Mas com o convívio descobri que ela por si só era um ser único. Ela tinha ideias muito fortes, muito estabelecidas. Princípios. Ela dizia... “Victor, essa guerra vai matar a todos nós. Se não com uma arma, poluindo a mente. Poder, poder... Poder é nos mantermos fiéis aos nossos princípios, não em pólvora, dinheiro e ideologias” — daí, o senhor Bell riu fraco. Cada nota me entristeceu. — Eu só tinha 17 anos, mas já sabia que ou seria ela ou mais ninguém. E é assim até hoje.

Esperei até que ele se recuperasse. Em algum momento, sua voz embargou, então imaginei que estivesse muito difícil para respirar. Quando ele optou por se desencostar da parede, veio sentar-se ao meu lado no balcão. Apertei seu ombro de leve, indicando o copo d’água intocado. Após um belo gole, ele continuou sua narrativa.

— Eu queria ser professor. Ia... Ser um melhor do que aqueles que lecionavam na nossa época. Melhor do que aqueles que pesavam a mão nas disciplinas e que fechavam os olhos para desigualdades e injustiças. Eu queria... Fazer a diferença — e mais um gole. — Mas não foi isso que aconteceu. Quando completei 20 anos, pedi a Noelle em casamento. Disse a ela que eu a daria uma vida melhor. E ela aceitou. Matriculei-me na universidade e, assim como você, procurei um emprego que fosse sustentá-la de qualquer forma que fosse. Ela também começou a trabalhar, como babá e onde quer que alguém precisasse de uma mão extra. Antes que eu pudesse entrar na universidade, porém, minha vez chegou. E não pude fugir dela.

Não foi difícil deduzir a o que o senhor Bell estava se referindo. A próxima segunda-feira seria Dia da Memória. A sombra do passado transpassou seus olhos gentis. Em seguida, ele assentiu em agradecimento por eu não tê-lo dito em voz alta, porém optou por dizer no minuto seguinte.

— Foi uma grande guerra boba. Ideológica. Mas eu não tinha escolha. Era isso, pagar uma multa altíssima, ser preso ou perder a vaga na universidade. E eu não queria decepcionar a Noelle, filho. Quando se arranja uma mulher boa que tem plena noção de que ela é boa, é preciso muita sabedoria. Então eu... Fui até a pensão que ela morava e disse a ela que iria, mas que voltaria para casarmos e termos a vida que eu a prometi. E ela me chamou de covarde.

Pisquei um tanto quanto confuso.

— Mas por que covarde? O senhor não disse a ela que era obrigatório?

— Disse, é claro que disse. Mas ela respondeu que para isso existiam protestos. E eu disse que se ela quisesse ir, poderia ir, mas para mim as coisas não funcionavam daquele jeito.

— Oh — foi a primeira reação que consegui expressar. Pareceu ridículo dito em voz alta, então pigarreei. — Caramba, então... Vocês dois tinham uma visão bem diferente da coisa toda.

— É como eu disse, garoto... Ela tinha princípios. Tanto que entrou nos protestos depois que eu fui. Daí... Nós não reatamos novamente, porque ela manteve suas opiniões. Já eu... Voltei a trabalhar aqui e aqui fiquei. Ao invés de pagar pela faculdade e pelo casamento... Só paguei a faculdade.

Permaneci olhando para ele embasbacado. Como era possível que duas pessoas entregarem os pontos assim por orgulho? Era nítido que ele sempre amaria a senhorita Mendez, mas era inaceitável que as coisas permanecessem do jeito que estavam. Portanto, tive mais um daqueles episódios de impulsividade catastrófica e reagi conforme minhas vontades, não o que seria mais sábio para o momento.

— Vocês dois precisam se acertar e voltar a serem ao menos amigos. E eu vou ajudá-lo com isso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

mais uma da série "atitudes impulsivas de Matt Carpenter", sexta-feira sabemos mais desse rolo xD



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Inventei Você?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.