A Coisa Com Penas escrita por Ly Anne Black, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Para a minha amiga secreta que, tanto quanto eu, ama esses dois cabeçudos! (E sim, eu roubei minha própria ideia de volta e dei ela a você, eu não tenho nenhum resquício de vergonha na cara).



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/804984/chapter/1

 


A esperança é a coisa com penas,
que empoleirada na alma, 
canta a melodia sem palavras,
E nunca para,

— Emily Dickinson

 

É assim que eu morro. Com uma centena de mãos pegajosas arrastando o meu corpo para o fundo do lago, dentro dessa caverna escura, no centro de um mar desconhecido. 

Semglória. Sem estardalhaço. 

Num minuto vivo e sedento, no próximo afogado e esquecido. 

Eu paro de lutar, relaxando o meu corpo, deixando as criaturas em decomposição fazerem o seu trabalho. O meu corpo alcança o fundo com um baque suave, os meus olhos abertos para a superfície, que cintila. De onde vem a luz? Quando Monstro desaparatou, tudo ficou escuro… 

A urgência que queima em meus pulmões é tão enlouquecedora quanto a sede foi. Eu fecho os olhos, inspirando a morte líquida para dentro do meu sistema. 

Quanta ironia: a minha decisão de morrer é a coisa mais certa que eu já fiz em minha vida. 

Mas o destino tem outros planos. Um novo par de mãos – urgentes e firmes em seu propósito – me arrebatam pelos ombros e me levam de volta para a superfície. 

* * * 

Eu nunca acreditei em céu ou inferno. Me parece contraprodutivo confabular sobre tais noções intangíveis, quando tanto o paraíso quanto a danação podem ser encontrados em nossa existência terrena com ridícula facilidade. Os céus sabem, por exemplo, que eu tenho vivido o meu inferno pessoal esse último ano. 

É como eu sei, antes mesmo de abrir os meus olhos, que eu estou vivo. 

Vivo é ruim. Vivo significa que Monstro falhou em seguir as minhas ordens. Que ele foi descoberto, ou que Voldemort chegou na caverna a tempo de capturá-lo. Que o meu sacrifício foi inútil, e que eu estou prestes a descobrir um nosso nível de inferno pessoal que eu nem mesmo posso conceber. 

Vivo significa que Monstro está, muito provavelmente, morto. 

— Mestre acordou! Monstro teve medo que Mestre Regulus jamais acordaria! 

Eu uso toda a minha energia para abrir os olhos e virar a minha cabeça na direção dos guinchos. A visão do rosto de Monstro colado ao meu – seu narigão caído, seus olhos aquosos e as suas orelhas retorcidas – teriam feito qualquer outro bruxo se encolher em aversão, mas me enchem de alívio e desespero em partes parecidas. 

— Monstro —  eu chamo, ou ao menos eu tento, mas descubro que a minha garganta parece ter sido tratada com lixa. Eu pigarreio e tento de novo, gosto de sangue em minha língua.  — Monstro, a caverna– por que você voltou? 

— Monstro não voltou! Monstro obedeceu Mestre Regulus! Monstro fugiu com o medalhão e não contou a nenhum membro da família! 

Isso não faz sentido. Eu tento me virar para olhar onde estou e percebo que os meus braços e pernas estão atados à cama. Mal sinal. 

— Onde estamos? — Eu tento de novo, mal capaz de formar palavras. 

— Mestre precisa entender — Monstro arregala os olhos aquosos, as mãos repuxando as orelhas caídas, os pés sapateando no chão como se estivesse em fogo. — Monstro queria salvar a vida de mestre! Monstro teve que pedir ajuda…

Meu coração despenca em minhas costelas doloridas. Eu quero acalmá-lo, mas eu preciso entender primeiro. 

— A quem, Monstro? A quem você pediu ajuda? 

Monstro cai em um ciclo de guinchos de desculpas, incapaz de coerência. Por experiência própria, eu sei que não há muito que eu posso fazer até que ele se acalme, a não ser:

— Eu o proíbo de se machucar — eu digo, esperando que ele me escute. 

Eu ainda estou usando as vestes com as quais viajei até a caverna — mas elas estão secas. A julgar pelo cheiro de sal e rigidez do tecido contra a minha pele, a água do mar secou naturalmente, o que deve significar que eu estou inconsciente por ao menos algumas horas. Mas… onde?

De onde estou, eu pego lampejos de mobiliado simples de madeira clara, que não me dão nenhuma pista do meu captor. As cortinas de linho azul estão fechadas, nenhuma luz através delas. A luz das chamas de uma lareira dançam pelo quarto, projetando sombras nas vigas de madeira do teto, e o calor vem de algum ponto à minha esquerda. 

Parece improvável que o Lorde das Trevas tenha me capturado, só para me amarrar no que parece ser um quarto de uma pousada. Mas se não ele, quem quer que tenha me resgatado da caverna ainda pode me usar de diversas maneiras que eu prefiro não experienciar. 

Eu preciso dar o fora daqui. 

— Monstro — Eu chamo com mais urgência dessa vez, forçando a minha voz rouca a se projetar através dos resmungos do elfo lacrimoso aos pés da minha cama. Eu suponho que quem me capturou é alguém da família, se Monstro ainda está ali e não me desamarrou. E só há uma pessoa me caçando como um gavião persegue uma lebre, desde que eu desertei do círculo íntimo de comensais da morte: querida prima psicopata, Merlin a abençoe. — A minha varinha, onde está? 

Antes que Monstro me responda, a porta se abre, revelando o oposto de Bellatrix; a pessoa que eu menos espero encontrar, em especial após uma experiência de quase morte em um lago cheio de inferis: Sirius

Eu não vejo Sirius de perto há tanto tempo que ele parece uma projeção da minha imaginação, e eu demoro mais do que alguns segundos para juntar as peças. Sirius me capturou.  Sirius, ao contrário de mim, tem uma varinha. Ela está apontada para o meu rosto, e eu me contraio, porque eu ainda me lembro do meu último encontro com a mira da sua varinha. Faz poucos meses, mas o fantasma daagonia extrema se manifesta em minha perna esquerda. Eu precisei de cinco semanas e um galão e meio de Esquelesce para recuperar a minha tíbia. 

Sirius provavelmente não se lembra desse encontro com a mesma vivacidade. Ele só estava azarando outro comensal mascarado em seu caminho com o pior feitiço que conseguiu produzir. 

Sirius tranca a porta, sem me perder de vista. A sua presença ocupa o quarto inteiro — com os seus jeans rasgados, a jaqueta de couro, os anéis de prata em todos os dedos, o esmalte preto para combinar, meu irmão persiste sendo a manifestação viva de tudo que mamãe odeia — eu não acho que ele possa evitar. 

Eu ainda me sinto pequeno em sua presença. Eu ainda me sinto inadequado, mesmo tendo seguido o manual de instruções que me foi imposto à risca a minha vida inteira. 

Eu não acho que eu possa evitar. 

— Você acordou — Sirius observa com brilhantismo. 

E porque Monstro ainda está guinchando e repuxando as orelhas, ele rola os olhos para o elfo e solta um suspiro impaciente. — Em nome de Merlin, sua criatura horrenda, pare com o escândalo, seu “mestre Reg” está vivo!

— Ele tem nome, sabe — Eu rosno, a velha chama de irritação me ajudando a desafiar a mira de sua varinha. Sirius pode me entregar direto aos dementadores, por tudo que eu me importo, mas isso ainda não justifica o seu tratamento hostil para com Monstro. 

Sirius me observa com uma expressão de vaga confusão. Ele pisca, sacudindo-se de algum transe e volta-se para Monstro com certa resignação: 

— O que eu quis dizer, Monstro, é que você não precisa se castigar. Já disse um milhão de vezes que fez a coisa certa em vir até mim, e agora que Regulus está acordado, tudo pode ser esclarecido. 

— Monstro ir atrás de traidor do sangue! — Monstro caí de quatro e começa a bater a testa contra o chão, cada baque de gelar o estômago, mesmo que eu tenha-no proibido de se machucar. Eu suponho que ele não tenha me ouvido. — Monstro TRAIU confiança do Mestre Regulus! Monstro não querer que mestre morra… Monstro maaaau! 

— Monstro, PARE– Eu tento de novo, forçando-me contra as minhas amarras para vê-lo, mas Sirius é mais rápido:

— Petrificus Totalus! 

Monstro congela de quatro, a cabeça a caminho de mais um encontro contra o assoalho, os olhos esbugalhados de surpresa. Em resposta ao meu movimento, as amarras se apertam em torno dos meus pulsos. Eu grito, mais de frustração do que dor, mas isso faz Sirius se voltar para mim, e de novo eu estou sob a mira de sua varinha: 

Relaxio

No minuto em que ele me libera eu me impulsiono de pé, mas é um erro. Sangue falha em alcançar a minha cabeça, manchas escuras dançam em minha visão e eu cambaleio para trás. Sirius avança, suas mãos amparando os meus ombros, uma de cada lado, a varinha ainda entre os seus dedos esquerdos, a ponta apontada para longe. 

Ele me ajuda de volta à cama. O gesto é suficiente para acender a lembrança – suas mãos me puxando para fora da água e para longe do abraço da morte. 

— Tudo bem aí? — Sirius pergunta, a voz incerta. 

Não, não está.  

— Você. Você me tirou do fundo do lago. 

Sirius assente, ainda com aquela expressão de incerteza que eu não vejo em seu rosto há mais de uma década. Desde que Sirius encontrou seus novos amigos – sua verdadeira família, como ele me informou em uma discussão específica em seu quinto ano – e decidiu que eles já sabiam tudo que precisavam sobre o mundo. 

Ele se afasta devagar, quando eu me estabilizo. Ele guarda a varinha no coldre costurado em sua jaqueta. 

— Óbvio que fui eu. Monstro tentou o Papai Noel primeiro, mas com todo o rebuliço deste mês ele não estava disponível. 

Eu olho de Monstro, petrificado, até Sirius, e de volta para o elfo. A minha ficha cai com atraso que seria mortificante, não fosse a impossibilidade da situação. 

— Monstro pediu ajuda a você? 

Sirius assente, uma nota de mórbido divertimento na voz: 

— Você o proibiu de contar a qualquer pessoa da família sobre o seu plano. Mas eu, como a criatura achou essencial me lembrar, não faço mais parte desse seleto grupo de psicopatas. 

Monstro — Eu repito por entre os meus dentes. — O nome dele é Monstro. 

 Sirius suspira e faz um gesto de concessão teatral com a mão, seu esmalte preto descascado cintilando à luz da lareira que queima às minhas costas.  

— Moooonstro. Monstro é bom com tecnicalidades genealógicas. Satisfeito? 

— Não. Tire o feitiço dele — Eu exijo. Sirius franze, o tipo de expressão que diz “sério mesmo, essa é a sua maior preocupação no momento?” Mas Sirius nunca foi bom em se colocar no lugar dos outros, especialmente dos que ele considera seus inferiores. — Tire. O feitiço. Dele. 

Com um suspiro exagerado, Sirius acena a sua varinha e despetrifica Monstro. O elfo cambaleia na minha direção, recupera o equilíbrio e vem rastejando aos meus pés, choroso. 

— Monstro pede desculpas… Monstro aceita qualquer punição de Mestre Regulus por ter chamado o traidor de sangue… mas Monstro não se arrepende de Mestre estar vivo.

— Está tudo bem, Monstro — Eu o asseguro, o meu peito apertado em um punho. Eu não tenho nenhuma pretensão de castigar Monstro por me querer vivo. Até onde eu sei, ele é o único que ainda se importa. Mas então, há aquela outra coisa. A razão pela qual eu devia ter morrido na caverna. — Onde está o… o que eu pedi para você destruir? 

Eu quero acreditar que antes de achar uma brecha nas condições da minha ordem de me deixar morrer sem interferência, Monstro encontrou tempo para destruir o pedaço de alma do Lorde das Trevas que recuperamos. 

Mas isso só o faz recomeçar o processo de se repuxar e pedir lamentar, com ainda mais estridência. Eu mal compreendo que ele perdeu o medalhão (Monstro mau! Monstro merece ter as orelhas cortadas!) quando Sirius enfia a mão no bolso de sua jaqueta e tira lá de dentro o objeto em questão, pendurado em uma corrente pesada de prata, tilintando entre os seus dedos compridos.

— Isso aqui? Eu tive um trabalho para tirar do seu amado. Quase me arrancou os olhos fora. 

Eu estico a mão para recuperar a peça, mas Sirius dá um passo para trás, colocando-a fora do meu alcance. A raiva e a frustração queimam no meu peito como fogueiras gêmeas, roubando o ar do quarto. Sirius e sua mania de meter as fuças onde não foi chamado. Eu me levanto de novo, dessa vez sustentado mais pela minha fúria do que pelas minhas pernas.

Eu não quase morri naquela merda de caverna para ver o meu plano arruinado pelo meu irmão intrometido. E daí que ele tem uma varinha? Eu tenho dentes e punhos e ressentimento acumulado o bastante para  separá-lo em partes. 

— Seu idiota, você não entende! Você não devia ter–

Sirius dá mais um passo para trás, a expressão crescendo em alarme, que se mistura com alguma gravidade teimosa acumulada na curva de suas sobrancelhas erguidas. 

— Eu acho que eu entendo uma coisa ou outra. 

— Eu juro por Salazar, se você não me devolver isso AGORA… 

— “Para o Lorde das Trevas” — Sirius recita, por cima dos meus gritos. — “Sei que estarei morto muito antes de você ler isso” 

Eu paro ao som das palavras familiares. Das minhas palavras. Sirius, olhos presos em meu rosto, continua: 

— “…mas quero que saiba que fui eu quem descobri o seu segredo. Roubei a verdadeira Horcrux e pretendo destruí-la assim que puder.”

Seus olhos caem para o objeto em sua mão, como se para confirmar que existe mesmo. Eu não sei como ele pode duvidar – mesmo de onde estou, eu ainda sinto a aura de magia maligna emanando da coisa. Eu a senti na caverna, antes mesmo de atravessar o lago. É como se tivesse o seu próprio coração, feito de magia negra e caos, pronto para causar estrago. 

— “Eu encaro a morte na esperança de que, quando encontrar o seu par, você será mortal mais uma vez.” — Sirius termina, a voz mais baixa e contemplativa. 

Eu não sei ler o seu tom. Estou desacostumado a qualquer coisa que não seja zombaria e desprezo na voz do meu irmão. 

Eu me sento de novo, porque parece uma má ideia desmaiar agora. Não quando eu sei que Sirius leu a minha carta para Voldemort – a memorizou, de fato. 

— É verdade, então? 

— O quê? — Eu pergunto de má vontade. Aquela carta nunca fora escrita para ser lida em voz alta, e nunca por ele. Eu estou constrangido, irritado por estar constrangido. — A horcruxe? É claro que é, está bem em sua cara, não está? 

Não, Regulus. O que você disse na carta. Que você estava decidido a morrer por isso.

Há um tom de descrença na voz de Sirius que não faz sentido. Será que ele não sabe o que uma horcrux é? Ele certamente teria pesquisado, à essa altura?

Sirius abaixa o olhar para Monstro, que parou de implorar perdão e agora está murmurando choroso aos meus pés. Eu o teria afagado, mas Monstro tem horror a contato físico após tantos anos de punição e o gesto só teria servido para agitá-lo ainda mais. 

— Ele vai vir atrás de você quando descobrir — Sirius diz, o rosto baixo, girando o medalhão entre os dedos. — Não tem como voltar atrás de uma coisa dessas. 

Eu já fiz esse cálculo há alguns dias, quando decidi visitar a caverna. Essa foi, aliás, uma das minhas maiores motivações para fazê-lo. Voldemort ia me matar de qualquer jeito; melhor ir nos meus termos, e de preferência, fazendo algum estrago. 

— Ele já está atrás de mim. Já sabe que eu desertei desde terça-feira passada. 

Sirius voltou a me encarar, os olhos largos. Eu julgo que o seu espanto é com a minha deserção, até ele perguntar: 

— E como você ainda está vivo

Eu encolho os ombros. Sorte, eu suponho. Eu quase morri pelo menos umas cinco vezes na última semana – duas pelas mãos de Bellatrix  e pelo menos outras três em confrontos com aurores. 

— Quando eles vêm me buscar? — Eu espero que logo. Me lembrar dos últimos dias reacende o cansaço arraigado em meus ossos. Também me lembra daquela ínfima fagulha de alívio, quando o meu corpo alcançou o fundo do lago. Sem mais correr. Sem mais dor. Sem mais sangue em minhas mãos, a não ser o meu próprio. 

Sirius, que tinha ido para algum lugar muito distante dentro da sua própria mente, voltou a me focalizar, perdido. 

— Eles quem? 

— Os aurores. Os dementadores. Os comensais da morte. A quem quer que você tenha decidido que vai me entregar. 

Novamente, aquela hesitação em seu rosto. Como se Sirius estivesse me vendo pela primeira vez, ou achando partes em mim que ele ignorou antes. Eu o teria sacudido, se eu tivesse a energia. O que você quer de mim? Não tem mais nada aqui, então vamos acabar logo com isso. 

Ninguém está vindo buscar você, Regulus — Ele também soa cansado. Ele se levanta e pela brusquidão do seu movimento, eu imagino que ele é incapaz de aturar a proximidade comigo por mais tempo. Isso não me surpreende. Desde que decidiu que tinha gente mais digna de sua companhia do que a nossa família – do que eu— Sirius me trata como se eu fosse venenoso. Mas então ele diz: — Você quase morreu essa noite. Descanse.  

E em sua voz não há contrariedade, irritação, desgosto ou nojo. Eu não devo, mas eu me atrevo a ter esperança. Uma esperança que eu sufoquei há muito tempo e que eu pensei que estava morta, mas que encontro debatendo as asas entre as minhas costelas. 


E mais doce na ventania é ouvida;
E dolorida deve ser a tempestade
Que poderia abater o passarinho
Que manteve tantos aquecidos. 

— Sirius — a minha voz nem é minha. Sirius se vira, já à porta. — O que acontece agora?

Eu lhe fiz essa pergunta outra vez, no passado. Sirius tinha voltado para casa depois do seu primeiro ano – depois de entrar para a Grifinória e se associar com todas as pessoas erradas — e todo mundo em casa estava irritado com ele, não pela seleção, mas porque ele estava orgulhoso do seu comportamento errático no último ano. Ele não podia ver como a sua atitude nos prejudicava – ou então ele podia e estava fazendo de propósito, o que para mim era pior ainda. 

Naquela época eu ainda não sabia como ficar irritado com Sirius. Eu só estava confuso, que é como eu me sinto agora. 

A resposta de Sirius é a mesma daquela noite:

— Eu não sei, Reg. 

— Mas você não vai me entregar — Eu insisto, tentando fazer senso daquele mundo em que eu acordei. Os olhos de Sirius escurecem, as suas sobrancelhas pesam. 

— Eles o matariam.

E ele está certo. Qualquer um deles – comensais, dementadores e até mesmo os aurores – que agora estão autorizados a usar maldições imperdoáveis em comensais da morte. Mas eu ainda não entendo o vinco no rosto do meu irmão, a perturbação em seus olhos, que como os meus, ficam escuros quando tentam fazer senso de um mundo que se recusa a fazer sentido. Eu sei, porque eu vi essa mesma expressão no espelho uma infinidade de vezes no último ano. E porque eu provavelmente a estou espelhando agora:

— E você se importa porquê…? 

Sirius franze tanto que seus olhos viram foices em seu rosto, a confusão virando impaciência: 

— Por que acha que Monstro veio até mim, entre todas as pessoas? Eu não quero ver você morto, seu idiota. 

A descrença deve ter vazado em meu rosto, porque Sirius solta um suspiro longo de exasperação. Seus ombros caem, seu corpo se volta na minha direção e a sua inquietação retorna, seus olhos de novo procurando entender, me entender, esse estranho que ele arrancou da água e amarrou na cama e não sabe como lidar. 

Bem vindo ao clube, maninho. 

— Por que você não veio até mim quando descobriu sobre isso — Ele levanta o medalhão, sua presença sugando a magia do quarto como a boca de um buraco negro. — Por que não veio me procurar quando decidiu desertar? Você preferiu levar Monstro — Sirius aponta para o elfo com o queixo como se Monstro fosse uma pilha de excremento de hipogrifo no chão do quarto — Do que pedir a minha ajuda! 

Eu estou prestes a argumentar que eu teria preferido a ajuda de Monstro do que a de um traidor do sangue desertor em qualquer tempo, mas a verdade é que a possibilidade nem mesmo me ocorreu. Nem mesmo quando eu estava certo da morte iminente, enfiado em um buraco debaixo da terra e me alimentando de ratos para não deixar um rastro que Bellatrix pudesse seguir até mim, eu considerei pedir ajuda do meu irmão. Para todos os efeitos, eu não tenho um irmão desde os meus treze anos, quando ele assim decidiu.  

Mas agora, Sirius parece ofendido. Não do jeito egocêntrico que Sirius se acha ofendido sempre que o mundo prova não girar em torno do seu umbigo, mas outro tipo de ofendido – como se Sirius tivesse esperado alguma coisa de mim, e eu o tivesse decepcionado. 

Não acho que Sirius já esperou algo de mim o suficiente para que eu pudesse decepcioná-lo. 

— Você sabe que nós estamos tentando destruí-lo — Ele insiste, contrariado, para a minha contínua perplexidade. — Você deve saber que nós teríamos ajudado você! Isso — essa horcrux — muda tudo! Nós realmente… realmente temos uma chance de lutar contra ele! De acabar com a raça desse filho de uma puta antes que ele destrua o mundo inteiro!  

Eu sacudo a cabeça e solto um sopro de desdém para toda aquela insanidade.  

— E você teria confiado em mim, não é? O comensal da morte arrependido, pedindo ajuda?  

Sirius pisca para mim, arrancado de seu discurso. Seus olhos clareiam e então se contraíram, como se a admissão doesse: 

— Não. Não, eu não acho que teria. 

— Bem. Aí está a sua resposta — Eu suspiro, dando o meu caso por encerrado. 

Monstro parou de resmungar em algum momento e agora está olhando de mim para Sirius, tentando compreender o clima da nossa interação. Eu estou imensamente grato que ele está vivo. Eu nem mesmo me importo que Sirius tenha o medalhão. Eu devia estar morto, e eu não estou, e a coisa toda é bastante cansativa. 

 — Se não pretende me entregar, qual o seu plano? Me manter prisioneiro aqui? Me interrogar, arrancar tudo que eu sei para repassar aos seus amigos? Me usar como isca para atrair uns comensais, ou quem sabe o próprio Lorde das Trevas? Novidade para você: eu não sou importante o suficiente para que ele venha me matar em pessoa.   

— Na verdade, eu estava pensando em começarmos com como se destrói essa coisa.

Eu mal me dou ao trabalho de olhar para ele. 

— Tenho certeza de que você e o resto da, como é que vocês se chamam? Ordem da Pena? Vão descobrir como. 

— Eu quiz dizer eu e você, Regulus. 

Dessa vez eu me atrevo a olhar para Sirius. Esse animal moribundo em meu peito, que devia estar morto, ao invés disso está procurando ar, perturbando o ritmo do meu coração com a sua agonia. 

— Se você quiser minha ajuda, isso é — Sirius continua, o fantasma de um sorriso assombrando a sua boca. — Se eu não for ficar no caminho do seu caso de amor com Monstro. 

— Você não está falando sério. 

— Eu juro. Estou disposto a fazer vista grossa para a relação de vocês, em nome da salvação do mundo mágico. 

Eu o ignoro. Eu não posso lidar com a imaturidade de Sirius agora, não quando ele está me oferecendo… parece estar me oferecendo… ajuda

Me ocorre que é tarde demais. Mesmo que exista um mundo no qual eu e Sirius ainda possamos lutar juntos – e que mundo improvável esse seria — o meu tempo está contado. Eu balanço a cabeça, tentando ignorar as agulhas que esperam o fundo dos meus olhos. Por que eu me importo com a minha sentença de morte agora, quando há um segundo atrás eu estava feliz em me sacrificar pela minha nova causa? 

Você não vai querer estar no meio do caminho quando o Lorde das Trevas me encontrar. 

Sirius ri pelo nariz, debochado: 

— Voldemort já quer a minha cabeça muito antes de querer a sua. Entra na fila, pirralho. 

Eu me agarro ao próximo fio de argumento que consigo encontrar, lutando contra o pássaro que tenta fazer o seu ninho de caos em meu peito. Certamente – certamente –  há outro milhão de razões pelas quais nós não podemos trabalhar juntos.  

— Mas você não confia em mim. 

Mas você me despreza. 

Sirius me encara. Ele parece ter juntando as peças do que eu sou, porque não parece mais confuso. Também parece ter ouvido ambos os meus argumentos, o dito e o não dito, e os considera sob uma nova perspectiva. 

— Suponho que vamos ter que trabalhar nisso. 

Eu suponho que vamos, exige a criatura em meu peito, abrindo as suas asas em toda a sua extensão e respondendo em meu lugar, quando eu estou sem palavras. 

 


Eu a ouvi na terra mais gelada,
E no mar mais desconhecido;
No entanto, nunca, nos extremos,
Ela me pediu uma migalha de mim. 

— Emily Dickinson




  

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Coisa Com Penas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.