San'Nen - Humanos de outra Terra escrita por Mahii


Capítulo 5
Estar em Iou é o pedido


Notas iniciais do capítulo

À quem estiver aí,
Boa leitura!



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[...]

Três dias depois estava de volta à Índia.

Era noite e o pessoal se reunia em roda no extenso tapete, dentro da “cabana” que chamam de lar. E, apoiados sobre as almofadas improvisadas em pano de saco e algodão, compartilhavam de uma grande refeição. Entre risadas, hindi, inglês e até um pouco de francês, o primeiro a notar a presença de Daniel fora o Prof. Kabir.

—  Daniel! Chegou rápido! Seja bem-vindo – com um grande sorriso, acenou. Logo todos estavam cumprimentando também.

—  Hailo, gente – sorriu de volta.

—  Ah! Uma aliança?! Por acaso se casou? Não sabia que tinha uma namorada, Daniel! – foi a primeira coisa que o Prof. Kabir disse, assim que viu suas mãos.

Daniel ficou tenso. Não queria se sentir comprometido além do necessário. Quanto mais pessoas soubessem, mais pessoas lhe cobrariam o compromisso e não necessitava disso.

Todos prestavam atenção, instalando um repentino silêncio no cômodo.

—  A-ah... Na verdade isso é só um anel – sorriu sem graça. Sabendo que os indianos eram conservadores, Daniel não se atreveria a contar sobre “ir morar” com alguém.

—  Fala logo!

—  Não seja tímido! Você deveria nos contar – Kabir insistiu, sendo apoiado por alguns de seus alunos – Agora mesmo eu estava contando como conquistei a minha esposa. Um homem deve se orgulhar da mulher ao seu lado.

—  Sobre isso, ahn... Ei! O que há com a minha roda? – perdido na resposta, encenou ter problemas para carregar sua mala.

—  Eu te ajudo! –  Raj, o indiano mais jovem ali, aluno do Kabir, foi correndo ao seu encontro, continuando a conversa em hindi – E pare de ser curioso, Sr. Kabir. O Daniel é reservado. Certo, Daniel?

—  É... Obrigado – sorriu de lado, agradecendo –  Licença, pessoal.

—  Vai comer com a gente? –  Raj foi na frente, passando pelas cortinas e carregando uma das malas até o colchão do Inglês –  Hoje temos curry de peixe, é seu favorito, né? Ou vai se deitar?

—  Sim, é meu favorito – forçou um sorriso – Avião, e depois essa van... Foi cansativo. Mas tô com mais fome do que sono. Eu poderia me entupir do curry da Dona Mahara.

—  Entendido. Deixa eu separar um prato pra você, antes que acabem com tudo – estendendo a mão, lhe fez um gostoso cafuné.

—  A-Ah, obrigado, Raj – forçou um sorriso, se sentindo repentinamente nervoso.

O carinho durou poucos segundos. Logo, o outro garoto maneou a cabeça, e então se afastou.

Daniel suspirou aliviado, se jogando sobre o colchão só por alguns instantes, com o intuito de esticar as pernas. Estendeu a mão na frente do rosto, encarando a aliança prateada. A tirou do dedo num movimento raivoso e a encarou de cenho franzido. Lamentou ter tido a ideia de dar uma aliança para a Nathalie. Foi uma atitude precipitada e totalmente infantil. Fez a garota feliz, mas que significado tinha aquele anel se, para começar, ele sequer possuía uma fonte de renda? Mesmo que fosse morar com a garota... Não poderia simplesmente ir e esperar que ela o sustentasse. E se Nathalie mostrasse para os seus pais, e para os pais e amigos dela – o que ela obviamente faria – a pressão seria ainda maior. A pressão para que ele “mudasse”.

—  Você está com a aparência bem melhor. Parece até mais jovem – Prof. Lennox atravessou a cortina, aparecendo bem na sua frente – Talvez eu volte para Londres também.

—  Bom, não está perdendo nada –  deu de ombros, sem encará-lo –  Tenho certeza que um spa em Jaipur ou Nova Deli consegue dar um jeito no seu visual. Você até que é bonitão pra alguém de mais de quarenta anos.

O mau humor de Daniel era palpável para o homem que o conhecia desde criancinha.

—  Não gostou de ter voltado pra casa? –  se abaixou ao lado do rapaz, se sentando no outro colchão livre – Imagino que a situação tenha sido no mínimo estranha. Com os seus pais e...

—  Quase não tinha casa pra voltar. Por um momento achei que seria legal, mas não foi – encheu os pulmões de ar, soltando lentamente – E agora, eu e a Nathalie decidimos morar juntos quando eu voltar de novo. E tem até alianças, mas eu não tenho certeza de nada e... Não queria ter feito isso. Acho que tô numa enrascada.

—  Vocês jovens, são tão corajosos – deu risada – Mesmo que tenha medo! Você sabe, já tive algumas namoradas, mas... Faltou coragem, eu acho. Faltou coragem para colocar o trabalho de lado. Te dou parabéns?

Daniel balançou a cabeça negativamente.

—  James, você realmente trabalha demais –  balançou a cabeça, mudando de assunto – Assim não vai viver muito.

—  E você acha que eu quero? Quem cuidaria de mim quando eu fosse idoso? Certeza que seria ainda mais chato que agora, ninguém aguentaria.

—  Eu cuido de você, com o maior prazer – levantou a mão, dando risada – Ao invés de ser um tio, não quer me adotar como filho postiço?  Eu preferiria você.

Lennox riu, se lembrando do pequeno Daniel que, sempre que levava bronca dos genitores, corria para si, pedindo que se tornasse seu pai. “Eu escolho você”, eram as palavras que a criança dizia. O chamava de “pai James”, apenas para irritar o Sr. Richardson. Essa era uma das coisas que mais faziam James sentir-se parte daquela família.

—  Daniel, nem brinque com isso! Não imagina o quanto tive que ouvir dos seus pais, rapazinho. Eles já têm ciúmes de mim o suficiente – entortou os lábios –  Exigiram que eu te enviasse de volta “imediatamente”. Que ideia foi essa de vir escondido deles? –  lhe deu um peteleco na testa.

—  Ai! Eles é que são ridículos –  tocou a área atingida – Enquanto eu estava lá mal me deram atenção, por que querem tanto que eu esteja em Londres? Que diferença faz, afinal?

—  Eles se preocupam, quer você acredite ou não. Se algo acontecer, eles têm medo de não conseguirem te ajudar aqui na Índia.

—  Mas... Você tá aqui, James. É minha família também. Todos têm que se lembrar disso – sorriu, se colocando de pé – E de qualquer forma, não vou voltar tão cedo pra Inglaterra. E nem quero falar deles, por favor. Nem dos meus pais e nem da Nathalie. Ao invés disso, me deixa trabalhar aqui, com você. Quero me concentrar só nisso de novo. Eu e a Dra. Aisha avançamos tanto! Estamos quase conseguindo conversar um pouco na língua de Nystul.

—  Eu recebi seus e-mails, mal posso esperar para que nos ensine também –  balançou a cabeça, se pondo de pé –  Ok, tudo bem. Vamos voltar à rotina de antes, não vou pegar leve. Liberaram mais alguns túneis e tem uma sala interessante lá embaixo. Quero que a gente vá até lá amanhã.

—  Combinado.

[...]

No dia seguinte, Daniel se arrumou como já tinha acostumado a fazer. O macacão de trabalho, coturnos, máscara de proteção contra a poeira e luvas macias. Na cintura, suas lanternas, o tablet e o celular. A única diferença era que, desta vez, além do pingente que a “pessoa mágica” havia lhe dado, levava também a aliança pendurada no pescoço. Gostou do significado que aquilo passava.

Voltar à escavação não lhe deixava mais tão ansioso, pelo contrário, lhe dava um caloroso sentimento de familiaridade. Sentia que era o lugar ao qual pertencia. Seus medos, inseguranças, e até timidez sumiam quando se tratava do “seu sonho”. Estava pronto para o que quer que viesse. Sentia que nada mais poderia lhe surpreender.

—  Descendo! –  avisou, antes de sumir dentro da terra.

O local agora contava com pequenas lâmpadas, se estendendo a partir de um fio elétrico, pelos cantos das paredes do túnel. Obra da dupla de europeus especialista em cavar túneis. A energia vinha de um novo gerador movido à diesel que colocaram do lado de fora. Cobriram o equipamento com pedras, torcendo para que não chamasse a atenção de ninguém. Dentro da escavação, essa luz só chegava até o salão principal e já era uma vitória.

Ver o local sob a luz elétrica fez os olhos de Daniel brilharem. A arquitetura, lembrava muito da arquitetura barroca, mas tinha linhas mais limpas e modernas, ainda que mantivessem a sofisticação curvilínea da época. Era ainda mais incrível do que se lembrava.

E, no centro de tudo, aquela maravilha de cabelos dourados. Daniel podia imaginar a figura estampando noticiários e capas de revistas. Pintada numa espécie de aquarela muito realista, tinha uma suavidade e transparência tão sensíveis que era como se respirasse. Dava vida às memórias do Daniel, que podia quase sentir seu cheiro e calor.

Engolindo seco, o garoto tocou o pingente em seu pescoço, olhando para o pingente que a figura misteriosa usava na pintura. Não eram iguais, mas tão parecidos que começava a assustá-lo durante seus sonhos. Andava evitando falar sobre o assunto, para não ser considerado maluco – uma coisa era uma criança contar a história de uma “pessoa mágica” aparecendo e desaparecendo para si, outra bem diferente era um adulto fazendo isso – mas, cada vez mais, vinha sentindo que era o momento.

Hoje, Daniel iria começar a analisar sala mais interessante depois do salão principal. Indo pelo corredor menor ao oeste, lá estava. Não era a segunda maior, mas era a segunda sala com mais desenhos e textos, inclusive possuía inscrições no piso. O pé direito era bem mais baixo e passava uma impressão de caverna. Principalmente pelas formas cilíndricas que despendiam desde o teto, lembrando estalactites. Tinham uma espessura que variava pelo comprimento afinado, terminando em uma esfera espessa na ponta. Dos mais variados tamanhos e de ares naturais, não dava para afirmar se eram obras da natureza transportadas ou da mão humana. Num belíssimo tom dourado, refletiam a luz da lanterna em forma de pequenos cristais de brilho alaranjado.

Nas paredes, pequenas ilustrações adornavam o extenso texto, que passava de uma ponta à outra da parede. Dessa vez, não uma pintura, mas cada letra e cada detalhe, esculpido e acrescentado na pedra na forma de mosaicos diminutos, em contes e linhas de ângulos perfeitos. O tempo e  habilidade necessários para fazer aquele minucioso trabalho eram imensuráveis, o que os faziam crer se tratar da sala mais importante de todo o prédio.  Descoberta recentemente, seria a primeira vez que Daniel a veria ao vivo. Um dos alunos do Prof. Kabir fora consigo, para garantir que encontrasse o caminho.

—  Mamadi, Raj! O que acha que é isso no piso? – Daniel perguntou, querendo dividir opinião.

—  Parece... Algum tipo de maldição – usando a lanterna, iluminava o círculo branco, que se destacava no piso escuro. Dentro das linhas grossas, haviam palavras e pequenos desenhos, feitos da mesma forma que as ilustrações nas paredes.

—  “Maldição”? Coisa de bruxas? – com uma risada, se abaixava bem no meio – Talvez realmente fizesse parte de um ritual religioso. Muitas culturas consideram o círculo sagrado, certo? Não importa quanto os humanos tentem, todos os círculos, mesmo que milimetricamente, são imperfeitos. Deveríamos medir esse aqui.

—  Você conhece essa palavra? “Milimetricamente”? – balançou a cabeça – Quero dizer, o seu híndi é ótimo, você conhece um monte de palavras. Eu evitava conversar com você porque meu inglês não é muito bom, o sotaque é forte.

—  Meu híndi também não é muito bom – se sentou no meio do círculo, colocando o tablet à sua frente.

—  É ótimo – riu novamente –  É verdade que o texto na outra sala dizia que um casal de homens deu à luz 50 filhos? Aquele homem de cabelos longos e dourados?

—  Hum? É, bom, é verdade. Embora seja provavelmente uma lenda. Quer dizer... Não é biologicamente possível, certo?

—  É, claro que não – deu risada – Mas eu pensei que seria interessante se os outros soubessem.

—  “Outros"? Os indianos?

—  É, as coisas não são tão fáceis aqui quanto na Inglaterra, Daniel – com um sorriso triste, suspirou.

Daniel empacou. Estavam mesmo falando sobre...? Raj estava mesmo admitindo indiretamente ser daquele jeito? O desconforto para Daniel foi grande. Era como se Raj estivesse o levando pela mesma ideia, achando que ele também entenderia aquela conversa subjetiva.

—  É-é, eu soube que a Índia é... Bom, mesmo na Inglaterra não é tão fácil. Ahn... Não que eu saiba como é ser... Ser diferente – respirou fundo, se virando para o tablet – Mas aqui as coisas estão em outro nível, né? Eu soube quando aboliram a lei contra “eles” recentemente.

—  Sim, isso. Eu tive um... Amigo que foi solto. Mas todos sabiam sobre ele na comunidade e, no final, ele não passou nem uma semana no país. Teve que fugir, a vida aqui já estava perdida para ele – parecia enrolar para chegar em algum assunto, até se sentou à frente de Daniel, completamente focado – Foi muito difícil.

—  Ah... Então... Era seu namorado? – perguntou, abaixando os olhos para o Tablet, repentinamente envergonhado.

—  Hum, talvez.

—  Talvez?

Raj soltou uma risada constrangida, Daniel acabou o acompanhando.

—  “Talvez” porque... Ele era bem mais velho, era meu antigo professor – falou, sondando as reações do outro.

Daniel ficou surpreso. Raj parecia longe de ter uma história dessas. Pessoalmente, o achava muito desinteressante. Mas o que mais o surpreendeu foi não ter achado nojento ou esquisito, ao invés disso ficou curioso sobre o rapaz. Que tipo de relacionamento? O que eles faziam? Onde se viam? Esse tipo de pergunta veio à sua cabeça e, inconscientemente, sentiu vontade de dividir a história da sua primeira paixão também.

—  B-Bem... Isso é... Inesperado para você – ergueu os olhos do tablet, forçando um sorriso.

—  Eu sei, nunca contei para ninguém – inclinou a cabeça, deixando os olhos parcialmente cobertos pela franja – Mas, é passado. Superei isso.

Raj se arrastou alguns centímetros para perto.

—  Ah, sim – engoliu seco.

—  Eu acho que seria melhor para mim ficar com alguém que tenha o mesmo trabalho e gostos que eu – parecia repentinamente mais nervoso, o olhar mais afiado, mais determinado.

Daniel podia não ser o mais esperto “nesses assuntos”, mas entendia onde aquela conversa ia terminar. E não estava pronto para aquilo. Dizer que havia sido “do nada” seria exagero. Desde o primeiro dia no acampamento, o londrino percebeu uma aura estranha vinda do indiano para ele. Primeiro, Raj não falava com ele, absolutamente nada. O julgou como muito tímido, mas, era estranho que fosse “tímido” apenas com ele, e normal com os demais homens. O londrino quase achou que fosse odiado e então, aos poucos, Raj começou a mudar. Forçou aquele relacionamento de amizade e se mostrou o rei dos contatos físicos suspeitos.

Daniel o aceitou como uma espécie de “amigo da sua idade”, mas... No fundo era...

—  Raj, eu tenho namorada – numa tentativa de impedi-lo, falou. Ao mesmo tempo agarrava o tablet contra o peito e encolhia as pernas.

—  Daniel, eu gosto de você – apoiou as mãos nos ombros do londrino, ficando também de cócoras e grudando os joelhos – Quando você voltou para Londres eu percebi. Aqui ficou muito... Iaapta.

Usou a palavra em híndi para “saudade”.

—  Oh... Ahn... – Daniel não sabia o que dizer. Era óbvio para si que não gostava de Raj assim. Mas, também, sentia que não era como se desgostasse. E, não entender o sentimento foi o que o fez congelar.

—  Bem que... Poderíamos tentar— sugeriu, dobrando o corpo sobre o do outro e selando os lábios num beijo casto e imóvel. Observava a situação.

Estavam tão absorvidos pela situação, que não ouviram outra pessoa se aproximar. Só perceberam quando a luz forte da lanterna os iluminou em tal posição constrangedora.

—  Por que tão escur-... – Prof. Lennox cortou a frase assim que se deu conta. Ficou tão surpreendido que lhe faltou qualquer tato – Ah, não.

— Aqui está escuro, certo? – atrapalhado, Raj se levantou apressado –  Eu vou trazer uma das lâmpadas com gerador até aqui. Temos mais fio agora. Por favor, vá começando suas pesquisas.

—  Sim, claro – Daniel respondeu automaticamente.

Raj saiu.

Lennox deu um longo suspiro, passando uma das mãos pelo rosto cansado. O silêncio de Daniel indicava que, de fato, havia visto o que vira. O homem caminhou lentamente, iluminando uma parte da parede e parando à frente dela, como que dando privacidade para o outro se recompor.

—  Eu... Atrapalhei algo ou te salvei? – o adulto fez uma pergunta que conseguiu deixar Daniel mais calmo.

—  Ah, ele só... Do nada veio e... – tocou sobre os próprios lábios – Você me salvou.

—  Desculpe, achei que você tivesse percebido as intenções dele. Talvez devesse ter te contado e então não abaixaria a guarda – balançou a cabeça para os lados.

—  Eu sou um idiota?

—  Não, não – tocou sobre as ilustrações em relevo – Mas podia tê-lo empurrado.

—  ...acho que não quis empurrar.

Lennox arregalou os olhos, franzindo as sobrancelhas. Estava surpreso que Daniel confiasse tanto nele a ponto de soltar uma frase daquelas. O professor, entretanto, não tinha ideia do que responder ou de como levar aquela conversa a partir daquilo.

—  Bem, só... Se lembre que estamos aqui para trabalhar. Vocês dois, eu preciso dos dois focados – só sabia ser isso, um velho chato – Nada de casinhos no campo, por favor.

—  É claro.

Daniel relaxou. Concordava completamente com Lennox: trabalho! Isso era mais importante que tudo. Não tinha espaço para nada “daquilo”, e ficaria feliz em reproduzir a resposta de Lennox para aquele Raj assanhado.

—  Olha, esse desenho... Surpreendente, né? – o professor sorriu, mudando de assunto.

—  Qual deles?

—  Todos eles são, não consigo escolher o melhor – sorriu, alisando a parede com a ponta dos dedos.

— Não se parece com os desenhos em mosaico do início do primeiro século? Eu lembrei de algumas ilustrações que foram preservadas pelas cinzas do Vesúvio –  Daniel comentou, encarando as mesmas coisas que o outro, a medida que as iluminava com a lanterna.

—  Ah... Sim, sim. Mas é muito superior – começou a dar alguns passos. Já tinha visto aquela sala muitas vezes mas ainda se surpreendia – Os cortes das peças de mármore têm precisão cirúrgica, e alguns têm até bordas arredondadas. Encaixam perfeitamente e a superfície é lisa, não tem um único milímetro para fora.

—  Mesmo hoje em dia... Alguém poderia fazer isso? – franziu as sobrancelhas.

—  Não acho – balançou a cabeça para os lados – E eu me achava muito legal por ter um mosaico grosseiro no piso lá de casa!

—  Prof. Lennox, não quero me ache maluco, mas... Ouviria uma história minha? – engoliu seco, segurando o pingente dourado no pescoço.

—  “Maluco”? Já te acho – falou com carinho, caminhando até o aluno – Fale.

—  Sabe de onde veio esse pingente?

—  Hum... – suspirou, cruzando os braços – É claro. Faz uns... Quase 20 anos. Você roubou do patrimônio da humanidade, na escavação em Gobekli Tëpe, antes de catalogarmos.

—  Não diga “roubar” – maneou a cabeça.

—  O cordão era dourado, feito de minúsculas escamas transparentes. Ainda o tem? – contava detalhes, mostrando as incríveis habilidades de sua memória.

—  Tenho. Mas ele ficou curto e mudei para esse cordão preto – respirou fundo, temeroso com o que vinha em seguida.

—  O que tem o pingente?

—  Ele... Não é parecido com o colar que a figura da outra sala está usando? – mordeu o lábio inferior.

—  Agora que você comentou. Sim, é.

—  Em Gobekli Tëpe, daquela vez, eu não peguei. Uma pessoa me deu – analisava a reação do outro cuidadosamente – Eu entrei naquela sala dos portais e, de repente, apareceu uma pessoa, igualzinha a pessoa da ilustração. Não falava nosso idioma. Nós brincamos um pouco, ele me deu o colar para que eu visse e, de repente, ele desapareceu.

—  Hum... – fechou os olhos brevemente, imerso em pensamentos.

—  Eu sei que faz muito tempo, e talvez minhas memórias não sejam mais tão confiáveis. Mas não estou inventando nada disso – outro suspiro.

—  Mesmo que fosse verdade, Daniel, como a pessoa teria ido parar lá? – voltou a abrir os olhos, parecendo bastante objetivo.

—  Eu... Não sei – franziu o cenho – Algum tipo de... Tecnologia?

—  Mas algo, ou alguém, de 10 mil anos atrás? Ainda vivo? – entortou a boca, dividido entre incredulidade e boa vontade – Não duvido da sua história, eu acreditei em você mesmo naquela época. Mas esse tipo de lacuna não é verossímil, ninguém acreditaria.

—  Se eles tinham tecnologia para isso 10 mil anos atrás... Para tudo isso – indicou o ambiente à sua volta – Por que não, ter também um jeito mais evoluído de se locomover?

—- Na hipótese dessa civilização não ter desaparecido e, se eles realmente conquistaram tantas terras como as paredes dizem... Que “terras” seriam essas? A “nossa” Terra não parece conquistada, não tem traços deles ou da tecnologia deles por aí, o que nos faz acreditar que foram embora. Mas por que eles não voltaram para cá nenhuma vez? E por que deixaram esse prédio para trás? – franzia o cenho.

—- Isso... Eu espero que possamos descobrir – suspirou, abrindo um pequeno sorriso – Eu pensei muito sobre o assunto e cheguei nas mesmas questões, Prof. Lennox, é por isso que estava evitando abordar o assunto mas... Tenho certeza, estou convencido, de que encontrei a pessoa da ilustração e ela me deu isso.

—- Certo, é o que você sente, mas tem alguma prova além do colar? Algo nos textos que você e a Dra. Aisha traduziram? Qualquer coisa?

—- Ah... Não. Não tenho nenhuma evidência ainda.

—  Então vamos encerrar essa conversa aqui. O que posso fazer por você é... O que acha de voltarmos à Gobekli Tëpe? Talvez se você ver a tal sala novamente possa reativar suas memórias – sugeriu, ficando satisfeito quando viu o sorriso surgindo no rosto do mais novo.

—  Eu gostaria muito!

—  Daqui duas semanas, um dos curadores do museu de lá pode nos receber. Já tinha combinado com ele. Até lá, se concentre em entender o que esta sala significa. Dê um passo de cada vez.

—  Sim, professor, entendido! – ainda sorrindo, teve uma nova injeção de ânimo – Vou começar agora mesmo.

—  Me dê um minuto, vou avisar que você também vai à Gobekli Tëpe – num minuto, estava fora da sala.

Daniel, mesmo no escuro, com ajuda da lanterna, começou suas anotações. Eram principalmente sobre o desenho talhado no centro do piso, começaria por ali. Aquém das maravilhas nas paredes, o piso era ainda mais interessante. No centro do círculo, parecia o planeta Terra visto do espaço, haviam até detalhes em azul! Pensar que aquela civilização tinha conhecimento da aparência do planeta, e talvez até condições de ir ao espaço...!

A empolgação durou pouco, entretanto. Daniel franziu as sobrancelhas. O formato das águas e continentes não estavam corretos, mesmo para uma Terra primitiva. Ainda assim, incrível suposição. Para uma civilização antiga, apenas supor que a Terra era circular e que se parecia assim já seria incrível.

—  “Iou" – pronunciou o nome simples, talhado abaixo do planeta.

Achando que seria parte do “ritual mágico” do círculo, Daniel leu a frase que se estendia por toda a volta. Leu umas cinquenta vezes, até ter alguma ideia do que dizia e de como se pronunciaria.

“Junto ao espírito da natureza, essa pessoa faz um pedido. Estar em outraparte é o pedido. Iou. Casa. Atravessando o céu-negro. Iou. Casa. Essa pessoa faz um pedido.”, a frase era longa e formulada de um jeito que a fazia ser dita e repetida naturalmente. Rimava, era como um mantra contagioso.

Quando terminou de falar pela septuagésima vez, até um leigo perceberia a pronúncia correta. Daniel teve certeza que era algum tipo de ritual e deu risada por ter se deixado levar. Mas, apenas teve tempo de pegar o tablet em mãos até que algo fantástico acontecesse.

As letras dentro do círculo brilharam suavemente, assim como o desenho de Iou. Era tão sútil que ele teve que aproximar a face para ter certeza de que emanava mesmo luz. Em seguida uma brisa fresca acariciou suas bochechas, parecendo descer pelo seu corpo como se tivesse vontade própria. Um arrepio cruzou sua espinha, seguido de um grito de surpresa. A brisa se transformou rapidamente em um forte vento, soprando desde o piso. E apesar de sentir a corrente de ar na pele, suas roupas e seus cabelos não se moviam. Também, o tal pingente no pescoço, começou a brilhar, ainda mais que as letras no chão.

Daniel piscou algumas vezes, com a certeza de que estava passando mal. A cabeça parecia rodar e a consciência ondulava como se estivesse dentro de um sonho. Quando seu corpo começou a perder as forças, apenas cedeu ao desmaio. Sabia que ficaria bem.

“Parabéns pelo seu segundo desmaio”, tinha certeza que diriam isso assim que acordasse.

Mas estava errado.

[...]


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Notas finais do capítulo

Isso foi quase, quase um "finalmente" na história kkk, mas tive que dividir aí. Não vamos demorar muito com o próximo então, abandonem suas teorias porque em breve muita informação será revelada rs.
Me diverti muito imaginando tudo e espero que vocês também.
Não se esqueça de comentar e até o próximo!



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