Aquarela escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Aquarela




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"Não seria muito um universo

se não fosse o lar das pessoas que você ama"

— Stephen Hawking

 

Um pôr do sol alaranjado para o final de um dia de outono, dois celestiais sentados em um banco qualquer de uma praça comum e a vida já teve piores serendipidades que esta.

O céu e o inferno.

Bem e mal.

Certo e errado.

Branco e preto.

Mas será que, olhando de perto, as coisas não são sempre meio cinzas?

— Então... Ainda pretende passar umas férias em Alpha Centauri? – Pergunta o homem da direita, quebrando o silêncio.

O seu ajeitar da gravata borboleta sendo apenas um tiquinho mais afobado do que o normal, as mãos retorcendo um único pedacinho do casaco antes de repousarem em seu colo, mas não é como se fosse fácil identificar essas nuances de suas manias. Seria preciso uns mil anos, por aí.

— Por que eu faria isso, anjo? As coisas voltaram para o eixo, não? Ou tem algo que eu não estou sabendo?

— Oh, não! – O loiro apressou-se a negar. – Que eu saiba está tudo certo. O que talvez não sirva de muita coisa também, visto que não recebo mais informações do... escritório superior. Eu só queria saber se, depois de tudo, você não pretendia fazer algo diferente agora que fomos...

— Expulsos? Demitidos?

— ... afastados de nossas funções originais. Quer dizer... você parecia bem animado com a perspectiva de se mudar para lá e, num universo tão vasto, ter um lugar tão específico assim em mente deve significar alguma coisa, não? Quero dizer... Me pergunto se não há algo novo que você gostaria de experimentar, não sei...

Pelo santíssimo sacramento!, exclamava mentalmente o outrora representante do Céu. O que é que estou falando?! Quanto sacrifício para iniciar uma conversa! Será que sou sempre assim, pouco articulado e nunca me dei conta?!

As sobrancelhas erguidas do demônio indicavam um traço de divertimento e curiosidade, ao responder:

— Olha, sendo bem sincero, há poucas coisas que eu ainda não experimentei nessa vida e ainda desejo fazê-lo, mas acho mais prudente não proferi-las em voz alta para não te escandalizar.

— Crowley!

O rosto do anjo havia se tingido completamente de vermelho e era absolutamente adorável a forma como ele desviava os olhos azuis do ruivo desbocado a seu lado.

Após uma longa e boa risada, o demônio encontrou presença de espírito suficiente para responder o vocativo acusatório e abismado de seu companheiro de milênios.

— Ora vamos, Aziraphale. Os anjos não terem sexo não significa que eles não possam praticá-lo.

— Crowley!!

Esta segunda repreensão exasperada saiu, de algum modo, ainda mais aguda que a anterior. Adorável.

— Mas não se preocupe. Não era isso o que eu tinha em mente. – A oportunidade, entretanto, era boa demais para desperdiçar e, depois de vidas inteiras de experiência, ele já aprendera a fazer as melhores limonadas quando a vida lhe oferecia matéria-prima. – Embora eu tenha certeza de que, bem lá no fundo, você sabe que também adoraria saber como é queimar...

Após mais um instante de bochechas coradas e um suspiro (falsamente) ofendido, Aziraphale acrescentou:

— Você parece achar saber muito bem o que se passa na minha cabeça. E você? Será que posso saber o que você quer?

E então, aquele era o momento.

Cinza. Cinza. Cinza.

Cinza por tudo que os anos consumiram e pelo fogo que só fez se alimentar. Cinza pelo céu nublado de cada impasse e despedida. E cinza ainda outra vez pelo errado mais certo que iria experienciar em toda sua existência. Ora, Deus, vamos lá. Inefável, não é mesmo? Então não posso realmente saber até tentar, né?

— Oh, anjo. O que eu desejo? – Crowley nem fingiu pensar antes de prosseguir. – Quero ter certeza de que, de fato, essa arritmia que me toma é o que os humanos identificam como amor e, se for, por experiência própria sei que não há muito o que se fazer neste caso, uma vez que se tenha caído. Quero saber se é por isso que sempre me encontro retornando a minha essência original e rastejando de volta para esse sentimento.

Os dois se encaravam profundamente e bem ali naquele profundo olhar havia, ao mesmo tempo, nada e um universo inteiro.

— O que eu quero, anjo? – repetiu Crowley. – Eu quero saber o que é ser abençoado. Porque, para mim, você se assemelha a um milagre.

Tempo pausado, ainda que o relógio seguisse correndo.

Cinza. Cinza. Cinza.

E no entanto, quando o anjo lhe sorriu – olhos úmidos e mãos trêmulas nas suas – o mundo preencheu-se de cor.


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