A fada que o escreva escrita por Creeper


Capítulo 6
Um consultório em Pomar


Notas iniciais do capítulo

Oie! Espero que estejam gostando da história e tenham uma ótima leitura ♥



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Não pude ver Yona acordar, entretanto, resolvi deixar um presente para ela: meu poncho branco. Claro, havia alguns rasgos nele feitos por ela mesmo quando me atacou, mas acho que dava para consertar, porque eu também deixei um carretel de linha e uma agulha. Adão e Dante ficaram bem impressionados por saberem que eu tinha de tudo guardado em meu sobretudo.

Por grande insistência minha e para pegar a maleta que deixei perto da casa de Sued quando fomos “caçar” os vampiros, pude visitar a residência de Úrsula e Leona uma última vez. 

As garotinhas estavam no quarto dos fundos em volta da cama onde repousava um homem cujo a pele brilhava de suor e parte do rosto era envolto por uma volumosa barba preta. Sua respiração entrecortada escapava por seus lábios e Helga tratava de fazer uma compressa fria em sua testa e dar-lhe um pouco de caldo de peixe.

Havia escutado Dante comentar que pessoas exorcizadas tendiam a dormir por horas, pois o corpo ficava totalmente desgastado sob a presença de um demônio. De todo modo, suspirei aliviado pelo exorcismo ter dado certo.

Me despedi da família com um aceno exagerado e a promessa de que algum dia lhes enviaria uma carta. Tive meu coração partido com o jeito que Úrsula e Leona choramingaram e pediram para que eu voltasse mais vezes.

— Não seria melhor começar nossa caminhada de dia? – encarei o céu negro sem a presença de nenhuma estrela.

— Não, porque perderíamos o trem. – Dante carregava Sybelle em sua mão.

— O quê? Mas você disse que… – travei meus pés na neve.

Dante revirou os olhos, tateou o sobretudo com a mão livre e tirou de lá um saquinho de pano que tilintou ao ser balançado. Estava cheio.

— Helga pagou um pouco a mais porque achou que iríamos precisar. 

Pressionei os lábios e um pequeno calor se espalhou por minhas bochechas, acompanhado da vontade de soltar algumas lágrimas de gratidão. Apesar de tudo, soltei o ar que prendia e falei receoso:

— Não podemos aceitar. Bem, eu não posso. Não fiz nada para merecer isso.

— Você pode ser tudo aquilo que falei no pé da montanha. – o exorcista guardou o saquinho. – Mas tenho que admitir que também é corajoso. Pode não ter tirado a menina das garras da vampira, porém, a impediu de atacar a vila.

— Como é que você sabe? – voltei a caminhar ao seu lado.

— Suichiro, você é a pessoa mais simples que já conheci até hoje. Todos os seus pensamentos estão estampados na sua testa. – ele disse convencido.

Arregalei os olhos por um instante, mas logo franzi as sobrancelhas e torci o nariz, provavelmente ficando vermelho de constrangimento. Eu não era tão simples assim, podia muito bem ser enigmático como ele se eu quisesse. E meus pensamentos não estavam estampados.

— Agora está dizendo que não é simples. – Dante soltou uma risada sarcástica.

Pare de ler meus pensamentos!

 

***

 

Após uma sofrida caminhada no frio, chegamos à estação a tempo de comprar as passagens e embarcar no trem. O interior da estrutura de ferro ainda não era uma das mais calorosas, todavia, estava bem melhor do que o lado de fora.

Joguei-me em um dos assentos e espreguicei-me soltando um grunhido preguiçoso. Foquei-me na janela, admirando uma última vez a imensidão branca sob a luz azulada da noite. Alguns flocos de neve começavam a cair e dançar pelo ar e eu apenas torcia para não sermos pegos em uma nevasca.

— O que vamos fazer quando chegarmos lá? Invadir o consultório? – indaguei, contudo, as palavras que Sybelle escreveu perderam-se no ar.

Dante havia se deitado em seu banco com as pernas dobradas e um dos braços sob a cabeça. Suas sobrancelhas estavam levemente franzidas e a boca havia se transformado em uma linha reta. Pelo chiado que emitia e o jeito como seu peito subia e descia tranquilamente, havia dormido. Aparentemente, ele também ficava cansado depois de um exorcismo.

Expirei suavemente e ocupei-me em fazer algumas anotações em meu caderno de explorações e em meu diário, aproveitando-me para concluir a jornada em Olpo e escrever mais alguns trechos para a carta que enviaria a Gaspar.

“Faz poucos dias que saí de casa e já encontrei dois demônios e dois vampiros, você sabe como eu gosto de números pares. Confesso que foi bom ter vindo com um exorcista (apesar de ele ter me chamado de simples), pois sem ele eu provavelmente teria usado suas bombas de água benta até não restar mais nenhuma ou me arriscado em uma luta de bastão.

A viagem até Terras Brancas não foi nada do que eu esperava. Mas valeu cada moeda da passagem. A neve é linda e o vilarejo parecia acolhedor, gostaria de ter ficado mais tempo lá, todavia, entender o que se passa no misterioso consultório de Pomar é a prioridade do momento.”

Foram dois dias e meio no trem até a neve ser substituída pelas ruas de pedra, onde os longos galhos de uma macieira formavam um meio arco na entrada da cidade. 

Os freios rangiram quando o trem chegou à plataforma, as portas dos vagões foram abertas e eu pude sentir minhas pernas novamente ao pular para fora da locomotiva. 

— Vamos, não temos tempo a perder. – Dante ajeitou seu colarinho e seguiu caminho sem me esperar.

Tive de pedir licença a muitas pessoas e esbarrar em outras para conseguir deixar a multidão que saia e entrava no trem. Livre daquele aperto e longe do telhado da estação, enxerguei o céu. Era menos azul do que em Hibisc e o ar com certeza menos puro.

Alcancei Dante, ainda me distraindo com o cenário ao dar alguns rodopios e andar de costas para analisá-lo melhor. Os tijolos das construções eram cinzentos, havia sujeira nas ruas e poucas árvores que realmente davam frutos.

— Eu esperava mais de uma cidade chamada Pomar. – comentei olhando ao redor.

— Ei, você! O que está falando da nossa cidade?!

A voz vinha de um sujeito magrelo, mal-encarado, com a barba por fazer e um cigarro na boca banguela. Arrepiei-me dos pés à cabeça, soltei um gritinho esganiçado e encolhi os ombros.

— Nada não. Bela cidade. – pigarreei e corri para perto de Dante.

— Estamos aqui a cinco minutos e você já quer se meter em confusão? – ele olhou-me de soslaio e esboçou um sorriso zombeteiro.

— É só o meu jeitinho de fazer as coisas. – ri sem jeito e arrumei minha franja. – Qual o plano?

Dante não respondeu, apenas continuou a andar com os punhos cerrados ao lado do corpo e a cabeça virando de um lado para o outro discretamente. Foi assim até avistarmos uma construção de dois andares que contava com uma porta de madeira e uma única janela empoeirada. A placa pendurada por um adorno de ferro preto indicava que ali era um consultório médico.

— Achamos. – ele assentiu sério. 

— Tem certeza? 

— A energia que emana daqui é terrível. Se você fosse um exorcista, enxergaria a névoa preta e púrpura que envolve esse lugar. E se eu ainda pudesse ouvir, escutaria os murmúrios de lamentação. – Dante fechou os olhos por um instante.

Rangi os dentes, pensando como aquilo devia ser assustador. 

— Tive uma ideia. – ele abriu os olhos. – Venha. – agarrou meu antebraço e puxou-me pelas ruas desconhecidas.

Dante tinha um ótimo senso de direção, pois em poucos minutos nos encontrávamos em um minúsculo quarto do último andar de uma pousada que foi estrategicamente escolhido por ter uma ótima vista do consultório. 

Sentei-me na velha cama forrada por lençóis amarelados e esperei por suas ordens.

— Tire o sobretudo. 

— O quê?! – arregalei os olhos

— Anda, quero ver o tem aí. – Dante cruzou os braços, impaciente.

— Não acha que está muito apressado? Nos conhecemos há uns cinco dias… – corei e desviei o olhar.

— Estou falando que quero ver o que tem nos seus bolsos. – ele revirou os olhos.

Soltei um “ah” de vergonha e apressei-me em retirar o sobretudo, entregando-o de cabeça baixa para o rapaz. Meu braço tremia e o rosto ardia em chamas, pois eu já sabia o próximo trecho da minha carta.

“Gaspar, acho que no final das contas o apressado era eu. Vou tentar ser menos atrevido quando me pedirem para tirar alguma peça de roupa.”

Dante avaliou o conteúdo dos bolsos internos e externos, retirando dali um óculos de armação redonda e um pequeno frasco etiquetado de “Poeira Ametista”, o qual tratava-se de um pó roxo que bastava ser diluído em água para virar tinta. 

— Vamos precisar nos disfarçar. – Dante jogou-me o sobretudo de volta, colocou os óculos e soltou seus longos cabelos castanhos escuros que caíram por seus ombros.

— Ah, sim, é bem difícil reconhecer um homem como você. – brinquei.

— Mais difícil do que os de cabelo verde. – ele alfinetou.

— Ei, é de nascença! – rebati.

Tratei de retirar o laço de meu colarinho, abrir os três primeiros botões da camisa e desamarrar meu pequeno rabo-de-cavalo, penteando o cabelo para trás com os dedos. Era quase um novo homem.

— De qualquer forma, se lembra da encenação que fizemos quando nos conhecemos em Hibisc? – Dante retirou sua insígnia e a colocou na cabeceira.

— Vai demorar para eu esquecer. – dei uma risadinha. O dia em que tudo começou.

— Então consegue fingir que está doente e sem dinheiro? – ele indagou.

— Essa é fácil porque sem dinheiro eu já estou. – estalei os dedos.

Dante revirou os olhos outra vez, abriu o frasco do pó roxo e aproximou-se de mim, fazendo-me encolher até encostar na parede. Arregalei os olhos e meu coração decidiu bater como se eu tivesse acabado de correr de um demônio, quando na verdade eu apenas encarava o rapaz retirar uma de suas luvas e afundar os dedos na Poeira Ametista.

— Você tem um rosto muito saudável. – passou o polegar na área abaixo de meus olhos.

— É que o Gaspar me obriga a comer todos os vegetais. – engoli em seco. Sua mão era mais fria que um pedaço de gelo.

Dante passou um pouco do pó nas laterais do meu rosto, no pescoço e nas mãos. Confesso que prendi a respiração a cada toque. Conferi o resultado no espelho pendurado atrás da porta, vendo meu rosto se transformar em uma careta de desgosto.

— Não pareço doente, parece mais que eu apanhei. – toquei levemente minhas olheiras falsas.

— Isso não importa. – ele resmungou. – O que importa é você distrair o doutor tempo o suficiente até eu encontrar a passagem para o subsolo que o vampiro contou.

— Deixa comigo. – assenti determinado e guardei minha insígnia no sobretudo que ficaria repousando no colchão por um tempo.

 

***

 

Aquilo podia ser tudo, menos um consultório. O balcão estava empoeirado, as teias de aranha se acumulavam nos cantos e os frascos de remédio estavam tombados nas prateleiras. Um senhor baixinho e corcunda, dono de uma longa barba branca e sobrancelhas absurdamente grossas nos lançou um olhar de desconfiança assim que passamos pela porta.

— Em que posso ajudá-los?

Seus olhos arregalaram-se ao visualizar sua frase transformando-se em palavras douradas no ar. Fascinado, ele comentou:

— Vejo que possui uma fada má. Apenas bons exploradores ou bons compradores têm uma dessa.

Fingi uma tosse e um pigarro.

 - Desculpe incomodar, é que eu sou um forasteiro. Peguei uma doença na minha cidade natal, mas como não tinha dinheiro para pagar o tratamento, vim até aqui… – falei baixinho.

Eu havia esfregado bastante os olhos antes de entrar, a fim de deixá-los vermelhos. Esperava estar convincente.

— E esse rapaz é? – o senhor perguntou.

— Sou o tutor dele. – Dante mexeu em seus óculos. Uau, um mentiroso bem rápido. – A fada má é minha, a comprei em uma de minhas viagens.

O senhor pareceu analisar-nos por mais um tempo, levantou-se de seu banquinho de madeira e aproximou-se de mim estendendo sua mão óssea. Mentalmente, eu apenas pedi para que ele não tocasse o meu rosto.

— Vamos para o andar de cima. Seu tutor pode esperar aqui. 


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Notas finais do capítulo

E agora? Sui vai subir sozinho? Esse plano vai dar certo?
Muito obrigada pelos comentários, pessoal ♥
Até semana que vem, beijos.
—Creeper.