A fada que o escreva escrita por Creeper


Capítulo 21
A governanta da casa Whitlock


Notas iniciais do capítulo

Yo! Boa madrugada!
Desculpa por não ter respondido os comentários, essa semana foi corrida, mas logo estarei respondendo ♥

Tenham uma boa leitura.



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Amy me levou para a sala de estar, colocou-me sentado no sofá enquanto eu soltava diversos soluços e voltou tempo depois com uma bandeja de chá e alguns biscoitos.

— Isso vai te acalmar. – ela entregou-me uma xícara e passou a mão por minha cabeça.

Funguei, enxuguei as lágrimas e dei um grande gole. Era quente e doce no começo, mas podia senti-lo amargar na garganta.

— O que é isso? – engoli em seco.

— Uma receita especial. – Amy apertou minha bochecha. – Vou servir um pouco também para os outros empregados, é bom para aliviar o estresse.

Pisquei os olhos lentamente, ficando cansado de repente. As formas ao meu redor tornaram-se embaçadas e minha pele formigou. 

— Amy, isso não é bom. – balbuciei e estendi a mão, porém, não tive forças para tocar a governanta.

— Fique aqui e descanse, eu irei conversar com o Sr. Vulpecula. – ela afofou as almofadas, recolheu a bandeja e abandonou-me.

Exausto, deixei o peso da cabeça repousar no sofá e encolhi as pernas ao ser tomado por uma sequência de calafrios. Meu último pensamento antes de cair em um sono profundo foi de que Dante estava em perigo.

 

***

 

Trovão.

Acordei assustado em um sobressalto que fez minha vista ficar turva. Meu coração estava acelerado como se tivesse acabado de ter um pesadelo e eu suava tanto que as roupas se grudavam ao corpo.

Cobri a boca com a mão, curvei-me e fechei os olhos por um instante, apenas para colocar os pensamentos no lugar. Impossível, minha cabeça continuava a girar.

Havia um som vindo do lado de fora. Encarei a grande janela da sala sem entender o que estava acontecendo e vislumbrei as gotículas de água escorrendo pelo vidro, acompanhadas de um céu negro e alguns relâmpagos.

Encolhi os ombros e engoli em seco. O belo dia havia se esvaído.

A casa se encontrava em um silêncio mortal, não havia sinal de sequer um empregado e muito menos de Amy. Meu estômago revirou-se de pavor, apesar disso, minhas pernas trêmulas moveram-se sozinhas, guiando-me para o jardim, pois eu sabia que tinha de ir para lá.

Os pingos da chuva cortaram minha pele e a escuridão me confundiu quanto a que parte do dia estávamos e por quanto tempo dormi. Afastei os cabelos molhados do rosto, mordi o lábio inferior e corri para a estátua de anjo com a respiração descompassada.

Inspirei e expirei por alguns segundos, encolhendo-me e fechando os olhos a cada trovão.

Olhei para trás uma última vez, sem saber exatamente o que procurava. Talvez esperasse ver a carruagem de papai, os gêmeos, algum empregado ou até mesmo Dante e Amy escondidos debaixo de uma árvore tomando chá. 

Mas nada daquilo aconteceria. Eu estava completamente sozinho. Era eu e o túnel onde a água corria monstruosamente pelos degraus.

Respirei fundo e recorri ao meu colar de cristal luminoso, segurando-o com a mão que tanto tremia.

Minha luz misturou-se a outra. A porta misteriosa estava aberta, deixando exposto o corredor iluminado por tochas que guardou por todo aquele tempo. Uma corrente de ar bateu em meu rosto e eu me obriguei a continuar em frente.

O corredor levava a uma enorme sala subterrânea cujo cheiro azedo fazia minhas narinas e olhos arderem. Não era uma entrada interna para a casa e nem se parecia com um porão.

O chão de pedra era irregular, cheio de elevações e riscos que formavam círculos, milhares de círculos com símbolos que tremeluziam debaixo da umidade. 

— Suichiro! – alguém bradou em um tom de desespero.

Avistei a figura de Dante preso a uma das paredes da sala por grossas correntes que deixavam suas pernas e braços esticados. Havia cortes por seu rosto e os cabelos soltos caiam embaraçados por suas vestes rasgadas. Arregalei os olhos e assim que pensei em correr ao seu encontro, senti algo pesado e frio envolver um de meus tornozelos.

— Vejo que acordou, pequeno Suichiro.

Virei a cabeça devagar, encontrando Amy ajoelhada ao meu lado e mantendo as mãos em uma corrente ligada à minha perna. 

— O que é isso, Amy? – sussurrei abismado.

— Suichiro, olhe para o centro da sala! – Dante gritou.

Tive medo de fazer aquilo, entretanto, sua feição de pura fúria me fez acatar sua ordem. No meio do lugar, desenhado em vermelho sobre as irregularidades, estava o círculo que vimos tantas vezes em Enginóvia.

— Sabe que eu nunca te machucaria, não é mesmo? – Amy levantou-se e demonstrou um semblante carinhoso. – Apenas preciso impedir que se aproxime do nosso hóspede.

— Amy, me solte! – rangi os dentes e tentei agarrar seu braço, todavia, ela recuou um passo e afastou-se.

— Foi você quem criou esse círculo?! – Dante rosnou.

— Foi... Há treze anos? Isso, treze anos. – a governanta estendeu a mão sob uma goteira. – E recentemente o vendi para algumas pessoas de Enginóvia. Mas elas falharam e acabaram criando cadáveres ambulantes. Aqueles que vocês chamam de demônios.

Senti um baque em meu peito e meus membros fraquejaram. Os demônios de Enginóvia... O quê?

— Isso é estranho. – semicerrei os olhos, analisando o mapa. – Eu gosto de números pares, mas é esquisito que tenham escolhido justo seis cidades. Por que não sete que são os dias da semana ou das maldições do exorcismo?”

— Por que vendeu uma coisa dessas? – berrei indignado e ajoelhei-me para tentar abrir a corrente.

— Eu precisava de dinheiro para terminar de construir nossa casa. – Amy ergueu seu rosto. – Somente o emprego de governanta não estava pagando a mão-de-obra. – alongou-se.

— Nossa casa? – minha voz saiu feito um fio e as mãos congelaram no metal gélido.

— É quase tão grande quanto essa, você vai amar. Fica em uma ilha distante onde viveremos apenas eu, você e mais uma pessoa. – ela sorriu realizada.

Por um momento, não consegui desviar o olhar da mulher que se mostrava tão amável, contradizendo totalmente as frases doentias que saíam de sua boca. Agitei a cabeça em negação e tateei meus bolsos, procurando por qualquer coisa que pudesse libertar meu tornozelo.

— Ficou maluca? – o exorcista cerrou os dentes. – Não tinha o direito de vender esse círculo e muito menos criá-lo, assim como não tem o direito de brincar com a vida! 

— Quando amar muito alguém, vai me entender. – Amy franziu as sobrancelhas.

— Você quer falar de amor?! Quando se ama muito alguém, você deixa essa pessoa descansar em paz depois de partir, não a ressuscita! – Dante bradou furioso e debateu-se.

A informação veio feito um tapa e meu corpo paralisou. Com o ar preso na garganta, levantei a cabeça e fitei os dois presentes, buscando por qualquer sinal de que aquilo fosse uma mentira. Dante semicerrou os olhos em uma expressão dolorosa e virou o rosto para que eu não o visse. Amy tossiu, cobriu a boca e desviou o olhar fingindo inocência.

— V-Você ressuscitou a minha… – balbuciei horrorizado.

— Suichiro, compreende que fiz isso por nossa felicidade, não é? – Amy aproximou-se.

— Não me toque! – gritei em um estado insano e arrastei-me para trás até bater as costas na parede. – Onde ela está?

— Entenda como a vida pode ser melhor sem seu pai e seus irmãos, apenas nós três bem longe daqui. Eles nunca se importaram de verdade contigo. – ela agachou-se em minha frente e esticou sua mão. – Assim que fecharmos o túnel, poderemos ir para a nossa nova casa. Ninguém sentirá nossa falta.

Meu peito subia e descia descontroladamente. Não conseguia sequer piscar, pois imaginava que no instante em que fizesse aquilo, Amy me atacaria. Rangi os dentes com tanta força que me senti capaz de quebrá-los.

— Onde ela está?! – voltei a berrar e protegi meu corpo com o antebraço.

Amy recuou sua mão, suspirou derrotada e ficou de pé. Ela atravessou a sala até chegar a uma outra porta de madeira no canto, abriu-a em um rangido e liberou a passagem para a pessoa que ali estava.

— É um ótimo abrigo de emergência, não? – Amy comentou.

Meu coração falhou uma batida e o ar me faltou. Os longos cabelos em tom salmão perfeitamente penteados, as irises azuis puras e o sorriso sereno compunham a imagem diante de meus olhos. Não existia nenhum defeito em seu corpo. Nem mesmo a cicatriz e a costura em seu pescoço pareciam um defeito em sua pele rosada.

Mamãe era perfeita. 

Mas aquela nunca seria minha mãe. 

— O que você está fazendo com esses rapazes, querida? – Peach questionou confusa.

— Infelizmente, cadáveres ressuscitados perdem as memórias que tiveram em vida. – Amy observou-me. – Isso porque a alma deles se esvai e precisamos preencher o corpo com outra coisa, vocês devem imaginar. – acariciou os cabelos da mulher.

Meu estômago embrulhou-se e um líquido quente subiu por minha garganta, obrigando-me a tapar a boca. Coloquei a outra mão no chão para sustentar o peso do corpo e ousei encarar a cena mais uma vez.

— Por treze anos… – murmurei fracamente. – Esteve mantendo-a aqui embaixo por treze anos? 

— Foi necessário até que nossa casa ficasse pronta e você tivesse consciência para entender o que fiz. – Amy segurou a mão de Peach.

— Eu nunca vou entender. – cuspi as palavras. – Nunca. Nunca. Nunca. – aquela palavra tornava-se ainda mais dolorosa a medida que eu a repetia.

— Por que ele está tão triste? – Peach indagou preocupada.

Soltei um soluço esganiçado e as lágrimas pesadas escorreram por minhas bochechas. Ignorando a visão borrada, voltei a explorar o interior de meu sobretudo e agarrei algo fino e frígido.

— Como foi que escondeu isso do meu pai? – semicerrei os olhos.

— Não fiz nada demais, ele quem fez, sendo o viciado em trabalho que é. – a governanta esboçou desprezo.  

— Amy, se você devolver esse corpo ao lugar que ele pertence e deixá-lo ter sua paz eterna, prometo que sua sentença será menor. – Dante remexeu-se fazendo as correntes tilintarem.

— Devolver? – Amy ganhou um semblante sombrio.

— É o ciclo da vida. – o exorcista arfou. – Precisa deixar as pessoas partirem.

— Exorcistas mexem com demônios o tempo inteiro, não pode dizer nada para mim. – a governanta soltou a mão de Peach e caminhou ao meu encontro. 

— Afaste-se. – murmurei amedrontado.

Era como se todas as boas lembranças que tive com Amy fossem queimadas. Ensinamentos, cartas e brincadeiras. Tudo foi consumido por chamas dentro de minha cabeça e não restou uma única cinza.

E como doía.

— É por causa dele que você está assim? – Amy olhou para Dante com nojo. – Não tem problema, meu bem, eu posso matá-lo e depois ressuscitá-lo, assim ele esquecerá tudo o que viu e ouviu aqui. 

Ela então inclinou-se e tocou meu rosto. Um toque frio e áspero. Um toque que me fez estremecer de medo e agonia. Prendi a respiração e retirei o punho cerrado de dentro do sobretudo, atingindo-o no antebraço de Amy e traçando um risco de sangue por sua pele com uma agulha.

A governanta distanciou-se rosnando de dor, avaliou o machucado e o olhar terno que tinha comigo tornou-se obscuro.

— Você faz parte da minha felicidade querendo ou não. – sibilou.

E moveu o braço ferido na direção de Peach, deixando que os respingos de sangue voassem e manchassem o rosto dela. Peach ficou em choque por um segundo até que seus olhos se transformaram em esferas brancas e sua boca escancarou-se, dando espaço para dentes afiados e uma espuma que escorreu por seu queixo.

— O demônio dentro dela se alimenta do meu sangue. – Amy limpou o braço em seu vestido. – E também faz tudo o que eu ordenar. Está preso a minha coleira.

Peach curvou-se aparentando não ser capaz de sustentar o peso do próprio corpo e emitiu grunhidos estranhos. Amy estalou os dedos e anunciou:

— Karma de câncer, liberte-se.

Um caranguejo de silhueta preta surgiu atrás de Peach, tão colossal que foi capaz de alcançar o teto da sala e fazer aquele lugar torna-se ainda mais sufocante. Estático, milhões de pensamentos passaram por minha mente e o primeiro deles foi que todos haviam me contado que o karma de mamãe era branco.

— Mate-o. – Amy apontou para Dante.

— Karmas não podem matar pessoas! – exclamei angustiado. – São magia pura!

— Karmas de pessoas vivas são magia pura. – a governanta desmanchou seu rabo-de-cavalo e ajeitou seus cabelos. – Os de pessoas mortas são magia corrompida.

Um tremor ecoou pela sala subterrânea quando o caranguejo atingiu parte da parede acima da cabeça de Dante com uma de suas pinças, criando um enorme buraco e uma extensão de rachaduras que fez a poeira desgrudar-se do teto.

— Dante! – solucei.

— Não se preocupe, Suichiro. Isso vai acabar logo. – Amy vislumbrou-me com pena.

Dante continuou a se contorcer, mas nenhum movimento seu era capaz de partir as correntes. Ele tentou unir as mãos para invocar seu karma, porém, falhou ao ter os pulsos esticados um longe do outro.

O exorcista respirou fundo, fechou os olhos e franziu as sobrancelhas. Peach deu um passo desequilibrado e o caranguejo fez menção de agarrar Dante em suas garras.

— Apenas observe. – a governanta sussurrou maliciosa.

— Por favor, faça ela parar. – pedi aos prantos.

O caranguejo ergueu sua pinça e desceu-a rapidamente, pretendendo acertar a cabeça do exorcista, entretanto, seu golpe foi barrado por um pequeno escorpião de silhueta roxa. Menor ainda do que o invocado em Dragonean, mas grande o suficiente para proteger seu dono.

Dante deixou sua respiração trêmula escapar e abriu os olhos, aliviando-se ao ver que havia conseguido chamar seu karma sem a união das mãos, já que era algo difícil para os não magos.

Toda a esperança que construí partiu-se ao ver o escorpião desfazer-se em questão de segundos nas pinças do caranguejo. Dante rosnou de frustração e voltou a debater-se, puxando as correntes com cada vez mais força.

Não aguentava mais ver aquilo. Não aguentava mais estar ali. Não aguentava mais não fazer nada. 

E era tudo culpa minha.

Apoiei as mãos no chão e levantei-me cambaleante, atraindo o olhar interrogativo de Amy. Expirei, fechei os olhos e tentei manter a concentração.

Não gosta da magia do seu karma. Magia não é para mim. Quer proteger as outras pessoas mesmo sem saber se proteger. Eu também odeio o meu karma. 

Alguém vai morrer.

Mas não seria nenhum de nós dois.


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Notas finais do capítulo

Mai pressentiu o perigo lá em Dragonean e acabou não indo por motivos de que seu karma roubaria a cena, ashuahua, brincadeira.
Me contem o que acharam, ficarei muito feliz ♥

Até semana que vem.
Beijo.
—Creeper.