A fada que o escreva escrita por Creeper


Capítulo 2
A viagem até Terras Brancas


Notas iniciais do capítulo

Olá, era para eu ter postado no final de semana, mas dei uma atrasada!
Tenham uma boa leitura ♥



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Nos acomodamos em uma das cabines do trem, cada um sentando-se em um dos bancos de estofado vermelho. Coloquei minha maleta no pequeno bagageiro acima de minha cabeça e abri um pouco a janela para que a luz do dia adentrasse o cubículo escuro.

— Acho que devemos uma apresentação formal um ao outro. – acomodei-me em meu assento, animado. – Suichiro Whitlock. – estendi a mão e dei meu melhor sorriso.

— Dante Vulpecula. – ele permaneceu com o braço sobre o encosto do banco, ignorando meu aperto de mão.

Soltei uma risada nervosa (e talvez alta demais) e pigarreei sem jeito.

— Obrigado pela encenação na hora de embarcarmos. – massageei minha nuca. – E desculpa se eu te machuquei quando pulei em você. – o que eu achava bem difícil de ter acontecido. – Juro que não faço isso sempre.

Sério, não era sempre que eu me jogava em desconhecidos. Já aconteceu outras vezes? Já, mas isso não vem ao caso.

Dante encarava-me como se eu fosse um idiota. Cada comentário meu fazia o canto de seus lábios se entortarem, prontos para darem uma risada sarcástica. Respirei fundo e deixei minhas costas eretas, mantendo-me firme. 

— É sua primeira vez indo para as Terras Brancas? – coloquei as mãos nos joelhos. 

— Não, já estive lá algumas vezes. Vou sempre a trabalho. 

— É minha primeira vez lá. – suspirei. – Vou para comprovar ou descartar uma teoria particular de que a magia dos karmas de água se intensifica no frio. – expliquei radiante.

— Você até que parece novo para ser explorador. – Dante cruzou os braços e analisou o que Sybelle escrevia.

Minhas bochechas ganharam um tom de vermelho e um sorriso tímido surgiu em minha face. Gaspar sempre dizia que eu fazia aquela cara quando tocavam no assunto, mas eu não podia ter outra reação, afinal, tinha apenas 18 anos.

— E você não parece tão velho para ser exorcista. – respondi convencido.

— Quantos anos acha que eu tenho? – ele sorriu de canto e arqueou a sobrancelha com um ar de interesse.

Estudei-o de cima a baixo, reparando em seu físico forte por baixo da blusa escura de gola alta e de seu sobretudo cinza com detalhes de cor café.

— Vinte e oito? – tentei ser gentil.

Dante arregalou os olhos e abriu a boca, incrédulo.

— Eu tenho vinte e três, garoto. 

Ah, errei por cinco, vai.

Apertei o tecido de minha calça, tossi um pouco para disfarçar e mudei de assunto:

— O que aconteceu com a sua audição?

O rapaz torceu a boca e abaixou o tom de voz, soando mais sério do que já era:

— Há um mês, falhei em exorcizar uma garota. A avó dela me amaldiçoou para que a última coisa que eu tivesse escutado na vida fossem os gritos da neta dela. 

Arrepiei-me dos dedos do pé até o último fio de cabelo. Sabia que o trabalho dos exorcistas era assustador, mas nunca imaginei que chegasse a esse ponto. Eles falhavam como qualquer um, mas as consequências eram as piores possíveis. Afinal, vidas eram esvaídas em suas mãos.

— E... – fitei meus pés, um pouco sem graça. Havia algo que eu queria perguntar.

— Você quer saber por que me deixaram voltar a trabalhar mesmo depois disso? – ele suspirou. – Aparentemente, a garota já estava possuída há mais tempo do que devia e a avó se negava a chamar um exorcista.

Pressionei os lábios e levantei a cabeça. Ele não olhava para mim e sim para a paisagem que corria pela janela.

— Eu queria saber sobre a maldição. – falei baixinho.

Dante desviou seu olhar por um momento para avaliar-me. Engoli em seco e me encolhi um pouco com certo constrangimento.

— Ninguém conseguiu uma cura até hoje. Houve médicos e magos que me prometeram uma, mas cobraram horrores. – ergueu uma das sobrancelhas como se perguntasse o que eu iria fazer.

Rangi os dentes sabendo que estava ferrado.

— O que é essa coisa? – Dante apontou para Sybelle em sua esfera de vidro.

A pequena fada mostrou a língua, cruzou os braços e deu as costas para o rapaz. 

— Ah, ela? – sorri nervoso e segurei a esfera na altura dos olhos. – É uma fada má. Elas cumprem suas penas dentro dessas bolinhas, obedecendo às ordens de seus mestres. 

— Uau, você escraviza fadinhas. – ele comentou surpreso.

— Não é nada disso. – fechei a janela e coloquei a fada no parapeito. – Eu falei, ela é má, por isso está presa. Assim que cumprir sua pena, volta para a natureza para adoecer as plantas e fazer travessuras com outras fadas e animais.

Havia conseguido Sybelle em uma de minhas explorações em uma floresta onde todas as árvores eram minúsculas. Fadas boas costumavam se encarregar de prender as más e deixar as esferas escondidas entre as folhas para serem encontradas pelos humanos e pagarem por seus atos. 

Não que eu gostasse dessa ideia de punição, a coitada estava apenas fazendo seu papel de nascença. Sybelle era uma boa amiga e companheira de viagem (tirando o fato de ser extremamente estressada e birrenta), então no fundo eu desejava por sua liberdade.

— Se você diz. – Dante deu de ombros, encostou a cabeça na parede e fechou os olhos.

Imaginei que ele fosse dormir, por isso calei-me e pude enfim respirar livremente e escorregar pelo banco. Olhei para o lado de fora, captando uma árvore ou outra em meio ao borrão. As nuvens branquinhas preenchiam o céu azul da tarde e eu sequer pude conter minha ansiedade, esperando que aquele cenário se tornasse logo laranja e então azul escuro. 

Peguei meu caderno de capa de couro na maleta, passei algumas páginas de bordas queimadas e anotei o dia no topo da folha. Escrevi o que havia acontecido desde que eu acordei até o momento em que estava sentado na cabine do trem. Sim, era um diário.

Na página seguinte, usei o lápis de carvão para fazer rabiscos precisos, formando um rosto masculino. Ergui o olhar, observando como o cabelo de Dante dividia-se no meio em mechas rebeldes que caíam sobre seus olhos e o longo rabo-de-cavalo que ficava escondido atrás de suas costas.

Coloquei tudo aquilo no papel através do carvão, empenhando-me mais do que eu esperava. Não costumava desenhar rapazes, somente as bugigangas de Gaspar, elementos que encontrava em minhas viagens e moças que me davam uns trocados para terem retratos seus. 

Faltava somente uma coisa para terminar. Os olhos. Se eu bem me lembrava, eram azul cobalto, ferozes e tinham um formato bonito. Levantei a cabeça para visualizar o rosto de Dante uma última vez, assustando-me e fechando o caderno instantaneamente ao ver que ele havia acordado. 

— O que está fazendo? – ele franziu as sobrancelhas.

Prendi a respiração e escondi o caderno atrás de minhas costas.

— Nada! – balancei a cabeça negativamente. – Eu vou dar uma volta! – levantei-me de maneira desajeitada, abri a porta da cabine e saí. 

Assim que pisei no corredor de piso marrom e as luzes amareladas brilharam sobre a minha cabeça, suspirei aliviado e caminhei sem rumo. Sybelle havia ficado na janela, mas talvez fosse bom para ela conhecer alguém além de mim e Gaspar.

***

Depois de um dia e meio no trem, me encontrei entediado. A noite havia caído do lado de fora, manchando o céu de azul e salpicando-o de branco. Eu e Dante havíamos almoçado e jantado em uma das mesas do restaurante do trem, então a única coisa que nos restava era dormir ou observar a paisagem.

Não havíamos nos falado muito desde que o desenhei, ele não parecia muito aberto a conversas. Anotei mais algumas coisas em meu diário, pois depois juntaria alguns trechos em uma carta para Gaspar. Aliás, esperava que ele estivesse vivo após sua última invenção.

Andei pelos vagões, passando a mão pelas paredes frias e bocejando ora ou outra. Repentinamente, um solavanco balançou-me e meu ombro foi de encontro à porta fechada de uma das cabines, chocando-se com força.

Soltei um gemido de dor e as luzes acima de minha cabeça piscaram e apagaram-se em um zumbido. Uma onda de gritos e resmungos se espalhou ao longo da locomoção, misturado ao som das rodas congelando nos trilhos.

Esfreguei meus braços para produzir calor, enfiei a mão dentro da gola da camisa e tirei de lá um cordão que sustentava um pingente de cristal amarelo, o qual acendeu-se lentamente ao entrar em contato com a escuridão. Guiado pela minha pequena fonte de luz, consegui voltar à minha cabine, onde Dante encontrava-se encostado no batente de braços cruzados e olhos semicerrados.

— O que acha que aconteceu? – olhei ao redor, preocupado.

As palavras douradas que Sybelle produzia também tinham certo brilho, o que ajudou Dante a ler no escuro. 

— Na pior das hipóteses… – ele começou, todavia, foi interrompido por um grito feminino.

Instintivamente, viramos nossas cabeças na direção do som e seguimos apressados pelo corredor. Chegamos ao vagão do restaurante, onde uma mãe abraçava a filha fortemente debaixo de uma das mesas.

Não precisei perguntar nada, a mulher usou a mão trêmula para apontar uma das janelas cujo vidro havia ganho três riscos irregulares abaixo de um líquido transparente que escorria devagar. 

— Demônio! – a menina choramingou e afundou o rosto no peito da mãe.

Dante aproximou-se da janela e colocou os dedos no vidro para averiguar. 

— Vou sair do trem. – ele avisou e tocou o cinto de couro em sua cintura, emitindo um tilintar.

Arregalei os olhos e meu queixo caiu. Olhei da mulher para a janela e da janela para Dante, pensando no que fazer.

— Eu vou com você. – arranquei o cordão de meu pescoço e entreguei para a menina que agarrou-o timidamente.

— Se quiser ser destroçado, fique à vontade. – Dante devolveu-me Sybelle e correu para o próximo vagão.

Guardei a fada e cerrei os dentes, desviando o olhar para minhas botas. Um dos funcionários do trem adentrou aquela sala usando uma lamparina e pediu para que ficássemos calmos e não deixássemos o lugar.

Assim que o homem foi para o outro vagão e eu fiz menção de me mover, a mulher chamou-me com a voz fraca:

— Não vá lá fora. Não podemos perder duas vidas.

Engoli em seco ao entender que ela se referia ao meu acompanhante. Hesitei por um instante, contudo, tateei meus bolsos rapidamente, encontrando exatamente o que eu precisava. 

— Tenham cuidado. – assenti e abandonei a sala.

Ao abrir a porta de ferro, o vento cortante bateu em meu rosto, trazendo consigo alguns pequenos flocos brancos e tornando impossível ficar com os olhos abertos do lado de fora. O frio ultrapassou todas as minhas roupas e fez meu corpo tremer.

Saltei do vagão para o chão coberto por uma camada brilhante e escorregadia e respirei fundo sentindo meus pulmões queimarem. Retirei outro cordão de cristal de dentro de minha camisa, esse de cor azul. 

Semicerrei os olhos e afundei os pés na neve, procurando por qualquer sinal de vida, o qual veio através de um barulho de correntes acertando alguma coisa. Fechei meu casaco e tentei correr até a fonte do som, afastando-me perigosamente do trem. 

Engoli em seco ao derrapar pela neve fofinha e úmida de um pequeno barranco, caindo em frente a uma floresta de pinheiros cobertos de ciscos cintilantes. Retirei as mãos e joelhos do chão, virando a cabeça para o lado e vislumbrando o brilho prateado de uma lâmina ao final de uma comprida corrente.

A alguns metros de mim, Dante girava essa corrente, estando frente a frente com uma criatura de cor cinza, olhos vermelhos e dentes e unhas pontiagudos. Ela rosnava e babava, parecendo ter dificuldades de se manter de pé, por isso seu corpo curvava-se e pendia. Para minha surpresa, o ser usava um vestido longo que algum dia foi a melhor roupa de alguém, mas naquele momento estava completamente sujo e rasgado. Tinha também alguns poucos fios de cabelo castanho em sua cabeça enrugada.

Prendi a respiração, enchendo-me de êxtase. Eu nunca havia visto um demônio tão de perto, aquilo era sensacional e assustador ao mesmo tempo. Mais assustador do que sensacional, na verdade. Minhas pernas fraquejaram e meu corpo paralisou.

Dante rodopiou a corrente e jogou-a na criatura, criando uma mancha alaranjada e fumegante em sua pele cinza ao acertá-la e arrancando-lhe um rosnado de dor. Lentamente agarrei um recipiente retangular dentro de meu bolso, esperando a hora certa para usá-lo.

E ela chegou.

Um bafo quente e podre bateu em minha nuca e fez um arrepio percorrer toda a minha espinha. Completamente em choque, virei a cabeça por cima do ombro e avistei os dentes perigosos de um demônio.


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Notas finais do capítulo

E agora? Como o Suichiro vai sair dessa?
Comentem o que acharam e façam uma autora feliz ♥
Até o próximo capítulo, beijos.
—Creeper.