O que tenho de mais precioso escrita por Isamu H Ikeda


Capítulo 1
O que tenho de mais precioso




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À medida que a noite caia, o frio aumentava, afinal, estavam no outono. Debruçado em sua janela, observando as ruas e demais prédios de seu bairro, Keisuke Baji bocejava de tédio. Peke J não havia feito uma visita sequer em seu quarto esses dias. Era como se o gato preto soubesse quem havia sido o responsável pelo estrago no rosto de seu dono.

Chifuyu ainda devia estar com a cara inchada...

Quando pensava nisso, as juntas de seus dedos doíam. Ou melhor, ardiam como fogo em brasa.

Respirou fundo. Amava a companhia do amigo e também vizinho, mas não via outra escolha. A situação em que se encontrava era complicada. Precisava fazer isso, e sozinho. Ou então, algo muito pior poderia acontecer, e ele não queria nem imaginar o quão desastroso seria. Não suportaria ver a Toman ser separada de novo, especialmente, por causa daquele miserável chamado Kisaki. Quando tudo fosse resolvido, talvez ele pudesse explicar seus motivos a Chifuyu, e dividiriam um Yakisoba Peyoung, como sempre. Porém, algo lhe dizia, com toda certeza, que o leal Chifuyu Matsuno desconfiava de suas atitudes recentes.

Ainda havia aquele novato... Takemichi nutria um ódio igualmente absurdo por Tetta Kisaki. Convenceu-se, então, de que poderia ficar tranquilo e concentrado em ajudar Kazutora, caso Chifuyu estivesse sendo amparado por Takemichi em sua ausência.

Foi quando recebeu uma mensagem de texto. Era por volta de 21:40 da noite. Ninguém da Tokyo Manji estaria atrás dele, devido às atuais circunstâncias. Seria Kazutora? Baji abriu o celular e achou extremamente esquisito que a mensagem fosse de ninguém mais, ninguém menos que Shuji Hanma.

"Se você não estiver ocupado ou dormindo, venha até a casa do Kazutora. Ele precisa de ajuda e já estou de saída".

— Mas que filho da puta... – disse em voz alta.

Estava cansado, mas não tanto que não pudesse bufar de raiva e socar a parede. Fodam-se os vizinhos, foda-se a surra que levaria de sua mãe depois. Não suportava esse cara. Tampouco acreditava que ele se importasse de fato com Kazutora.

Saiu rumo ao ponto mais próximo de seu conjunto, pegando o último ônibus. Mandou uma mensagem para sua mãe, que ainda estava no trabalho, avisando que dormiria na casa de um amigo.

 

***

 

Quando chegou ao condomínio de Kazutora, no andar em que ficava o apartamento mais precisamente, sentiu um cheiro forte... de cigarros.

Que merda era aquela?

Iria encarar indesejados. Não confiava em Hanma, tanto quanto não confiava em Kisaki ou em qualquer um daquela "ganguezinha" de jaquetas brancas. Tocou a campainha, na esperança de ser Tora a abrir a porta... Mas foi recebido pelo sorriso de raposa de Shuji Hanma, desenhado com cinismo. Mais atrás, havia outros dois membros da Walhalla, claramente mais velhos. Sobre a mesa, pelo menos três ou quatro garrafas de bebidas alcoólicas vazias, além de um cinzeiro sujo, transbordando de bitucas.

— Onde está Kazutora? – Keisuke perguntou, observando os visitantes.

Como adoraria enfiar a mão no meio da fuça feia de cada um.

Huh! — o cara de cabeça raspada e tatuagem tribal no rosto se levantou, imerso em gargalhadas enfadonhas. – Ele está vomitando sem parar naquele banheiro! – respondeu apontando para o lavabo.

— Ele se faz de durão, mas é fraco. – debochou o outro, de penteado bizarro.

Caso não estivesse enganado, esses dois brutamontes eram irmãos. Kazutora mencionou tê-los conhecido no reformatório, contudo Baji não sabia seus nomes. Não fazia nem questão disso, na verdade.

— Cuida dele pra gente, sim? – sussurrou Hanma, indo embora com eles, finalizando com uma risadinha irritante.

Cobra.

Quando a porta se fechou, a primeira coisa que Baji fez foi correr até o amigo. Ele estava um lixo, a roupa manchada, corpo apoiado no vaso sanitário, respiração oscilando... Também tinha rastros de vômito ao redor, como se não tivesse dado tempo de segurar.

Uma bagunça.

Raiva. Baji sentiu muita raiva.

Mas não de Kazutora, e sim daqueles três canalhas que não fizeram, absolutamente, nada para ajudar alguém que acreditava com muita vontade ser amigo deles.

Putos desgraçados.

Baji se abaixou e tocou o rosto do menor. Ele estava febril. Precisava de um banho morno.

— Tora... – chamou. – Ei... Eu tô aqui. 

— ... Baji? – mesmo visivelmente fraco, Kazutora abriu um largo sorriso, esforçando-se para cair no colo do melhor amigo. Queria abraça-lo. – Que bom... Você também veio!

Ele estava bêbado, óbvio. Mal mantinha os olhos abertos, e não tinha noção alguma do peso que fazia, ainda que ele fosse mais franzino em relação a Baji.

— É... Eu vim. Consegue ficar de pé? Eu te ajudo.

— Consigo!

Apoiando Kazutora para que ele não perdesse o equilíbrio, Keisuke, gentilmente, o levou até o sofá.

— Deita um pouco, Tora.

Un... – Hanemiya estava muito tonto e com o raciocínio limitado. Não contestou nada do que Baji disse ou fez, possivelmente, nem estaria entendendo direito. Apenas deitou e se agarrou em uma almofada.

O rapaz de cabelos compridos achou graça da atitude. Tora parecia uma criança. No mínimo, teria sido adorável em uma situação diferente, mas a expressão de Baji fechou rapidamente, com tristeza em seu olhar. Preocupava-se tanto com o menino a sua frente... Kazutora era cansado demais para um adolescente de 15 anos.

Baji o amava. De verdade. Não tinha outro sentimento que pudesse descrever melhor a amizade deles. Mesmo que nunca entendesse que tipo de amor era esse, ainda diria com todas as letras: Amava Kazutora Hanemiya.

Enquanto a banheira enchia, vasculhou o armário de remédios. Algum analgésico que abaixasse a febre seria útil, claro. Aproveitou também e limpou toda aquela baderna que os bostas da Walhalla causaram.

Ao abrir a varanda para que o cheiro de cigarros deixasse o recinto, pensou onde estaria Kazumi-san. Pelo visto, a mãe de Kazutora não estava em casa. Se ela fosse como a mãe de Keisuke, provavelmente daria um chilique ao se deparar com aquela cena tenebrosa.

Mas sabia o quão relapsa Kazumi podia ser, deixando o filho fazer qualquer coisa desde o divórcio, sem se atentar com o que acontecia, ou não, com ele. Era evidente já que Kazutora tinha feito uma tatuagem enorme aos 11 anos de idade.

Uma mãe atrapalhada e distante.

— Ei, Kazutora... Tora... – Keisuke chamou, já com um copo d’água e o remédio em mãos.

— Baji... – o menino parecia menos atordoado agora.

— Aqui. Toma esse remédio. Cê tá com febre.

Ele olhou, e olhou... Ainda um pouco confuso. Por fim, obedeceu, mesmo fazendo uma careta pela dificuldade de engolir.

— Eu preparei um banho também. Nem muito frio, nem muito quente. 

— Você vai me dar banho, Baji? Como um gato? – sorriu, quase provocador. Com isso, o rapaz de olhos castanhos aliviou a tensão nos ombros.

Kazutora lembrava sim um gato em muitos aspectos, desde a primeira vez que se encontraram. Um filhotinho de tigre com grandes olhos assustados e de cor amendoada.

— É, como o gato vira-lata que adotei naquele arcade. Vem.

 

***

 

Dobrando as mangas de sua blusa e as barras da calça para evitar que suas roupas ficassem encharcadas, Keisuke verificava a temperatura da água mais uma vez. Não queria causar um choque térmico em Kazutora, que estava imóvel atrás de si.

— Pronto. – disse – Pode entrar. Vou ficar por perto para evitar que você se acidente.

— Hm... Sim...

Longos 7 segundos se passaram com Tora ainda sem mover um músculo.

— Cacete, cê quer que eu tire a sua roupa também?!

— Não... Eu tiro. – pausou – É que... Eu não sou tão forte quanto você, ou o Mikey. – era a primeira vez, desde que ele saiu do reformatório, que mencionava Mikey... assim sem mágoa, sem rancor, sem raiva. Apenas com vergonha de sua aparência.

Despiu-se do jeito mais desajeitado que conseguia fazer. Baji cogitou mesmo a possibilidade ajudá-lo, por conta da lerdeza.

Ao jogar suas vestimentas, o que incluía cueca e meias, no chão gelado, o tigre em seu pescoço se destacou. Kazutora era uma pessoa bonita. Baji disse isso uma vez, quando zoou o penteado novo e a tatuagem.  Kazutora já era bonito antes, não precisava ter feito aquela atrocidade no cabelo. Não que o mullet misturado com mechas descoloridas fosse melhor.

Na parte superior de suas coxas, dava para notar várias marcas de arranhões. Ele tinha essa mania. De se arranhar tão forte ao ponto de fazer sua pele sangrar. Os médicos chamavam isso de "crises de ansiedade". Mas o que deixou Baji indignado e furioso foram outras marcas, mais arredondadas, de queimado. Como se tivessem usado aqueles braços finos para apagar cigarros.

C i g a r r o s.

— Kazutora. – chamou com o tom mais sério que tinha. – O que foi isso?

— Isso...? – olhou para o braço direito e passou o dedo por cima das áreas avermelhadas. – Eu... não sei. Tá doendo, mas eu não sei... de onde veio.

Keisuke respirou fundo. Aquele trio de vagabundos fez isso. Kazutora não estava sóbrio. Por tanto, suscetível. Tora era ingênuo. Se escondia atrás da imagem de um delinquente, mas não percebia quando as pessoas se aproveitavam dele.

— Vem cá. – Baji pegou a mão do amigo, com carinho.

Ela era macia e com dedos compridos. Mãos delicadas. Por mais que as usasse para socar o nariz de alguém. Tinha um lado de Kazutora Hanemiya que apenas ele conhecia. Um lado que estimulava seus instintos de proteção.

— Seu cabelo tá sujo de vômito, credo... Mas deixa que eu lavo para você. 

— Miau...

Hanemiya, alguma hora, iria começar a ronronar de tanto insistir nessa brincadeira de miados.

Respingou água para todo o lugar quando pôs os pés na banheira. Baji bufou, imaginando que tivesse que secar o piso depois, apenas para evitar mais um problema. Lavar o cabelo do amigo era mesmo parecido com dar banho em um animal de rua, mas também era satisfatório. Podia ver a expressão do outro se mostrar mais relaxada, aproveitando a massagem cuidadosa que recebia.

— Tora, posso te perguntar uma coisa?

— Pode. – o rapaz levantou o rosto para vê-lo, sem se importar com a espuma perto de seus olhos. – O que foi?

— Por que... – hesitou um pouco, logo continuando – Por que você bebeu? E por que Hanma e aqueles dois estavam aqui?

— Foram duas perguntas, Baji...

— Responda.

Kazutora abaixou o olhar e depois o rosto, deixando-se afundar um pouco na água morna. Encurralado. Estava envergonhado de novo.

— Aquelas bebidas eram todas da minha mãe. Quando saí do reformatório, descobri que ela passou esses dois anos se afundando em álcool e relacionamentos errados... Por minha causa, né? Eu sinto raiva, muita raiva disso. Quando ela não está saindo com algum cara aleatório, ela está aqui... enchendo a cara. – conforme Kazutora ia falando, Baji notava uma sutil mudança em seu tom de voz e maneira de falar.

Era muito calma, quase exausta. Não era aquele Kazutora, recém saído do reformatório. Revoltado, violento, fazendo juras de uma vingança contra a própria gangue, (para Baji, Kazutora sempre seria da Toman), descontente e confuso, mas sim o Kazutora de alma quebrada, abandonado e solitário. O Kazutora que estava no limite e não aguentava mais.

Ele continuou.

— A primeira coisa que passou pela minha cabeça não foi simplesmente, jogar as garrafas fora... Eu pensei “melhor eu bebendo isso, do que ela. Não vai ter nada quando ela chegar”. Foi um... foda-se, entende? Se ela bebe, eu também vou beber... Só que o Hanma estava aqui, disse que iria me ajudar com isso. Quando vi, Chome e Chonbo estavam bebendo com a gente. Eu sei que vomitei, minha garganta dói. Meu corpo dói, mas não lembro de muita coisa. No final das contas... eu sou tão estúpido quanto minha mãe. Mas... – ajeitou-se novamente para encarar Keisuke. – Pelo menos, você tá aqui comigo agora... Né?

— É. Fui promovido ao cargo de babá! – riu, terminando de lavar o cabelo dele, disfarçando a vontade que estava de sair dali e esfregar a cara do Hanma no asfalto.

 

***

 

O apartamento estava silencioso, e sem aquele cheiro insalubre de nicotina. Não existia mais resquícios de uma farra emporcalhada na sala e nem de um banho desastroso. Kazumi não teria hora para voltar. Kazutora disse a Baji que sua mãe andava se encontrando com seu atual chefe, e, muitas vezes, retornava um pouco depois do amanhecer. Por isso que ele andava bem mais durante a noite agora. Ficar ocioso em um ambiente inóspito, e sozinho, devia deixa-lo inquieto e muito ansioso com seus próprios pensamentos, que eram em sua maioria autodestrutivos.

O relógio apontava o início da madrugada. Os dois adolescentes encontravam-se deitados, um de frente para o outro, acolhidos do frio em um cobertor horrorosamente estampado. Se fosse para gastar dinheiro decorando o quarto com algo tão brega assim, que ao menos acertasse as listras de tigre, e não manchas de leopardo.

Quando mais novos, Kazutora uma vez foi dormir na casa de Baji, mas teve bastante dificuldade para pegar no sono, ficando insone. Baji disse que dormiria ao lado dele, dando a desculpa de ambos serem crianças e não seria esquisito. Talvez assim, Kazutora se sentisse mais tranquilo para dormir.

E funcionou.

Antes que percebessem, isso havia se tornado um costume, que, obviamente, ninguém mais tinha conhecimento. Kazutora ia, aos poucos, se rendendo ao sono. De olhos fechados, balbuciava disparates para Baji.

— Baji... Seu cabelo é macio... e cheiroso... – à medida que a voz rouca soava, aninhava-se cada vez mais agarrado ao outro, chegando a pôr uma das pernas por cima das de Baji, como se ele fosse um longo travesseiro com um cheiro muito específico de flor de laranjeira. – Eu gosto...

— ... D-dorme logo, porra!

Era fácil deixar Baji sem jeito. Muito fácil. Podia ter essa cara de mal encarado, mas se derretia todo por animais de pequeno porte. Em especial, gatos. Era um rapaz de coração enorme. Caso o contrário, já teria largado Kazutora e se esquecido dele.

Alguns segundos sem resposta, imaginou que o menor tivesse adormecido de vez. Como seu braço esquerdo estava em volta da cabeça de Kazutora, servindo de travesseiro, ia enrolando os fios pretos e amarelos em seus dedos. Era confortável para ele, de qualquer forma.

Quando estava quase fechando os olhos, ouviu:

— Ei, Baji...

— Sim?

— ... Você é tudo que eu tenho de mais precioso. Por favor, não me abandone...

Baji o sentiu apertar o abraço e afundar mais o rosto em seu ombro.

Droga, Kazutora. Droga...

Keisuke chorou e beijou a testa do amigo, por quem ele daria a vida se fosse preciso.

— Eu sempre vou estar com você, Tora. Não importa o que aconteça.

 

“Porque eu te amo”.


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