Não posso ficar escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
(Nem mais um minuto com você)




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A sala dos tronos era o perfeito exemplo para a palavra cacofonia.

Nunca foram uma família exatamente “tradicional”, mas o passar dos milênios certamente contribuíra para acentuar suas particularidades e os dias de Conselho Olimpiano pareciam concebidos para ressaltar isso: metade dos deuses preferiria estar em qualquer outro lugar do mundo e a outra parte nem sequer comparecia.

(O porquê seguiam indulgindo Zeus com essa formalidade besta, honestamente lhe escapava).

Talvez pelas origens pagãs do feriado que depois consolidou-se como o Natal ou quem sabe apenas porque os imortais parecem cultivar esse ímpeto de alinhar seus calendários com o dos humanos, mas a questão é que os finais de ano são sempre particularmente movimentados para os deuses. No dia de hoje, já discutiram o que parece uma lista infindável de afazeres e ainda faltam pelo menos mais dois para poderem dar a reunião por encerrada.

(Absolutamente exaustivo. Nem Zeus parece mais suportar o som da própria voz.)

A deusa da sabedoria consulta rapidamente suas anotações e lá está, em elegante caligrafia, o último compromisso do dia:  “Verificar o andamento da reconstrução de Atlântida”. Atena mantém o rosto impassível enquanto escuta seu pai informar que o “irresponsável e desrespeitoso” governante do dito reino segue recusando-se a reportar o progresso das obras mesmo após “insistentes mensagens” de seu irmão mais novo e, portanto, faz-se imprescindível que algum dos deuses se voluntarie para ir até lá fazer o trabalho pessoalmente.

Como divindade educada que era, deixou que o silêncio se prolongasse por um minuto inteiro, antes de se manifestar.

 Dois. Três...

 — Arg, está bem. Eu vou.

Percebeu, com diversão, os olhares assustados de vários dos seus familiares, ainda que se mantivesse séria, com deliberada atenção para que seu rosto não traísse suas emoções.

— Ora, não façam essa cara! Todos já expuseram os planos e afazeres que têm para o dia de hoje. Eu sou a pessoa com maior disponibilidade, portanto nada mais justo do que ir eu mesma checar as coisas com Poseidon.

— Engraçado constatar como as pessoas evoluem, né, irmãzinha? – Afrodite comentou, sorriso pretencioso nos lábios. – Se bem me lembro, em outros tempos você não estaria assim tão ansiosa para compartilhar o mesmo espaço que o deus dos mares...

De quem foi mesmo a brilhante ideia de dar o cargo de deusa do amor para uma mulher tão enxerida?, era o pensamento que não podia se permitir expressar em voz alta. A loira teve de contentar-se com seu costumeiro revirar de olhos.

— Trabalho é trabalho, Dite. Além do mais, sou uma deusa madura e responsável. Não há porque adotar um comportamento que não condiz com tal postura. Agora, se me dão licença...

Resolveu deixar o ambiente, antes que seu sorriso lhe traísse.

(Não era uma grande estrategista à toa).

 

●○⸙○●

 

Horas mais tarde, porém, sua ânsia para deixar um cômodo não era, nem de longe, a mesma.

— Poseidon, eu preciso ir...

O pensamento externado, entretanto, perdia boa parte de seu apelo pelo simples fato de que Atena não fazia menção alguma de levantar-se do sofá onde estava confortavelmente acomodada, muito menos de desentrelaçar seus dedos aos do homem que parecia desafiar o inverno com seu notável bronzeado.

Sem dar ouvidos aos seus protestos, o moreno prosseguiu com uma trilha de beijos por seu pescoço, deleitando-se naquele cheiro misto de roupa limpa e páginas amareladas que era só dela. Mais ainda: de pirraça – porque ele não era nada além de uma criança grande – apertou-a pela cintura ainda mais forte contra si.

Sem conter uma risadinha deliciada, a filha de Zeus pergunta-se a si mesma quando fora a última vez que cumprir com suas obrigações foi assim tão difícil e é uma prova do quanto ela está tentando com afinco ser responsável a reprimenda que oferece a seu... namorado.

(Já faz alguns meses, mas ainda é estranho. Novo. Pelas Parcas! O título recém-adquirido por Poseidon em seu vocabulário é um substantivo que jamais imaginou usar em sua existência e é quase engraçado o quanto um termo bobo pode ser capaz de fazê-la tão feliz.)

— Pare de me distrair com esses carinhos. Eu tenho que voltar e você sabe.

— Ah, meu amor, mas está tão frio lá fora...

— É você quem controla o clima de Atlântida, Poseidon. Se está congelando, a responsabilidade é exclusivamente sua.

Gargalhando, ele desliza o nariz pela pele macia do colo da deusa e então resolve dar atenção especial para sua boca.

Com a sua própria.

Beijando-lhe o canto dos lábios, ele apresenta sua linha de raciocínio:

— Pois diga que brigamos. Que me comportei como o imprevisível e irresponsável que sou e deixei meus sentimentos saírem do controle, causando uma tempestade. Diga que você não tinha como ir embora depois disso. Não sem verificar o tamanho do estrago e aproveitar para me dar uma bronca...

Dividida entre admirar-se com sua cara de pau ou com a surpreendente lógica da solução que ele lhe oferecia para continuarem sendo capazes de manter seu relacionamento só entre eles por mais um tempinho, Atena não resiste a uma pequena provocação.

— Hum... A convivência comigo está te fazendo bem. Está muito esperto, cabeça de algas. – E aqueles olhos verdes transbordam um sentimento de tal magnitude que ela tem certeza de que almas mortais sucumbiriam diante de tamanha intensidade, tanto amor. – Está certo. Acho que posso ficar mais alguns minutos...

— Isso! – Poseidon exclama e os dois riem juntos.

Seres mitológicos reduzidos a tolos apaixonados.

(E no entanto, será que a tolice não foi gastar tantos milênios trocando insultos quando poderiam ter estado trocando sorrisos?)

Os dois se permitem, então, mais alguns minutos dentro daquele abraço. Conversando sobre banalidades e observando as sombras bonitas consequentes da luz atravessando a água do lado de fora da janela. Dedos calejados tocam fios dourados com delicadeza e o tempo podia muito bem ter se suspendido naquele momento. Efêmero e eterno de mãos dadas em cada curva do caminho daquela história.

Os olhos de Atena se perdem no brilho dos pisca-piscas enredados nos galhos da árvore de Natal enfeitando o cômodo e, como se pressentisse suas cordas vocais ensaiando a repetição do aviso de ter que deixá-lo, Poseidon deposita um beijo em sua testa, anunciando que fará um chocolate quente. Sua especialidade.

Diante de tal barganha, como ela poderia recusar?

A deusa da sabedoria contenta-se em ajeitar um macio xale de tricô por sob os ombros, levantando-se do sofá e sendo invadida pela sensação aconchegante de ter os pés cobertos apenas por meias afundando no tapete grosso e felpudo daquela sala de estar.

(A domesticidade de ver um dos três grandes colocando pequeninos marshmellows dentro de uma caneca fumegante na cozinha anexa não ajudando em nada para acalmar as batidas erráticas de seu coração.)

— Prontinho, mademoiselle. Aqui está o seu.

Dois goles daquela bebida divina e um bigode de leite depois, Atena não pode mais conter suas ações. Entrelaça seus braços no pescoço do homem que tem amado há mais tempo do que se sentiria confortável em admitir e, na ponta dos pés, beija uma de suas maçãs do rosto com todo o afeto que é capaz de inferir naquele pequeno gesto.

O deus das tempestades deposita então as duas canecas na mesinha de centro – Onde estão seus porta-copos, Poseidon? Vão ficar manchas!— e traz aquela mulher absolutamente adorável para perto de si, mas não sem antes colocar a antiga vitrola acomodada na estante para tocar.

Embalados pela melodia suave, os dois valsam quase sem sair do lugar até uma certa música natalina fazer sua aparição especial. Atena e Poseidon se encaram, compreensão no olhar de ambos, e ele a gira num rodopio exagerado antes do primeiro verso.

— Agora eu sei o porquê nossa conversa de antes me deu um certo senso de déjà vu...

(Se Atena pisa levemente em seu pé de propósito, à guisa de resposta, ninguém pode provar.)

 

I really can't stay

(But baby it's cold outside)

I've got to go away

(But baby it's cold outside)

This evening has been

(Been hoping that you'd drop in)

So very nice

(I'll hold your hands, they're just like ice)

­

Brincadeiras à parte, a música parece capturar perfeitamente a dinâmica do relacionamento daqueles que um dia protagonizaram uma das maiores rixas entre os Olimpianos. Resposta por resposta, teimosia e intensidade, da melhor maneira possível.

 

My mother will start to worry

(Beautiful, what's your hurry)

My father will be pacing the floor

(Just listen to the fireplace roar)

So really I'd better scurry

(Beautiful, please don't hurry)

But maybe just a half a drink more

(Put some records on while I pour)

 

— Pois é, Poseidon. – Ela resolve provocá-lo, só porque pode. Só porque estar ali, dançando em seus braços, é das melhores coisas que já lhe aconteceu. – Minha mãe vai ficar preocupada.

Entrando na brincadeira, ele responde:

— Docinho, não se preocupe.

— Meu pai vai ficar andando de um lado pro outro...

— Zeus que se foda.

— Poseidon! – Atena exclama, sem conter uma gargalhada.

Dando de ombros, oferece sua justificativa:

— Desculpa, mas não pude evitar sair do personagem.

 

The neighbors might think

(Baby, it's bad out there)

Say, what's in this drink

(No cabs to be had out there)

I wish I knew how

(Your eyes are like starlight now)

To break this spell

(I'll take your hat, your hair looks swell)

 

Não há mesmo o que perdoar – Atena aprendeu a amar inclusive sua petulância – e, ao contrário do eu-lírico da canção, não deseja quebrar esse encanto por nada no mundo.

 

I ought to say no, no, no, sir

(Mind if I move in closer)

At least I'm gonna say that I tried

(What's the sense in hurting my pride)

I really can't stay

(Baby don't hold out)

Ohh, but it's cold outside

 

— Você sabe que eu realmente devia dizer não.

— Aham. – Aquele homem absurdo tem a audácia de concordar, enquanto apoia o queixo no topo de sua cabeça de um jeito que a derrete inteira.

— Bom, pelo menos vou dizer que tentei...

(E o sorriso dele é tão lindo. Ainda que não o veja, pode senti-lo.)

 

I simply must go

(But baby, it's cold outside)

The answer is no

(But baby, it's cold outside)

This welcome has been

(How lucky that you dropped in)

So nice and warm

(Look out the window at that storm)

 

Atlântida já pertence ao imaginário popular como um lugar mágico, mas o casal de namorados tem o privilégio de experienciar o ápice de sua beleza na tranquilidade cotidiana daquela tarde de dezembro.

 

My sister will be suspicious

(Gosh, your lips look delicious)

My brother will be there at the door

(Waves upon a tropical shore)

My maiden aunt's mind is vicious

(Oh your lips are delicious)

But maybe just cigarretes more

(Never such a blizzard before)

 

A cena é romântica e suave, mas nenhum dos dois quer desperdiçar a graça daquela coincidência, então continuam:

— Afrodite desconfia...

— Deuses, seus lábios parecem deliciosos.

— Hermes vai estar lá, parado na porta, e Deméter tem uma mente poluída.

Poseidon a beija, profunda e lentamente, antes de acrescentar:

— É. Realmente, uma delícia...

Não dançam mais e há cerca de um passo de distância entre eles, mas é como se o verde e o cinza se beijassem também.

 

I've got to get home

(But baby you'll freeze out there)

Say, lend me a coat

(It's up to your knees out there)

You've really been grand

(I thrill when you touch my hand)

But don't you see

(How can you do this thing to me)

 

— Eu te amo, sabia?

E Poseidon é quem é reconhecido pela impulsividade, pelo improviso e por ser emotivo, mas são dos lábios de Atena que saem a declaração espontânea.

(Pode até estar frio lá fora, mas ali dentro tudo é morno e tão indiscutivelmente feliz.)

 

There's bound to be talk tomorrow

(Think my lifelong sorrow)

At least there will be plenty implied

(If you got pneumonia and died)

I really can't stay

(Get over that old out)

Ohh, but it's cold

Baby, it's cold outside

 

— Fica.

Ele lhe pede, por fim, numa afirmação que soa mais como pergunta.

Vulnerável como ele só, a mão estendida com a palma para cima e os olhos que clareiam a elipse de um “para sempre”.

(Exagerado, alguns poderiam dizer. Atena, entretanto, tem aprendido que ele é a medida exata para si.)

— Fico.

E, no fim das contas, ela também salpica sua promessa com eternidade.


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