1980s Horror Film escrita por Martell


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores lindos!

Minha primeira nextgen, espero que gostem tanto quanto eu gostei de escrever.

Essa fic é do projeto do Pride Month Fanfics, está ótimo, deem uma conferida.

Aqui está o link da playlist da fic: https://open.spotify.com/playlist/003449mJEX8pYJmX4zh6nf?si=eeead6bd43d34b4a


Boa leitura!!



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Haviam poucas certezas absolutas na vida, mas uma delas era que Christopher Frank Longbottom amava Jameela Adhara Potter. O céu era azul, a grama era verde, a terra era redonda e Kit amava Jamie.

Desde as primeiras memórias do garoto o sentimento estava presente, uma constante que o guiou durante toda a sua infância e adolescência. Porém, perceber que os seus sentimentos se estendiam para além da amizade que passaram anos cultivando foi um pouco mais complexo – uma verdade que preferia não admitir. Ao mesmo tempo, sabia que mentir para si mesmo nunca valia a pena e por isso havia aceitado: seu destino era morrer sozinho.

Não que Jamie fosse uma pessoa difícil de gostar, muito pelo contrário, ela era o mais próximo do que qualquer um poderia desejar em uma namorada ideal: divertida, carinhosa, inteligente, leal e linda. Mas nunca havia passado pela sua cabeça que um dia olharia para a  melhor amiga e pensaria que ela era tudo o que Kit procurava em um relacionamento.

Infelizmente, sabia também que ela não sentia o mesmo. Não estava querendo se martirizar ou fazer drama, apenas a conhecia bem o suficiente para entender que Jamie o havia colocado firmemente na categoria de “irmão” desde que se conheceram há 18 anos, balbuciando um para o outro no colo de suas mães. Não a ressentia por isso, afinal, ninguém tinha obrigação de retribuir os seus sentimentos.

Entretanto, diante da sua escolha repentina de confessar o que sentia, encarar esse fato não era exatamente algo animador.

Kit simplesmente não sabia como era estar apaixonado por alguém que não fosse Jamie. Não tinha vergonha em assumir que ela sempre fora o centro do seu universo, ditando todas as formas possíveis que a palavra amor poderia representar para o garoto. Ele gostava de enxergar o mundo com fatos e certezas, mas quando se tratava da amiga nada era fixo. Convicções como a sua sexualidade, que pareciam absolutas, desmoronavam em um piscar de olhos – afinal, se Jamie era uma garota, Kit não poderia ser gay como acreditava desde os 11 anos, simples assim. Não adiantava lutar contra os efeitos que ela tinha em sua vida.

Amar Jamie era apenas natural. Para ele, era impossível conhecê-la e não se apaixonar, mesmo que um pouquinho.

E estava perfeitamente satisfeito em tê-la como melhor amiga, já que nunca chegariam a ser mais do que isso e pensar em uma vida sem ela era absolutamente ridículo. Havia aceitado esse fato no momento em que percebeu a profundidade de seus sentimentos. “Morrer sozinho” era um termo relativo, já que pretendia manter Jamie ao seu redor até o momento em que ela não desejasse mais a sua presença.

A sua decisão de se declarar, mesmo com a certeza de uma rejeição dolorosa, veio por dois motivos:

O primeiro era que Kit precisava levar esse fora para tentar seguir em frente. Acreditava que a amizade dos dois era forte o suficiente que uma confissão de amor não a abalaria, ou pelo menos, não deixaria as coisas estranhas por muito tempo. Ananya Patil-Brown, sua outra melhor amiga, era a maior incentivadora do plano “quebrar o coração do Kit”— já que, segundo ela, ninguém aguentava mais o ver sofrendo por Jamie.

(Kit poderia dizer o mesmo sobre Ananya, mas a amiga ainda não havia aceitado o fato de também gostar da Potter – algo como ser impensável ela nutrir sentimentos pela mesma pessoa que o seu bestie. Mas era apenas um fato da vida: quem conhecia Jamie em algum momento se encantava por ela, platonicamente ou não. Ele não se importava com a “concorrência”, até porque sabia que as próprias chances eram inexistentes, mas era uma escolha de Ana perder o pouco tempo que lhe restava.)

O segundo, e mais importante, era o fato de Jamie estar se mudando para o outro lado do mundo em menos de duas semanas. Claro que poderiam fazer chamadas de vídeo e continuariam mantendo contato constante, mas nada seria o mesmo. A distância, a diferença no fuso horário, as distintas experiências que cada um teria sem a presença constante do outro.

Até esse momento, o máximo que haviam ficado separados eram as viagens com suas respectivas famílias que mal duravam um mês – e que, com frequência, acabavam se metendo. Cresceram correndo um para a casa do outro, brincando nos quintais conjuntos, indo para a mesma escola, com o mesmo grupo de amigos, reclamando dos mesmos professores. Ouviam as mesmas bandas, frequentavam os mesmos restaurantes, gostavam dos mesmos filmes e livros e séries.

Kit e Jamie eram tão sintonizados que às vezes pareciam uma pessoa só. Não era de se estranhar que ela o via como um gêmeo de outra mãe, quase um Potter honorário. Metade do tempo ele não sabia se seus interesses eram realmente seus ou apenas o seu desejo de complementar a melhor amiga. Talvez ela sentisse o mesmo, ao menos em relação a isso, mas era uma das coisas que nunca havia perguntado com medo de sua paixão transparecer.

Agora Jamie estava indo para os Estados Unidos, longe de todos, procurando uma independência que nunca notara que queria. Ela poderia ter escolhido algo mais perto de onde moravam, procurado universidades em qualquer canto do Reino Unido, até mesmo da Europa, mas havia aplicado para a Universidade de Maryland e, ao ser aceita, não ouviu nenhuma opinião contrária. Enquanto a família a apoiasse, estava pronta para partir.

Então Kit iria confessar os seus sentimentos, esperar que essas últimas duas semanas não fossem completamente desconfortáveis e tentar seguir em frente sem Jamie a uma janela de distância. Um plano simples que havia demorado 6 anos e a partida iminente da garota para executar. O que poderia dar errado, além de tudo?

Era terça-feira, marcando a data da noite de filmes semanal que tinham há mais de 10 anos, e Kit estava se preparando mentalmente para não chorar na frente dos outros Potter e se humilhar ainda mais. Desabar na frente de Jamie? Sem problemas. Deixar Al Potter ver uma lágrima nos seus olhos? Kit preferia morrer.

Jogado na cama, pensando se valia a pena usar uma roupa mais bonita para A Grande Declaração, em vez de uma calça jeans velha e uma camisa de banda que já tinha visto dias melhores, sentiu o celular vibrar no seu bolso, notificando a chegada de mensagens. Muito provavelmente eram de Jamie, que havia passado o dia insistindo em filmes de terror, mesmo sendo a semana de Kit escolher o que assistiriam.

Não era como se ele tivesse medo, gostava bastante do gênero até (pura influência da melhor amiga, como sempre), só que preferia comédias românticas, de preferência as que Sandra Bullock estrelava – e não, ele não tinha um crush numa mulher que parecia a tia Susan. Mas ele havia cedido, já que era melhor deixar Jamie feliz antes dele tentar arruinar a amizade dos dois. De maneira previsível, as notificações indicavam 6 mensagens da garota, enviadas em rápida sequência.

 

[18:14, 02/08/2023] Jamie ❤: Chris

[18:14, 02/08/2023] Jamie ❤: Christopher

[18:14, 02/08/2023] Jamie ❤: olha pra janela

[18:14, 02/08/2023] Jamie ❤: logo

[18:15, 02/08/2023] Jamie ❤: ta bom

[18:15, 02/08/2023] Jamie ❤: Kit, olha pela janela

 

Revirando os olhos com a inabilidade dela entender que Kit nunca iria responder a Chris, levantou-se para olhar pela janela e lá estava ela, com dois filmes na mão – porque Jamie era a única pessoa que ainda tinha DVDs nessa década. A coleção de filmes, séries, discos e CDs era impressionante, principalmente por não servir apenas de decoração, como algumas pessoas pensavam.

A forma como ela estava balançando os braços agitadamente indicava que ela queria que escolhesse o que iriam assistir do que tinha separado. Mesmo sem conseguir enxergar qual filme era qual, apontou para a mão direita, sabendo que a probabilidade de ela o preferir era maior que o da esquerda. Às vezes não sabia se ele apenas a conhecia muito bem ou se Jamie era simplesmente previsível.

O sorriso enorme que conseguia ver mesmo à distância indicava que estava certo. Revirando os olhos, fechou a cortina sem acenar uma despedida e previsivelmente seu celular começou a vibrar com mensagens segundos depois. Jamie odiava quando ele fazia isso, insistindo que Kit a estava ignorando – mesmo que eles fossem se ver em menos de 15 minutos.

Decidiu continuar com a roupa que estava, mesmo que não fosse nada impressionante; ela já o tinha visto em condições muito piores – e o quanto menos se falasse de como Kit terminara a noite na última festa de Arabella Zabini melhor – e uma camisa de botão não faria nada além de entregar que algo estava errado antes de estar pronto para começar o que tinha potencial de ser uma das conversas mais constrangedoras de seus 18 anos de existência.

Antes de sair conferiu mais uma vez as suas mensagens e resolveu responder as de Ana, a única que sabia do seu plano e parecia ainda mais ansiosa que Kit para a confissão dos sentimentos e possível humilhação na frente do amor da sua vida.

 

[18:21, 02/08/2023] Queen : Você já foi para a casa de Jameela?

não

mas estou indo agora, criando coragem

[18:22, 02/08/2023] Queen : Boa sorte, Kit.

[18:22, 02/08/2023] Queen : Espero que tudo dê certo.

eu também, Ana, mas impossível

[18:22, 02/08/2023] Queen : Pouco provável, não impossível.

[18:23, 02/08/2023] Queen : Nunca se sabe, Christopher, ela pode te surpreender.

 

Revirando os olhos para a positividade quase obsessiva de Ananya, resolveu se apressar e sair de casa antes que Jamie começasse a reclamar que havia chegado atrasado mesmo sendo vizinhos. Algo que sempre acontecia e mesmo que o biquinho irritado fosse fofo e mais atraente do que deveria, a meta da noite era não irritá-la. Não precisava de mais nada contra ele nesse momento.

Desceu as escadas correndo, ignorando a sua irmã mais nova, Elena, gritando que deveria ser mais cuidadoso e que sofreria um acidente algum dia. Lena sempre reclamava dos comportamentos ligeiramente irresponsáveis de Kit e, mesmo com 13 anos, agia mais como a irmã mais velha do que ele, o que era adorável na mesma medida que irritante – o que Jamie insistia que era basicamente a definição de ter irmãos mais novos e ele concordava firmemente.

Quando bateu na porta da casa dos Potter o seu relógio lia 18:29h, um minuto antes do horário combinado, e quando Jamie abriu a porta não resistiu em lhe lançar um olhar de superioridade, enquanto indicava o relógio de maneira nada discreta. Ela apenas mostrou a língua e o deixou entrar, gritando para a família inteira que ele havia chegado.

— Vamos, perdedor, me ajude a pegar as coisas na cozinha.

— Boa noite para você também, Jameela, eu estou ótimo, obrigado por perguntar.

Revirando os olhos para o seu comportamento, a amiga apenas o ignorou e foi para o cômodo familiar, Kit a seguindo, onde um dos irmãos da garota já estava. Albus, sentado na bancada, lançou o mesmo olhar enigmático de sempre na direção de Kit, o deixando desconfortável. A intensidade do adolescente era um pouco demais para a sua  sanidade e ele preferia não tentar descobrir o que passava pela cabeça maquiavélica do garoto. Já tinha problemas o suficiente com um Potter, muito bem, obrigado.

— A mamãe disse pra deixar a porta aberta se for levar namoradinhos para o seu quarto, Jameela, – disse Albus, voltando os olhos para o celular, o tom levemente sarcástico.

— Ai, garoto, me dá um tempo, – a irmã respondeu, continuando a procurar uma vasilha para colocar a pipoca, – Kit, seja útil e pegue os copos e o refrigerante, por favor.

Mecanicamente fez o que a amiga pediu, a frase de Al ecoando na sua cabeça sem parar. Em outro dia apenas teria rido da implicância do mais novo e sua insistência em antagonizar a irmã, mas neste momento ele só queria morrer.

— Isso mesmo, Kit, faz o que a sua dona está mandando.

O tom de voz de Albus quando disse o seu nome o deixou ligeiramente constrangido, muito mais do que a frase. Sentia, por algum motivo, que suas interações com o garoto estavam ganhando uma camada que não entendia e nem sabia se gostaria de entender. Sua mente paranoica insistia em coisas que eram tão fora da realidade que chegava a ser ridículo, principalmente quando se tratava do adolescente de 16 anos que vira crescer – sabia que era apenas dois anos mais velho, mas da sua perspectiva era estranho e desconfortável.

— Já coloquei o refrigerante nos copos, – disse Kit, ignorando o mais novo, – pode deixar que eu levo a pipoca.

— Você não cansa de correr atrás de Jameela, não? Vai dar comida na boca dela também? – continuou provocando Albus, claramente insatisfeito com estar sendo excluído da conversa. Kit apenas lançou um olhar irritado e entregou os dois copos a Jamie.

— Vem, Chris, vamos subir, deixa esse pirralho para lá.

Revirando os olhos para o irmão, ela seguiu para o seu quarto sem esperar por Kit, nem mesmo olhando para trás, certa de que ele estaria a seguindo. O que obviamente estava fazendo, pois tinha como regra de vida evitar contrariar a garota e hoje, mais do que nunca, não testaria a sua paciência. Tentou apagar da sua mente a risada incrédula do adolescente mais novo, resoluto a não se deixar estressar.

Quando entrou no quarto Jamie já estava colocando o filme no Blu-Ray, como se a sua televisão não tivesse todos os serviços de streaming existentes. Kit achava charmoso, mesmo que o lembrasse das longas tiradas de Lily Potter contra os irmãos e suas “velharias que só serviam para acumular poeira” – a adolescente era extremamente opinativa e devota da tecnologia, enquanto Jamie se agarrava com unhas e dentes aos seus discos e Al se recusava a ler livros digitais.

Kit colocou a tigela com a pipoca na mesinha de cabeceira que ficava ao lado da cama de solteiro, os panos ligeiramente bagunçados como se Jamie estivesse deitada por cima deles antes de sair para abrir a porta. Tirou os tênis e se jogou em cima, agarrando um dos muitos travesseiros coloridos que a decoravam.

— Como você vai passar metade do filme pulando e escondendo a cara nos lençóis, pode ficar com a cama, – Jamie disse, o que fez Kit mostrar a língua para a amiga e jogar um travesseiro na sua direção.

Com sua agilidade desenvolvida com anos de voleibol, ela apenas pegou o objeto ainda no ar antes que a atingisse e jogou de volta, com muito mais força do que ele havia. Kit, com sua coordenação visual-motora inexistente, mal conseguiu levantar os braços e já estava com um travesseiro na cara.

Começou a reclamar da falta de modos de Jamie e como ela destratava os convidados, enquanto a amiga ria sem pudor, parando apenas para tomar um gole do refrigerante que ainda segurava, a caneca que Kit costumava usar apoiada também na mesinha de cabeceira.

Jamie fechou as cortinas, deixando a única luz no quarto ser o brilho frio da televisão, a imagem congelada no menu do filme, o que já estava o deixando ligeiramente inquieto – não que fosse contar isso a ela. Pegando o controle do aparelho, a amiga sentou-se na cadeira confortável que havia puxado para perto da cama, ficando perto de onde estava a pipoca e os outros doces que ela havia espalhado anteriormente.

Estavam próximos, como era de costume, e o longo cabelo castanho estava jogado por cima do apoio de cabeça, refletindo levemente a luz que vinha da TV. Kit adorava passar os dedos pelas mechas onduladas, o cheiro levemente floral e cítrico do shampoo tão familiar quanto reconfortante. Mesmo com Jamie iniciando o filme, estava mais preocupado em resistir a tentação de brincar com um dos raros cachos que havia se formado na ponta do cabelo.

Ela havia deixado o cabelo crescer antes mesmo de revelar a sua identidade de gênero para os pais, quando apenas Kit e Teddy Lupin, o afilhado do seu pai e irmão mais velho em tudo menos sangue, sabiam do seu segredo. Lembrava dos grandes olhos castanhos assustados, perguntando hesitantemente se ficaria bonita com o cabelo grande.

Tinham apenas 13 anos, mas Jamie já sabia quem era – ou bem, sabia quem não era. Fora Teddy quem a ajudara a entender mais sobre si, incentivando que pesquisasse e conversasse com outras pessoas como ela, a se referir da maneira como achasse mais confortável, a usar o que a deixava mais feliz.

Com seus quase 20 anos ele parecia tão mais velho do que Kit se sentia agora, sábio de um jeito impossível de delimitar pela idade. Tirando a sua paixão por Jamie, a admiração que sentia por Teddy era o mais próximo que poderia pensar quando perguntavam sobre “crushs”.

Cinco anos depois e o cabelo de Jamie chegava a sua cintura, brilhoso, bem cuidado – um lembrete constante de uma das primeiras coisas que a deixaram ser quem realmente era. Não que sua identidade como mulher fosse dependente de coisas superficiais como o tamanho de seu cabelo, longe disso, apenas uma preferência e uma homenagem carinhosa a pessoa que a Jamie de 10 anos queria ser.

Nem mesmo notou sua mão migrando naturalmente para os fios castanhos até perceber, em sua visão periférica, que a amiga havia se inclinando involuntariamente para facilitar o carinho familiar. Havia perdido o começo do filme e, sinceramente, não estava disposto a assistir o resto, observar Jamie era muito mais interessante que qualquer produção cinematográfica.

A baixa iluminação só tornava a tarefa de decifrar suas expressões mais desafiadora. Os grandes olhos cor de chocolate estavam vidrados na tela, completamente imersa no enredo de um filme de terror qualquer dos anos 80. Seu rosto expressivo se contraia com cada acontecimento, o corpo se inclinando para a TV nas cenas mais importantes, as mãos se contorcendo no colo quando estava nervosa, os lábios cheios brilhando com a manteiga da pipoca – o que deveria ser ligeiramente nojento, mas só conseguia pensar na vontade que tinha de beijá-la.

Kit não havia tocado na comida em nenhum momento durante a noite, muito ocupado em catalogar todos os detalhes do momento que via com frequência, mas que continuava fascinando-o todas as vezes. Jamie era apenas tão… deslumbrante, de uma maneira natural e simples. Qualquer um que a visse assim, vestida de maneira confortável, encolhida na sua cadeira rosa pink, empolgada com sangue falso e má tecnologia de edição gráfica, ficaria tão apaixonado quanto ele estava.

— Você realmente não queria assistir isso, não é?

A voz levemente rouca da amiga o despertou dos seus pensamentos abruptamente e Kit sentiu o seu rosto esquentar ao ser pego a analisando deliberadamente, torcendo para que a má iluminação a impedisse de notar a vermelhidão em suas bochechas. Tirou a mão do seu cabelo para que ela pudesse virar completamente para a cama, o encarando nos olhos, uma sobrancelha arqueada inquisitivamente – lembrava de vê-la treinando até conseguir arqueá-la com perfeição, após ter lido em um livro. Mesmo sabendo a história boba, não tornava a expressão menos atraente.

— Eu queria assistir o que você quisesse, – respondeu, dando de ombros. Era verdade, afinal.

— Sério? Me diga uma coisa que aconteceu nesse filme.

Diante da cara séria da amiga, tentou revirar suas memórias para algum acontecimento específico, mas não conseguia lembrar nem mesmo o nome do filme quanto mais saber do que se tratava. Apostava em algum assassino, possivelmente mascarado, mas não queria dizer e descobrir que nem mesmo o gênero de terror sabia.

— Sinto muito, Jay, muita coisa na minha cabeça ultimamente.

— Ei, tudo bem Kit, não precisa pedir desculpas, – com um sorriso leve, estendeu a mão para que ele a segurasse, – eu percebi que algo está acontecendo e bem, você não precisa me falar se não quiser ou não se sentir confortável, mas eu sempre vou estar aqui para você. Sempre.

Dando um aperto firme na mão que segurava, Jamie levou até os lábios e deu um beijo suave, sem parar de sorrir. Kit não sabia quanto mais o seu coração aguentaria, as palavras que queria dizer estavam na beira da sua garganta, mas não tinha coragem para emiti-las

— A gente pode assistir outra coisa ou podemos conversar, okay? Não vou te pressionar, é um dos meus últimos dias com você e eu quero que esteja bem, feliz.

A voz da amiga tremeu, lágrimas leves tornando os seus olhos ainda mais brilhantes. Jamie não costumava chorar, não em público, mas a sua partida iminente estava deixando os seus ânimos à flor da pele. Era fácil esquecer que ela sentiria saudades assim como ele, que a amizade dos dois era muito anterior a qualquer paixão, que o amor que nutriam um pelo outro era mais sólido e profundo do que a maioria imaginava.

E foi esse lembrete que o fez tomar a decisão de falar.

— Jamie, – começou, a voz rouca, as lágrimas implorando para escorrer de seus olhos, seu coração preparado para ser quebrado em milhões de caquinhos, – Jay… Eu espero que isso não destrua nossa amizade, você é uma das pessoas mais importantes da minha vida e eu não sei o que faria sem você.

Sua garganta fechou e ele não sabia mais como continuar, como revelar um segredo que havia guardado durante anos para se proteger. Era como tirar um colete a prova de balas segundos antes de se colocar na linha de frente, a certeza de que seria atingido tornando a situação muito mais assustadora.

— Chris, você sabe que pode me falar o que quiser, 'tá bem? Eu te amo, nada nunca vai mudar isso, – a amiga parecia preocupada e usou a oportunidade para segurar sua outra mão. Agora estavam frente a frente, de mãos dadas, e Kit sabia que esse era o momento.

— Eu sei, eu sei, eu também te amo, – respirou fundo, ordenando que as suas mãos parassem de tremer, tentando relaxar o aperto nas da amiga e riu sem humor, – esse é o problema, eu te amo tanto, Jameela. Eu sou apaixonado por você, eu sempre fui apaixonado por você, não existe um universo em que isso não seja verdade. Eu te amo muito mais do que como um amigo, muito mais do que eu sei explicar… Você não precisa me responder nada, eu apenas preciso dizer que te amo antes que seja tarde demais.

— Oh, Chris…

As lágrimas que havia tentado segurar começaram a escorrer pelo rosto de Kit livremente, o tom de pena na voz de Jamie a deixa para escaparem em um fluxo constante. Puxou as mãos que ainda estavam em um aperto firme na mão da garota e as usou para esconder o rosto, um misto de vergonha e dor por trás das palmas trêmulas.

Ouviu sons indicando que ela havia se levantado da cadeira e segundos depois sentiu os braços fortes o segurarem firmemente, o movendo até que os dois estivessem deitados na cama de Jamie. A amiga manteve o aperto até Kit se acalmar, sem dizer nada, apenas distribuindo beijos no topo da sua cabeça, como sempre fazia para consolá-lo.

O silêncio que havia se instaurado no quarto era apenas interrompido pelas respirações irregulares de Kit. Jamie havia o colocado parcialmente por cima dela, a cabeça descansando em seu peito e dessa vez ela era quem brincava com o cabelo do amigo, encostando os lábios na sua testa em toques tão suaves que mal poderiam ser considerados beijos.

Quando considerou que estava menos patético, revirou-se na cama até estarem cara a cara, a iluminação ruim impedindo que lesse a expressão da amiga como gostaria, mas mesmo assim não precisava ser um gênio para entender que havia sido rejeitado.

— Desculpa mesmo por ter jogado isso em cima de você e ter reagido feito um idiota, Jay, – murmurou, a voz rouca do choro, cansada com a quebra das expectativas que nem sabia que tinha.

— Você não tem nada para se desculpar, okay? – Jamie respondeu no mesmo tom baixo, parecendo quase tão triste quanto ele se sentia. – Eu, por outro lado, sinto muito, muito mesmo.

— Ninguém é obrigado a me amar, ridícula, muito menos você.

— Eu sei disso, idiota, mas eu me odeio por te fazer sofrer, – sabia que ela havia revirado os olhos, mas continuava com a voz trêmula e devastada, – você merece o mundo, Christopher, e todo o amor que existe nele. Eu sinto muito por não ser capaz de te dar o que você merece.

— Ei, está tudo bem, – respondeu e depois de uma leve pausa, continuou, – na verdade não está, mas eu vou ficar bem, eventualmente.

Os dois continuaram se encarando, os olhos castanhos dela completamente pretos com a falta de luz de qualidade. O silêncio não era desconfortável, nunca fora, e era reconfortante saber que isso não havia mudado. Sentiu a mão dela voltar a acariciar o seu cabelo, um gesto quase automático de alento, e fechou os olhos, tentando ignorar como os pedaços que restavam do seu coração continuavam acelerando com um mero toque. Colocou o rosto contra o pescoço da amiga, murmurando contra a pele macia:

— Eu sabia que isso ia acontecer, mas esperava segurar o choro até chegar em casa e me afogar em autodepreciação.

— Enquanto assistia comédias românticas com a Sandra Bullock e chorava em videochamada com Ana? – Jamie respondeu no mesmo volume, um tom de brincadeira suavizando a verdade das suas palavras.

— Exatamente. Talvez eu completasse o clichê e tomasse um pote de sorvete inteiro.

— Você nem gosta de sorvete, Christopher.

— É pelo aesthetic, Jameela, por Deus.

Não precisava estar olhando para ela, sabia que estava revirando os olhos como sempre. Mais um hábito que os dois possuíam e não conseguiam distinguir quem tinha copiado quem, apenas um sintoma da familiaridade que os anos garantiram. Sorriu de leve, apreciando o conforto dos braços da melhor amiga, mesmo estando devastado emocionalmente. Era bom ter a confirmação que mesmo com seus sentimentos não retribuídos isso não o impediria de buscar refúgio em Jamie.

A ficha estava caindo que agora não havia mais nada sobre si que ela não sabia. Jameela era a guardiã de todas as suas histórias constrangedoras, medos e preocupações, qualquer menor inconveniência ou incidente, seus gostos e desgostos, mudanças na sua aparência, personalidade, coisas importantes ou não. Com seus sentimentos por ela jogados ao vento, não existia uma faceta de Kit que ela não conhecia – e se existisse, ele também não estava ciente.

— Nossa, agora você sabe absolutamente tudo sobre mim, isso é um pouco preocupante, – comentou, afastando o rosto de onde estava pressionado contra a amiga, abrindo os olhos e a encarando um pequeno sorriso envergonhado, – não sei se uma pessoa deveria ter tantas informações sobre outra.

— E qual o problema de eu ter conhecimento sobre o meu melhor amigo, hein, Christopher Longbottom? – Jamie resmungou, colocando o rosto contra o cabelo cacheado de Kit, os forçando a voltar para a posição que estavam antes.

— Não tem problema nenhum, desde que eu saiba todos os seus segredos de volta, – brincou, enquanto deixava a garota mover seu corpo como gostaria. 

Uma das desvantagens de ser mais baixo e mais magro que a amiga era que ela sempre o estava puxando e empurrando, encaixando os dois da maneira que desejava. Nunca com força ou violentamente, apenas o posicionado em sua órbita de uma maneira confortável, o trazendo levemente para perto, segurando sua mão, seu braço, o guiando para seu colo, colocando a cabeça de Kit contra seu peito. Jamie parecia necessitar do toque, era quase involuntário, e desde que eram crianças ambos se comportavam assim.

Por estarem tão próximos que quase pareciam apenas uma pessoa, sentiu a rigidez em seu corpo com a brincadeira que havia feito, a mão que enrolava um dos seus cachos parando abruptamente, a respiração tranquila se interrompendo brevemente. Desvencilhou-se do aperto firme mais uma vez, encarando os olhos que o observavam com culpa e medo. O castanho dos olhos de Jamie era muito mais rico, enquanto os de Kit eram apenas um simples cor de mel, empalidecendo em comparação e nunca demonstrando a mesma variedade de sentimentos que os dela. 

— Ei, calma, eu estava brincando, se tem algo que você não quer me contar está tudo bem, okay? Você não é obrigada a me informar de todos os seus passos, muito menos segredos que não me dizem respeito.

Enquanto estava falando a verdade da maneira mais confiante e carinhosa que conseguia, não era emocionalmente inepto o suficiente para ignorar que em certo nível o magoava saber que haviam coisas que Jamie escondia. Não tinha direito nenhum de estar sentindo algo do tipo, porém não era como se controlasse cada reação afetiva que tinha.

— Claro que eu sei disso, Chris, você jamais me pressionaria, – a voz de Jamie estava trêmula, levemente exasperada e repleta de um carinho que raramente era demonstrado para além da família e de Kit, – eu confio em você.

— Que bom que você sabe, idiota, agora volta a mexer no meu cabelo, a gente pode esquecer isso, se quiser.

— Espera, antes eu queria fazer uma coisa, – dessa vez foi ela quem fechou os olhos, respirando fundo e parecendo se preparar, – eu sinto muito, muito mesmo, mas eu preciso fazer isso.

E com essas palavras Jamie segurou o rosto de Kit com as mãos e o beijou.

Foi rápido, apenas um encostar de lábios que durou alguns segundos, Kit nem mesmo fechou os olhos tamanho o choque com a ação repentina. Enquanto uma parte de seu cérebro estava exultante com o desenvolvimento inesperado, a maior se enchia de indignação pela atitude inconsequente da garota. Jamie o deixava chorar por não corresponder seus sentimentos em seus braços e do nada o beijava? Antes que pudesse questioná-la, a amiga abriu os olhos e sussurrou para si mesma:

— Eu realmente não gosto de garotos.

Levando a mão aos lábios, Jameela finalmente o encarou, ainda parecendo amedrontada, sabendo que ele havia ouvido as palavras que a escaparam involuntariamente. A rigidez na sua postura fazia sentido em retrospecto, um segredo que nem ela mesmo havia aceitado completamente.

 – Eu não gosto de garotos, Chris, – repetiu de maneira mais firme, mais segura do que estava confessando. – Agora você sabe tudo sobre mim.

Sua mente demorou alguns segundos para processar a informação que havia recebido, classificando por ordem de importância suas reações imediatas, jogando o “ela nunca poderia retribuir meus sentimentos” para o canto mais profundo, pois isso não era sobre Kit e sim sobre sua melhor amiga, que aparentemente não se sentira segura para conversar sobre a sua sexualidade com ele. Sabia que precisava assegurar ela que estava tudo bem, porque obviamente estava, mas o que acabou falando foi:

— Por que você nunca disse nada?

E se sentiu um grande idiota por transformar um momento que era de Jamie sobre ele, como um babaca egocêntrico qualquer. Claro que queria saber a resposta, estava mais uma vez machucado por o que percebia como falta de confiança na amizade dos dois, mas sabia que o mundo não girava ao seu redor e não queria deixá-la desconfortável por seu egoísmo.

— Não que você precisasse ter me falado algo, sério, ignora o que eu disse, okay?

A risada leve da garota o despertou da espiral de pensamentos negativos que estava caindo. Ela repetiu que sabia que Kit jamais a pressionaria e ele repetiu que Jamie não precisava falar nada que não quisesse antes dos dois ficarem em silêncio novamente. Não estava tudo bem, na verdade estava confuso e magoado e apenas tão feliz de ainda ter sua melhor amiga que não queria quebrar o momento, entretanto, havia algo que queria dizer antes que perdesse a coragem.

— Jay, só uma coisa, eu sei que você teve o seu grande momento de revelação, mas, – voltou a olhar em seus olhos, sério e firme, – por favor não me beije quando você sabe que não me ama como eu te amo. Eu sei que pode não parecer grande coisa e eu sempre quis que meu primeiro beijo fosse com você de toda forma, mas… Não foi legal, só… Não faça isso comigo, não é justo.

Dessa vez quando os olhos de Jameela se encheram de lágrimas sabia que era por sua culpa e os restos do seu coração apertaram, envergonhados por causarem sofrimento para uma pessoa tão importante, porém estava resoluto em seu posicionamento. O fato de amá-la não apagaria a dor de ter o que sempre quisera maculado por ter sua vulnerabilidade exposta e a incerteza da garota.

— Eu sinto muito, Chris, de verdade, eu não quis… Seu primeiro beijo?

— Eu vou ficar bem, eu sei que você nunca quis me magoar, mas aconteceu e eu peço que não aconteça de novo, okay? Apenas isso, fique tranquila.

— Seu primeiro beijo? – Jamie repetiu, incredulidade e culpa se misturando em sua voz.

A luz da TV era muito fraca para decifrar os pequenos detalhes na expressão da garota e por alguns segundos se perguntou se seria melhor ter tido essa conversa em um espaço aberto, iluminado, onde poderia detectar cada emoção nos olhos chocolate, no mover de seus longos cílios, no aprofundar de suas covinhas, mas chegou a conclusão que era melhor assim. Dessa forma ela não poderia vê-lo com a mesma clareza e decifrá-lo com facilidade.

Não estava envergonhado de nunca ter se envolvido com ninguém, mesmo que só fisicamente. Tinha 18 anos e sabia que não era exatamente normal para um garoto da sua idade, mas sempre esteve apaixonado por Jamie e nunca sentiu vontade de explorar seus sentimentos por outras pessoas, não quando o que queria estava a poucos metros de distância, sorrindo e brincando, tão linda que chegava a nublar o seu julgamento.

Com seus cachos cor de areia entediantes complementando a pele pálida com algumas sardas pontilhando seu rosto, Kit também não se considerava particularmente atraente, o que não o incomodava. Ninguém costumava lutar por sua atenção, algo positivo quando considerava que esta era dedicada a uma pessoa exclusivamente, e ele estava muito satisfeito com seu progresso no quesito romance.

Isso significava que nunca havia saído em um encontro, nem de maneira casual, assim como não entendia como seus amigos poderiam se encontrar intimamente com pessoas desconhecidas em festas e bares. Era de surpreender que nunca havia beijado ninguém até então? Não estava se guardando ou algo do gênero, longe disso, apenas se interessava por uma única pessoa e essa pessoa havia acabado por quebrar toda a ilusão que formara durante anos em alguns segundos.

— Você saberia se eu tivesse beijado alguém antes, Jamie, sinceramente.

— Eu sempre assumi que você e Ananya… Para experimentar, eu acho. Ou não, vocês sempre foram tão próximos...

Jamie claramente estava incerta e se sentindo culpada, mas não era como se Kit colocasse grande importância no fato de ter sido o seu primeiro beijo, já que algum dia iria acontecer ou não iria e estava tudo bem, sua questão fora como se sentiu quase usado após ter se exposto quase que completamente.

— Ananya também não é a maior fã de garotos. – respondeu revirando os olhos, porque não era um segredo e tinha certeza que Ana havia dito diretamente para Jameela sua sexualidade mais de uma vez.

— Sério? Você tem permissão dela para estar divulgando essas coisas, Christopher? – E agora Jamie estava brava com a possibilidade dele estar tirando alguém do armário sem permissão, o que era adorável, mesmo estando completamente errado.

— Jameela, Ana é lésbica, ela falou para o grupinho inteiro no aniversário do Ed Diggory, lembra?

— Sinceramente, eu não tenho uma memória sequer dessa noite, – admitiu envergonhada, provavelmente pensando no estado que havia acordado depois da festa.

Os gritos da Sra. Potter com a filha mais velha sobre “responsabilidade” e “respeito” foram tão altos que Kit conseguiu ouvir de seu quarto. O que era compreensível, já que a única situação pior fora a de Kit após a festa de Arabella Zabini – que todos foram obrigados a prometer nunca contar para ninguém, mesmo que os olhares julgadores de Elena, sua irmã, e Lily Potter fossem o suficiente para saber que alguém, provavelmente Albus, havia dado com a língua nos dentes.

— Enfim, Ana nunca se interessou por homens em geral e por mim muito menos, e eu sempre fui interessado por, bem, você, então não, sem beijos para mim, – continuou no tópico de maneira descontraída, mesmo que ainda fosse bizarro falar de seus sentimentos com Jamie, – provavelmente sem beijos para mim por muito tempo ainda, mas está tudo bem.

— Ai meu Deus, eu sou horrível, eu sinto tanto, sério, eu só… Eu estou confusa e você é apenas tão incrível, eu queria tanto poder gostar de você, Chris, eu sempre achei que um dia eu acabaria gostando de um cara e ele seria bom, carinhoso e inteligente, e você estava bem aqui e você me ama, apesar de tudo o que eu sou, eu nem pensei em como isso te afetaria! – A cada palavra a velocidade de sua fala aumentava, até estar quase sem fôlego no fim da frase, até parar abruptamente e virar na cama até estar deitada em suas costas, os olhos fixos no teto. – Eu sinto muito, Chris.

Aproveitou a mudança de posição e colocou a cabeça sobre o seu peito, passando uma de suas pernas por cima das dela e abraçando firmemente a sua cintura, enquanto um baço de Jamie automaticamente se colocou por cima de seus ombros, o outro apoiando a própria cabeça, em uma posição dolorosamente familiar.

— Okay, eu já disse que vai ficar tudo bem, 'tá? Agora me explica porque você quer tanto se convencer que gosta de homens, Jay.

— É só… Eu já causei tanta comoção por ser do jeito que eu sou, sabe? Eu sou uma mulher, eu lutei unhas e dentes para ser vista como uma mulher, eu aguentei minha avó errando meu nome e meu gênero, absorvi todas as piadinhas sem graça de pessoas importantes para mim, eu tentei tanto não me deixar afetar… E agora eu tenho que passar por todo esse processo de novo? Não é justo, sabe, por uma vez na vida eu só queria ser normal.

Não era capaz de ver por sua posição, mas pela forma como seu peito estava se mexendo e a voz estava quebrando, percebeu que ela havia começado a chorar. Até conseguir formular uma resposta adequada escolheu ficar calado, apenas a apertando firmemente, sentindo lágrimas próprias invadirem o seu rosto.

Nunca entenderia a dor da amiga, então resignara-se a protegê-la, defendê-la e consolá-la, o que o fazia se sentir tão impotente diante da realidade de que cada dia para Jamie era uma luta contra o mundo e, de fato, não era justo, nem um pouco. Levantou abruptamente quando finalmente registrou as palavras que ela havia usado.

— Jameela Adhara Potter, você me escute porque eu só vou falar uma vez, – começou, tentando encará-la nos olhos mesmo com a pouca luz, – você é normal, completamente normal, está me ouvindo? E mesmo que não fosse, quem diabos se importa com “Normal”? Você é uma mulher incrível, uma das melhores pessoas que eu já conheci, talvez a melhor, eu não aceito que você se diminua para se encaixar em padrões imaginários de gente ignorante! E daí que você gosta de garotas? Isso não muda nada, está me ouvindo, nada.

Ambos estavam chorando e Kit se jogou novamente em cima da amiga, a segurando enquanto ela deixava escapar tudo o que precisava. Suas palavras não iriam mudar como ela se sentia, não de verdade, não quando colocado de frente a tudo que ela havia passado os últimos quatro anos ouvindo constantemente, mas talvez se repetisse todos os dias um dia seria internalizado. Ele poderia sonhar. Um passo de cada vez.

— Jameela, eu amo você, não importa quem você goste ou deixe de gostar, está bem? Eu amo você, seus pais amam você, seus amigos amam você, nada disso vai mudar.

— Eu sei, eu sei, – a voz dela estava fraca, ainda chorando, – mas é tão difícil lembrar disso às vezes.

Continuaram deitados por mais alguns minutos até ambos se acalmarem. A cara de Kit estava dolorida de tantas lágrimas logo cedo, mas não havia muito o que pudesse fazer em relação a isso. De maneira paradoxal estava se sentindo mais leve, não havia mais nenhum segredo entre os dois, e nada estava bem, mas iria ficar. Em algum nível, sabia que precisara desse momento para tentar seguir em frente e era grato por ter uma pessoa tão especial ao seu lado.

— Então… – começou Jamie, quebrando o silêncio, – Ananya gosta de garotas, hun?

— Sim, ela gosta, – lançou um olhar desconfiado para a garota que estava com os olhos firmes no teto, – porque, interessada?

E a forma como Jameela gaguejou uma resposta qualquer deu a entender que sim, estava interessada, o que doeu por alguns segundos, mas nada que o impedisse de aproveitar a nova informação que havia ganhado. Talvez alguém fosse conseguir se despedir no aeroporto dramaticamente como nos filmes de romance. Aparentemente a amiga havia lembrado desse fato no mesmo momento em que ele, o humor dos dois deteriorando imediatamente.

— Não importa se estou ou não, daqui a duas semanas eu vou para o outro lado do mundo e qualquer sentimento hipotético será esquecido.

— Então há um sentimento aí? – Perguntou, sem se deixar abalar mais que o necessário com a partida iminente da amiga. Já sabia que ia acontecer, não precisava ficar lembrando.

— Sentimento hipotético,— frisou a palavra “hipotético” e, quando Kit começou a rir, o empurrou da cama abruptamente.

Ele apenas continuou a rir no chão, exausto das emoções da noite, mas contente com a forma que as coisas estavam indo. Precisava desse momento de descontração para aliviar os pensamentos constantes que ainda estava tentando suprimir. Esperaria chegar em casa para rever tudo de maneira mais racional.

Aproveitou que havia sido expulso da cama para se levantar e ligar a luz, o que machucou os seus olhos e o deixou desorientado por alguns segundos. A reclamação que vinha da cama informou que Jamie não havia apreciado o gesto, mas precisava encerrar a noite e colocar a cabeça no lugar e isso certamente não aconteceria na cama de Jameela.

— Nossa, você ta um lixo. Sério, lava seu rosto, está tipo, muito vermelho.

— Obrigado, Jameela, você também está belíssima com sua cara de choro.

O pior é que mesmo com os olhos inchados e nariz e boca tão vermelhos que era quase a cor do cabelo da irmã, continuava achando-a incrivelmente linda. Mais um sinal de que deveria se esconder no seu quarto imediatamente.

— Jamie, eu sei que a gente não conversou muito sobre você e sua sexualidade, mas saiba que eu estou aqui para te ouvir sempre, okay?

— Okay, Kit, vou manter isso em mente, – ela continuou deitada enquanto ele calçava os tênis, – já vai para casa?

— Sim, acho que eu preciso de um tempinho para processar as coisas, sabe?

— Eu entendo, de verdade, mas… A gente se vê amanhã?

Sorrindo para a amiga, apenas assentiu com a cabeça. Veriam-se amanhã e todos os dias até ela precisar embarcar para a sua nova vida, confissão desastrosa nenhuma iria mudar isso. Não estava estável o suficiente para continuar a conversa, então apenas sussurrou um “tchau, até amanhã” e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.

Respirou fundo, ainda no corredor, e desceu as escadas, pronto para sair da casa dos Potter sem alertar ninguém. Já que pretendia não falar com a família de Jamie, obviamente esbarrou em Albus enquanto tentava chegar à porta e, em seu cansaço e desorientação, quase caiu – teria caído de fato se o mais novo não o tivesse segurando e não era justo que ele fosse tão mais alto do que Kit, o que Ginny e Harry estavam dando para essas crianças?

— Kit, está tudo bem? – Seu rosto demonstrava preocupação e sua voz era mais grave do que lembrava, as mãos ainda estavam posicionadas no braço e cintura do outro, e toda a cena era apenas desconcertante.

— Sim, eu estou, eu só preciso ir para casa, – ficou esperando o garoto entender a dica e o soltar, mas aparentemente não havia sido claro o suficiente, – você poderia me dar licença, Al? Eu realmente preciso ir.

O garoto corou levemente, puxando para si as suas mãos de maneira tão abrupta que Kit quase perdeu o equilíbrio de novo. Com uma despedida gaguejada e desconfortável, saiu do caminho da porta, subindo as escadas rapidamente e o deixando confuso com a interação. Sem querer perder tempo tentando decifrar o que havia acontecido, só resolveu ir embora o mais rápido possível.

Quando chegou em casa foi direto para o seu quarto, sem conversar com os seus pais que estavam sentados na sala. Viu os olhares preocupados que lançaram em sua direção, mas não queria responder nenhuma pergunta no momento. Eles não iriam procurá-lo agora – uma das melhores coisas da residência dos Abbott-Longbottom era a regra implícita de respeitar a privacidade uns dos outros.

Jogou-se na cama sem conferir se as suas cortinas estavam fechadas, apenas assumindo que sim e que as de Jamie também estariam. Pensar nela era doloroso, logo após a conversa que tiveram, mais do que havia imaginado, levando em consideração a maturidade que demonstrara apenas minutos antes. Achava que saber que teria o coração partido o prepararia para o fato, mas estava errado. Nada o havia equipado para a dor que sentia.

Deixou as lágrimas que estava segurando caírem livremente, lavarem toda a angústia da noite, todo o peso que vinha carregando junto com os seus sentimentos. Sua paixão por Jamie não desapareceria magicamente, independente dela gostar de garotos ou não, mesmo sabendo agora que suas chances sempre foram nulas. Iria se permitir sentir tudo, sabendo que amanhã acordaria melhor e que tudo estava bem entre ele e sua melhor amiga.

Depois do que pareciam anos desabando em lágrimas, mas foram provavelmente só alguns minutos, resolveu ver suas mensagens, mesmo que seus olhos inchados não enxergassem a tela do celular corretamente. Viu que tinha algumas de Jamie, de Elena, e até mesmo de Al, provavelmente sobre o porquê estava parecendo um bicho saindo da casa dos Potter, mas resolveu abrir só as de Ananya. Não tinha energia para mais ninguém nesse momento.

[19:43, 02/08/2023] Queen : Você já está em casa??

[19:43, 02/08/2023] Queen : Já se declarou?????

[19:47, 02/08/2023] Queen : Imagino que não, pela ausência de respostas.

[19:48, 02/08/2023] Queen : Depois me conta como foi!

Ananya o encorajando como sempre, mesmo com ambos sabendo que a confissão de Kit estava fadada ao fracasso desde o começo. A amiga era tão tímida e fechada, era fácil esquecer a sua crença feroz na capacidade de todos em conquistarem o que desejavam, parecendo possível ou não.

Mesmo triste e com a cabeça pesada do choro e sono resolveu responder a Ana. Era verdade que Kit nunca tivera chance alguma no que diz respeito a Jamie, mas sabia agora que isso não era verdade para Ananya, e nada o deixaria mais contente nesse momento do que ver suas duas melhores amigas felizes.

 

[22:02, 02/08/2023] KitKat: só quem recebeu um fora hoje online

Eu sinto muito, Kit, de verdade.

Você está bem?

[22:11, 02/08/2023] KitKat: não era como se eu já não esperasse né kk

[22:11, 02/08/2023] KitKat: a gente sofre e chora no banho e etc

[22:12, 02/08/2023] KitKat: mas a gente supera

Kit...  

Cala a boca.

Você quer um abraço? Um milkshake?

[22:15, 02/08/2023] KitKat: um litro de vodka por favor

[22:16, 02/08/2023] KitKat: mentira, eu to bem juro

[22:16, 02/08/2023] KitKat: mas agora falando de coisa boa

[22:16, 02/08/2023] KitKat: eu acho que tu deveria se declarar ana

Primeiro: eu não sei do que você está falando...

Depois, você quer minha desgraça por que?

[22:20, 02/08/2023] KitKat: n sofrer sozinho é claro

[22:20, 02/08/2023] KitKat: bebida ta cara, a gente racha o litro

[22:20, 02/08/2023] KitKat: ah é, você não pode beber kk pena

Você é literalmente 5 meses mais velho que eu, Christopher.

Cala a boca.

(De novo)

[22:22, 02/08/2023] KitKat: agora sério, ana, tenta

[22:22, 02/08/2023] KitKat: a humilhação pode valer a pena

[22:23, 02/08/2023] KitKat: eu quase me sinto melhor depois de hoje

[22:23, 02/08/2023] KitKat: tipo quase

[22:23, 02/08/2023] KitKat: vai da certo tenho fé

Claro que vai dar certo, Kit, você é forte e corajoso.

Muito orgulho de você, Okay?

Enfim.

Jameela é hétero, não?

Para de tentar quebrar meu coração.

[22:34, 02/08/2023] KitKat: pergunta a ela você 

[22:34, 02/08/2023] KitKat: quebrar o coração? ta

[22:36, 02/08/2023] KitKat: pelo menos você admite que tem algo pra quebrar

[22:38, 02/08/2023] KitKat: ela vai em duas semanas, princesa

[22:39, 02/08/2023] KitKat: você n tem nada a perder :) 

[22:39, 02/08/2023] KitKat: eu confio no seu potencial

[22:41, 02/08/2023] KitKat: vamo ana

[22:44, 02/08/2023] KitKat: claro que você n precisa fazer nada que n queira 

[22:44, 02/08/2023] KitKat: mas assim

[22:45, 02/08/2023] KitKat: nada a perder

Nada além da minha dignidade.

A gente se fala amanhã, Kit.

Durma bem.

 

Ananya soltou o celular, determinada a ignorar o que provavelmente eram inúmeros pedidos de desculpa por “pressioná-la” e desejos de boa noite do amigo. Sentia-se culpada por cortar a conversa de maneira abrupta, levando em consideração que Kit provavelmente estava buscando distrações depois da rejeição que sofrera. Quando ambos estivessem em uma mentalidade melhor, pediria os detalhes e o consolaria como uma boa melhor amiga.

Mas a verdade era que estava cansada de falar dos supostos sentimentos que nutria. Estava exausta de conversar sobre Jamie, pensar em Jamie, sonhar com Jamie… Parecia que em nenhum momento a sua mente ficava a salvo dos ataques constantes de imagens da garota, qualquer coisa a fazia lembrar do cheiro floral de seu perfume, dos grandes olhos castanhos, dos pequenos sinais espalhados por sua clavícula e o topo de seus ombros – uma situação patética, sinceramente, e havia começado a afetar o seu humor, que já não era um dos melhores.

Não estava em negação sobre a profundidade de seu afeto, muito longe disso, apenas acreditava que se não desse tanta atenção uma hora ele desapareceria gradualmente. Ana se considerava uma pessoa prática e nutrir qualquer tipo de afeição de natureza romântica por Jameela Potter estava no topo da lista de maneiras mais rápidas de ter a sua vida revirada de maneira irreversível.

A garota era um furacão, levando tudo em seu caminho sem considerar as opiniões pessoais de quem era arrastado junto. Claro que acontecia de uma maneira tão natural que ninguém se questionava o porquê de estar se deixando levar, nem mesmo viam a atração magnética que Jamie exercia como algo negativo e a própria jamais teria intenções ruins para com os que a cercavam, mas isso não mudava o fato de ser imprevisível, constantemente em movimento, sempre em frente. Ana preferia a solidez de sua rotina, a confiança de que todos os dias seriam, se não os mesmos, parecidos o suficiente para que pudesse reduzir os danos.

Estar em um relacionamento também parecia algo sério demais e para o qual não tinha maturidade nem capacidade emocional de lidar. Ao contrário de suas irmãs, Ananya não gostava da ideia de namorar apenas pelo prazer de namorar, ir a encontros fúteis, trocar carinhos irrestritos com o único objetivo de se sentir bem consigo mesma. Sabia que sua visão de mundo era rígida, mas não conseguia apenas “aproveitar o momento”.

Não que julgasse Beatrice, Célia ou Deva. As trigêmeas eram responsáveis e estavam aproveitando a sua juventude da maneira que achavam adequado. Mesmo que não fosse da preferência de Ana, tentava o máximo possível acompanhar os namorados e namoradas, aconselhar as irmãs e estabelecer limites. Sua mãe, Lavender, costumava brincar que a filha mais velha parecia exercer mais autoridade que ela e Parvati juntas. Não sabia se ficava feliz ou triste com isso.

Poucas pessoas realmente se sentiam confortáveis com a forma que encarava a vida. Ana não era a mais simpática ou descontraída, preferia a companhia solitária de seus livros e cadernos de desenho, fingia escutar música nos fones de ouvido para não cumprimentar colegas de classe e ficava imensamente aliviada quando conseguia escapar dos jantares de família que suas mães insistiam em participar.

Kit era uma dessas pessoas e não poderia amar mais o melhor amigo se tentasse. Haviam formado um laço de amizade profundo ainda muito cedo – a madrinha de Ana, sua tia Padma, namorava a madrinha de Kit, Susan – mesmo tendo personalidades antagônicas, servindo de âncora e vela um para o outro. Jameela era outra, mas isso não era exclusivo de Ana: Jamie apenas parecia entender todo mundo instintivamente, oferecendo sua amizade como se fosse a coisa mais simples do universo e não como se seu suporte fosse algo precioso.

As duas garotas eram amigas, mesmo que não próximas como ambas eram com Kit. Conheceram-se no parquinho da vizinhança dos Longbottom, quando Ana fora passar o dia na casa de seu melhor – e, na época, único – amigo e ele a havia arrastado para brincarem com a “pessoa mais legal do mundo inteirinho”. Tinham apenas 7 anos e lembrava sentir ciúmes da devoção clara na voz de Kit, mas aí ela conheceu Jamie, com seus grandes olhos gentis e sorriso com um dente a menos.

Ananya não tinha nenhum amigo na escola, apenas colegas com quem desenhava e coloria em silêncio no intervalo, e correr pelo pátio nunca lhe parecera uma perspectiva agradável, o que a deixava ainda mais isolada. Apenas Kit, com sua energia interminável e paciência peculiar para uma criança, parecia estar disposto a convencê-la a sair para caçar insetos ou sentar para escutá-la recontar todos os livros que havia começado a ler.

Ser obrigada a dividir a atenção do seu amigo com outra pessoa não fora fácil durante os primeiros 5 minutos, até que se viu completamente envolvida na bolha de Jamie, e pegou-se correndo pelo parque com os outros dois, para a própria surpresa. No fim da tarde, enquanto caminhava para a casa de Kit segurando na mão de Tia Hannah, percebeu que poderia ter dois amigos. O sentimento da Ana de sete anos, ligeiramente deslumbrada pela facilidade de estar ao redor de Jamie, nunca sumiu completamente.

A primeira e última birra que Ananya fez em toda a sua vida foi para mudar de escola e ser transferida para onde Kit e Jamie estudavam. Suas mães estavam tão felizes com a perspectiva de estar fazendo amizades que não hesitaram por um segundo. Depois disso, correr no pátio se tornou uma atividade quase regular.

Havia se acostumado com a companhia da amiga durante os anos que se passaram. A relação que tinham era mais distante do que gostaria, principalmente com ambas crescendo e conhecendo novas pessoas, formando círculos e entrando em nichos particulares. Não eram confidentes uma da outra nem costumavam sair sozinhas, o mais próximo que chegavam eram as horas estudando no quarto de Jamie antes das provas ou quando decidiam lanchar sempre na mesma cafeteria depois dos treinos de vôlei.

Não acreditava estar apaixonada por ela desde que eram crianças nem havia acordado um dia e se dera conta dos seus sentimentos. Fora uma progressão de momentos, noites sofrendo em cima de livros de matemática, fins de tarde rindo sobre sucos de maracujá e bolos de chocolate, discussões sobre qual o melhor gênero de filme, reclamações de como ser a irmã mais velha era cansativo.

Sabia, porém, o momento exato em que olhara para a multitude de suas emoções confusas e dera-se conta de que estendiam-se para um território além do platônico. Fora durante uma partida simples, quando finalmente a pressão dos nomes Potter e Weasley convencera a escola a deixar Jamie jogar pelo time feminino, e ela estava tão eufórica que irradiava de seus poros.

Seu cabelo, na época tocando os ombros, estava saindo do rabo de cavalo que usava a cada salto, sua pele dourada brilhava com o suor causado pelo esforço físico, a blusa subia a cada ataque, mostrando os músculos bem trabalhados. Ela havia acabado de marcar um ponto e seu sorriso mostrava as covinhas delicadas de seu rosto. Nenhum livro de romance havia preparado Ananya para esse momento.

“Oh”, lembrava ter pensado, nesses breves segundos em que sentira o impacto da alegria da garota sobre si, “Oh", e o choque da informação era quase uma força física, a deixando desorientada, presa nesse pequeno detalhe. Ela estava apaixonada por Jamie. Ela, Ananya Patil-Brown, estava apaixonada por Jameela Adhara Potter. E não havia nada que pudesse fazer sobre isso.

Foi uma compreensão devastadora. Tinha apenas 15 anos e sua experiência com romance se resumia a livros, filmes e a vida amorosa trágica de Sarah Finnigan, sua amiga mais próxima, mas entendia implicitamente que pessoas como Jamie não ficavam com pessoas como Ana. Isso sem levar em consideração que a outra garota nunca havia demonstrado qualquer indício de ter atração por mulheres – ou por ninguém, se estivesse sendo justa.

Nesse jogo acabou machucando o pulso em um saque mal executado devido a sua distração e nem mesmo a vitória do time ajudou a melhorar o seu humor, que vinha declinando exponencialmente desde que se dera conta de que estava: a) apaixonada, b) apaixonada por alguém que nunca retribuiria seus sentimentos, e c) apaixonada por alguém que nunca retribuiria seus sentimentos e pela qual o seu melhor amigo também era apaixonado.

Sua atração física por Jamie era algo que já estava ciente, afinal Ana tinha olhos e um histórico de chorar por mulheres bonitas que poderiam facilmente fazer levantamento com ela. Não que fosse algo muito difícil considerando que mal chegava aos 1,60 e pesava o mesmo que um pacote de uvas, mas era o princípio da coisa. Jamie encaixava-se exatamente nesse padrão, com suas longas, longas pernas e ondas cor de chocolate repousando delicadamente sobre seus ombros.

Convivia bem com o fato de achar a amiga uma das pessoas mais bonitas que já havia colocado os olhos – e isso não havia mudado com os anos, Jamie apenas ficara mais bonita. Mas daí se apaixonar? Parecia uma piada de mal gosto. Provavelmente era uma paixonite momentânea que sumiria em um mês ou dois – três anos haviam se passado e Ana se via cada vez mais envolvida.

Havia se acostumado a estar apaixonada contra a sua vontade, esperando calmamente que um dia fosse acordar e se dar conta de que todos os seus sentimentos na verdade eram platônicos e o sofrimento que aguentara até esse momento fora apenas um equívoco, uma confusão que criara por não saber diferenciar o nível de atração que sentia por alguém que amava como amiga desde que eram crianças.

Mas a partida iminente de Jameela mexera com a rotina que havia criado de disfarçar seu afeto. A maior parte das pessoas que formavam o grupo de amigos de Ana - o mesmo de Kit e Jamie – havia decidido por faculdades ao redor de Londres, alguns poucos arriscando-se para regiões mais distantes do Reino Unido, mas isso não era o suficiente para a Potter, claro que não. Ela tinha que partir para o outro lado do Atlântico em uma busca desnecessária por distância da fama dos pais.

(Talvez quisesse se separar das memórias dolorosas que acompanharam a sua transição, todos os comentários maldosos, todas as violências por parte de uma comunidade que antes a acolhera sem questionamentos. Esse era um motivo muito melhor do que “sair da sombra de Harry e Ginny Potter” – como se Jamie, com sua personalidade solar, pudesse ser ofuscada. Mas Ananya nunca falaria nada, não procuraria por motivos sem necessidade, muito menos a indagaria sobre. Pretendia nunca se igualar aos muitos que haviam a machucado.)

Em duas semanas ficaria sem ver a garota por quem estava apaixonada há três anos. Seria privada de seus sorrisos radiantes, dos abraços calorosos, do riso soluçado que sempre a fazia gargalhar junto, da cabeça encostando em seu ombro após um treino cansativo. Não iriam mais tomar suco de maracujá na mesa que era praticamente delas nem discutiriam se Twice era melhor que Girls Generation.

Sabia que Jamie não desapareceria da sua vida, mas tudo ia mudar e não estava preparada para isso. Chamadas de voz ou vídeo jamais substituiriam a presença familiar da amiga, nada supriria a necessidade de apenas admirá-la respondendo às atividades da escola, com as rugas entre as sobrancelhas indicando que estava se esforçando para chegar a uma resposta correta a uma pergunta difícil.

Seu lado racional insistia que agora poderia superá-la com maior facilidade, já que não seria lembrada todos os dias da perfeição ambulante que era Jameela Potter, mas antes de tudo eram amigas e não sabia se era uma troca justa. Deixando seus sentimentos de lado, sentiria tanto a sua falta que havia começado a sofrer antes mesmo de Jamie entrar no avião.

E havia toda a situação com Kit que só servia para causar discórdia e conflitos bobos entre os dois. Não que fosse brigar com o melhor amigo por uma garota, mesmo que a garota em questão fosse Jameela, mas era difícil vê-lo a seguindo feito um patinho e não querer intervir, o que o deixava irritado com Ana, ou então ele insistia em falar sobre como Ana se sentia em relação a Jamie, o que preferia evitar a todo custo, o que a deixava desconfortável e fazia o amigo se sentir culpado.

Agora com a declaração fracassada teria que consolá-lo sem o deixar ainda mais triste ou ressentido, enquanto lidava com o fato de que seu coração seria partido de uma forma ou de outra, confissão de seus afetos ou não. A turma inteira de formandos poderia derramar uma torrente de palavras sentimentais para Jamie e nada disso a impediria de partir.

Em certo nível, ressentia a amiga por deixá-los assim, sem mais nem menos. Ananya era egoísta, sabia disso, e nunca havia falado nada que indicasse qualquer coisa desse tipo, mas como poderia simplesmente ir embora? Depois de uma vida inteira juntas, como poderia simplesmente entrar em um avião e partir?

Ignorava rapidamente qualquer pensamento do tipo. Incentivava todos os seus amigos a sempre buscarem o melhor para si, lutarem com unhas e dentes para conseguir os seus objetivos, persistirem mesmo se a situação parecesse impossível. Jameela estava apenas seguindo o caminho que havia trilhado para o seu sucesso e desejava tudo o de melhor na sua trajetória, mesmo que quisesse, em seu egoísmo, que para isso não a deixasse para trás.

Cansada de remoer suas aspirações egocêntricas e ainda se sentindo mal por estar ignorando Kit em um momento em que ele precisava de seu apoio e atenção, decidiu subitamente sair de casa. Estava sentindo-se sufocada por suas memórias e pensamentos indesejados – a mesa de canto onde costumava estudar com Jamie, a almofada verde-água que Jamie abraçava nas pausas de estudo, deitada na cama de Ana e tão linda em seu estado relaxado que evitava a olhar.

Mandando uma mensagem no grupo da família para avisar sobre os seus planos, pegou o moletom mais próximo e seguiu, quase involuntariamente, para o parquinho que ficava a duas ruas de distância da casa de Kit – e, consequentemente, da de Jameela. Tentou usar os 20 minutos de caminhada da sua casa para o local para tentar ignorar a quase onipresença de Jamie em seus pensamentos, com pouco sucesso.

As mensagens de Christopher insistindo para que confessasse seus sentimentos a deixaram confusa, já que acreditava firmemente na heterossexualidade da amiga. E não era como se tivesse observado profundamente as interações de Jamie com outras mulheres para identificar indícios de atração, porque isso soava ligeiramente obsessivo demais até para Ana, que costumava ser descrita como intensa — como um insulto, quase, ou uma brincadeira que não parecia tão engraçada na sua opinião.

Ananya apenas havia assumido, simples assim. E até as mensagens do amigo nunca pensara que estivesse errada. Esse era um dos inúmeros motivos pelos quais assumira que seus sentimentos jamais seriam retribuídos, o mais óbvio de todos: como poderia ter uma chance se as duas não jogavam no mesmo time? Sem contar com o fato de Jamie ser tão fora de sua liga que poderiam estar jogando esportes completamente diferentes.

Perdida nas suas reflexões, só percebeu que havia chegado no seu destino quando ouviu o ranger familiar do balanço velho que mal suportava o peso de uma criança. Espantou-se por alguém estar no parquinho a essa hora quando nem mesmo durante o dia costumava receber muitas visitas, mas quando conseguiu identificar a figura que tentava forçar seu corpo a caber no brinquedo infantil sua reação imediata foi rir de incredulidade – porque a outra alternativa era chorar.

Como poderia tirar Jamie de sua cabeça se o universo insistia em conspirar contra os seus desejos? Porque era quase meia noite e lá estava ela, sentada em um dos balanços enferrujados do parquinho infantil que ninguém frequentava, deslumbrante mesmo na luz amarelada do poste antigo, parecendo tão perdida em pensamentos quanto Ana. E em momentos assim entendia quando Kit falava que era impossível conhecer Jamie e não se apaixonar.

Considerou dar meia volta e apenas fingir que não tinha a visto, deitar em sua cama e passar horas pensando no que poderia ter dito e ignorar a garota até ela sair da Inglaterra. Seria fácil, jogaria seus sentimentos inúteis para debaixo do tapete, poderia diminuir o contato e afirmar que foi a distância, a rotina, o seu tempo de adaptação à faculdade. Doeria, bastante até, mas nada que fosse permanente. Ananya conseguiria viver consigo mesma caso escolhesse essa rota.

Mas Jamie estava ali, na sua frente, como um sinal de que talvez devesse ser mais sincera consigo mesma e com a outra. Havia evitado durante anos esse momento, com medo de perdê-la, de complicar uma amizade que valorizava por capricho. Porque Ana nunca quis um relacionamento, porque Jameela era sinônimo de confusão, de maneira positiva e negativa, e destruiria a vida regrada que levava involuntariamente. Porque em nenhum universo Ananya – de aparência básica, entediante, mais ocupada com seus desenhos do que interagindo com os amigos – conseguiria manter uma garota como Jamie ao seu lado.

Não tinha mais como se preocupar com a ideia de manter a amiga a seu lado, ela iria embora de toda forma. E, racionalmente, sabia que Jameela nunca prejudicaria a relação que tinham por algo como uma paixão não correspondida. Era um dos motivos pelo qual a amava, inclusive, e a principal razão porque insistira tanto que Kit se declarasse em primeiro lugar.

Ana poderia ir para casa, assistir um filme com as trigêmeas, fingir não notar os olhares preocupados, ligar para Christopher e pedir desculpas, omitindo o detalhe de ter saído de casa em primeiro lugar. Mesmo que ele soubesse que algo estava errado não a pressionaria por detalhes, receoso de estar a incomodando pela segunda vez na mesma noite, resoluto em sua decisão de sempre deixar que ela se abrisse voluntariamente.

O que fez foi andar silenciosamente até o balanço e sentar ao lado de Jamie, o seu peso fazendo o brinquedo ranger. A outra, ainda em seu silêncio contemplativo, apenas sorriu fracamente para Ana, parecendo incerta de como conduzir a interação. Era raro vê-la tão perdida, principalmente se tratando de uma situação social – Jameela parecia florescer quando cercada de pessoas, guiando os tópicos de conversa dos grupos de maneira praticada, deixando todos à vontade para expressarem suas opiniões, acolhendo os que estavam descolados, normalmente Ana e Sarah.

Preferiu continuar calada, apenas aproveitando a companhia da outra. O seu coração parecia pronto para escapar de seu peito, errático com a mera presença de Jamie. Ela provavelmente havia vindo ao parque para pensar sobre os acontecimentos da noite e Ananya não seria a pessoa a interrompê-la. Além disso, como uma pessoa propensa a silêncios, não estava desconfortável com a quietude – seu problema era quando exigiam que falasse.

— Imagino que você sabe sobre o que aconteceu mais cedo, – começou Jamie, curvada em seu balanço, olhando fixamente para as mãos, – você deve estar me odiando.

— Não em detalhes, mas sim, Kit me falou sobre… a sua rejeição, – respondeu no mesmo tom plácido, rindo um pouco com a ideia de que algum dia poderia odiá-la. Jamie era ridícula.

— “Rejeição”, ha! Soa tão estranho quando você coloca dessa maneira, – a outra riu, sem graça, ainda com o olhar distante, sem focar na pessoa que estava a seu lado, – mas foi o que aconteceu, não foi? Eu o rejeitei. Parece muito pior falando em voz alta.

As duas voltaram a ficar em silêncio, esse quebrado com o ranger leve dos balanços de metal a cada menor movimento. Imaginava que Jamie também deveria ter ficado triste por ter magoado o amigo, mesmo que fosse para o bem dos dois. Seria mais cruel alimentar os sentimentos de Kit com meias verdades, apenas para deixá-lo quando percebesse que não era o que queria. 

(Célia havia feito isso com o último namorado e fora repreendida pela combinação de suas irmãs – era quase sádico, machucar garotos de propósito apenas para preencher algum vazio, alimentar o próprio ego ou por pura diversão. A garota, com seus quase 17 anos, estava passando por uma fase não muito interessante para todos os envolvidos. Deva parecia a um dia ruim de colar chiclete no cabelo de sua gêmea – de novo.)

— Eu posso te fazer uma pergunta? E se você falar “você acabou de fazer”, eu juro por Deus, Jameela…

Balançou a cabeça, apontando um dedo de maneira ameaçadora para a amiga, que apenas riu das tentativas patéticas de Ana de humor. A risada de Jamie era tão engraçada quanto se lembrava, alta e aguda, interrompida por alguns soluços. Como de costume, os lábios de Ananya se curvaram a contragosto num sorriso, um pouco indignada consigo mesma por achar os sons desarmônicos tão encantadores.

Não sabia porque ambas estavam rindo tanto de comentários que não mereciam esse tratamento. Talvez fosse o horário ou a confusão emocional da noite, de tudo que havia acontecido com Kit. Talvez fosse a realidade que esses momentos confortáveis, de encontrar a garota que amava por coincidência, e sentir que tudo estava certo por alguns minutos.

— Você pode fazer as perguntas que quiser, Nya, – riu novamente da careta que Ananya fez com o uso desse apelido, que Jameela insistia desde que eram crianças mesmo com Ana o detestando, – eu apenas vou responder o que eu quiser.

— Acho que eu só queria saber porque você deu um fora em Kit.

— Bem, porque eu não o amava como ele me ama. Eu nunca poderia fazer isso com ele, nem com ninguém, – os olhos de Jamie voltaram para as suas mãos, que se contorciam em seu colo, um hábito nervoso que nunca havia conseguido quebrar, – e eu sou… Na verdade eu nem sei o que eu sou, – riu agora sem humor, a voz seca, as mãos mexendo mais freneticamente.

— Você é...?– Ana perguntou de maneira hesitante e se surpreendeu com o medo que encontrou nos olhos de Jameela quando ela finalmente a encarou.

— Como eu disse, eu não sei exatamente que rótulo colocar. Mas a verdade é que eu nunca poderia gostar de Kit como ele queria, – dando de ombros, Jamie pareceu finalmente relaxar o suficiente para o olhar amedrontado sumir de sua face, – eu apenas não gosto de homens. No caso, não dessa forma.

— Ah, eu não… Eu não sabia.

— Ninguém sabia, eu acho. Talvez a minha mãe, mas eu juro que aquela mulher sabe de tudo.

As duas voltaram a ficar em silêncio, ligeiramente desconfortáveis com o rumo da conversa. Ananya simplesmente não sabia o que falar, nem se tinha algo que deveria dizer para quebrar a quietude constrangedora. A sua maior desculpa para nunca ter falado sobre o que sentia era fundada em uma mentira, o que era desconcertante – não era mais uma lésbica emocionada chorando por uma menina hétero e sim uma lésbica emocionada chorando por, porssivelmente, outra sáfica.

— Você disse que não gosta de homens, mas... mulheres? Quer dizer, você gosta de garotas? – A pergunta saiu involuntariamente, sem a sua permissão. Ana sentiu o seu rosto corar e o escondeu com as mãos, envergonhada.

A risada de Jamie dessa vez era mais tímida, baixa, mas não menos adorável por isso. Sentiu as mãos fortes da garota nas suas, as tirando da posição anterior e as segurando firmemente. Reunindo toda a sua coragem, Ana a encarou constrangida e, Deus, deveria ser ilegal ser tão bonita. Não era justo, como poderia não amá-la quando ela a olhava com tanto carinho?

— Sim, Nya, eu gosto de garotas, – sorriu, algo delicado e discreto, apertou as mãos de Ananya mais uma vez, o seu sorriso aumentou. – Eu realmente, realmente gosto de mulheres.

A luz do poste era fraca, velha, uma raridade num bairro como o que estavam, mas conseguia distinguir todos os detalhes de Jameela, a pequena cicatriz em cima de seu olho esquerdo de uma queda do escorrega do mesmo parquinho que estavam, as leves sardas disfarçadas na pele escura, mas que conhecia depois de anos as admirando, as vendo aumentar no verão e desaparecerem levemente no inverno.

A sua boca parecia especialmente macia nesse momento, tão vermelha e convidativa, Ana estava hipnotizada. As covinhas suaves em suas bochechas a deixavam ainda mais amável, angelical de uma forma que destoava da forma como a via. O sorriso de Jamie era a sua visão favorita há mais anos do que preferia considerar, mas nunca quis tanto sentí-lo contra os seus lábios. E foi por isso que, de maneira atípica, decidiu ser impulsiva.

— Eu realmente, realmente gosto de você.

O som chocado que deixou a boca de Jameela a fez rir, um misto de nervosismo e arrependimento. Não tinha como voltar atrás, havia confessado em partes o que sentia e por mais que ainda pudesse deixar a conversa como estava ou simplesmente ignorar o assunto, percebeu que não havia mais nada a perder.

— Na verdade, eu acho que gostar não consegue descrever exatamente como eu me sinto. Eu te amo, Jamie, e não apenas como amiga. No caso, eu quero dizer que estou apaixonada por você, tipo, muito apaixonada, mas isso não está saindo da forma como eu gostaria, Deus, eu vou calar a boca.

Esse era o motivo de Ananya evitar abrir a boca: palavras eram difíceis e ela era um desastre ambulante, principalmente na frente de mulheres bonitas. A risada inesperada de Jamie apenas a fez querer morrer e lágrimas subitamente apareceram em seus olhos e hoje era um péssimo dia para descobrir que chorava quando envergonhada.

— Ana, ei, calma, eu não estou rindo de você! – O desespero leve na voz de Jameela seria engraçado se ela não estivesse a um minuto de um ataque.

— Não é o que parece, Jamie, você poderia apenas me dar um fora normal e não debochar dos meus sentimentos, – respondeu, cruzando os braços de maneira petulante e desviando os olhos do rosto perfeito da garota. Estava magoada e não iria pedir desculpas por suas reações.

— Você é muito fofa com raiva, sabia? – Não precisava estar a vendo para saber que estava sorrindo, o seu tom de voz a entregando.

— Jameela, não faz isso comigo, não agora, por favor.

Nunca pensara que a amiga fosse do tipo de brincar com os sentimentos alheios, mas aparentemente estava enganada. Talvez se ela soubesse disso antes não teria se apaixonado por ela e se submetido a essa situação degradante. Antes que pudesse se levantar e deixá-la sozinha com sua crueldade casual, sentiu uma mão calejada tocar o seu rosto, o virando para encarar Jamie, que estava séria. Um olhar de determinação passou pelo rosto da outra e antes que pudesse reagir, Ana sentiu lábios delicados tocando nos seus.

Fechou os olhos instintivamente, apreciando o encostar suave, afogando-se na sensação pelos segundos que duraram, imersa no calor que emanava do corpo de Jamie, nas mãos que acariciavam o seu rosto de maneira suave, no cheiro cítrico e floral reconfortante. Ao se separarem, piscou os olhos algumas vezes para o seu cérebro voltar a funcionar, ainda atordoada pela overdose de estímulos.

Focou mais uma vez em Jameela, tentando compreender o que havia acontecido, e não submergir no contentamento que emanava da outra em ondas.

— Eu gosto de você, Nya. Muito.

— Oh. Eu gosto de você também.

— Você já me disse isso.

— Ah.

Revirando os olhos, provavelmente exasperada com a incapacidade de Ananya de formar um pensamento coerente, Jamie apenas aproximou o rosto do seu, encostando a ponta do seu nariz no de Ana, uma carícia tímida e cuidadosa, perguntando em um sussurro se poderia beijá-la e apenas o fazendo após Ana confirmar.

O segundo foi ainda mais incerto que o primeiro, com toda a sua insegurança sobre a situação voltando com intensidade. Não sabia onde colocar as mãos, o que fazer com a boca, se deveria fechar ou abrir os olhos. Em poucos segundos Jamie pareceu entender o seu problema e se afastou sorrindo, mas confusa com a falta de reciprocidade da parte de Ananya. Temeu, por um momento, que ela iria ficar irritada com a sua inaptidão, mas Jameela não era assim – ou esperava que não fosse.

— Você vai ter que me ensinar o que fazer, okay? Porque eu não faço a menor ideia de como isso, – Ana apontou para as duas, indicando claramente que se referia a esse novo desenvolvimento, – vai acontecer e como funciona, bem, tudo.

— Tudo? O que quer dizer?

— Esse foi o meu primeiro beijo, Jameela.

A forma como os olhos dela se arregalaram em surpresa foi o suficiente para Ana começar a rir, a tensão que sentia evaporando aos poucos. Logo, ambas estavam rindo juntas, sentadas nos balanços do parquinho em que haviam se conhecido uma década atrás e que havia mudado a sua vida, de certa maneira.

— Uau, é só que você é, bem, você, e eu não esperava que esse fosse o seu primeiro beijo, – comentou Jamie, sorrindo para o olhar de confusão de Ana.

— Eu sou eu? Do que está falando?

— Nya, você é apenas tão… confiante, não sei. Do tipo que quando quer algo ou alguém não hesitaria em falar, por isso minha surpresa.

— Ah, – e agora Ana estava constrangida novamente, – você foi a única pessoa que eu quis, dessa maneira, eu digo. E até hoje eu achava que você era hetero, então eu nunca beijei ninguém. Não é como se muita gente tivesse se oferecido.

 E em certo ponto era verdade. Por mais que ao longo de sua adolescência tenha se atraído por inúmeras pessoas, fora só por Jamie que desenvolvera sentimentos românticos, algo além de um “ela é tão linda e provavelmente poderia destruir a minha vida”. Nunca sentiu necessidade de agir em relação ao interesse que sentia por colegas avulsas, mais preocupada com seus desenhos, livros e com o esporte do que experimentar com suas amigas ou beijar desconhecidos por diversão.

Jamie parecia insatisfeita com a sua resposta e voltou a ficar receosa de ser rejeitada por algo tão patético quanto nunca ter beijado. Recusava-se a se sentir mal por não estar pronta para relacionamentos sérios e intimidade física não era algo que costumava sair distribuindo sem pensar duas vezes. Ananya queria que, quando estivesse com alguém, fosse algo além de um momento divertido e que seria ignorado na manhã seguinte. Para alguém que dizia não gostar de romance, sabia que era uma romântica incurável – só os outros que não precisavam ter conhecimento dessa informação.

— Você vai mesmo me dar um fora porque eu sou bv? Isso é meio imaturo, Potter, eu esperava mais de você, – cruzou os braços novamente, se desvencilhando da outra garota, tentando disfarçar o seu desagrado com a reação que tivera.

— Ananya, você é completamente sem noção, porque eu te daria um fora? – E agora Jamie parecia irritada, mas como isso poderia ser culpa de Ana?

— Você não parece muito feliz comigo no momento, o que você queria que pensasse?

— Eu estou chateada com você achar que não tem uma legião de pessoas esperando um segundo de sua atenção, não por você nunca ter beijado, – respondeu revirando os olhos, – mas isso não importa, okay? Eu gosto de você, a menos que você me diga que matou alguém recentemente, não tem nada que me faria mudar de ideia.

— Nem mesmo o fato de você ir embora em duas semanas?

Quando as palavras escaparam da boca de Ananya, sabia que havia estragado o que que estivesse acontecendo. A cara de Jamie se contorceu, tristeza cobrindo as duas feições, e dessa vez foi ela quem desviou o olhar. Sentia-se um monstro por trazer o assunto à tona, mesmo que soubesse que seria discutido mais cedo ou mais tarde.

— Eu ir embora não muda os meus sentimentos, Nya. Eu queria que mudasse, porque eu não estou afim de sofrer por alguém a quilômetros de distância, mas a verdade é que eu vou continuar gostando de você e nada teria mudado isso.

Jameela estava séria, voltando a parecer contemplativa, perdida em pensamentos. Havia dito o que pensava e provavelmente estava certa, Ana também não deixaria de amá-la instantaneamente assim que a garota entrasse no avião, mas dizer que seus sentimentos não mudariam com o tempo era ridículo.

— Claro que você não vai abandonar o que sente em Londres, como se tivesse esquecido um livro, isso é estúpido até de contemplar, – respondeu, estendendo a mão até a de Jamie, entrelaçando os dedos, apertando firmemente, – mas eles podem mudar e está tudo bem. Não sei quando vamos nos ver novamente e eu não tenho interesse algum em manter um relacionamento a distância, mas eu não vou pedir para que fique, não por mim. Eu jamais faria algo assim com você.

— E você também não vai me esperar, – confirmou com finalidade, apertando a mão de Ana.

— Eu não vou. Eu também não posso fazer isso comigo.

Ficaram em silêncio, de mãos dadas, apenas respirando o ar frio da noite. Não sabia por quanto tempo ficaram assim, aproveitando a companhia uma da outra. Ananya revirava a conversa em sua mente, tentando entender como chegaram a esse ponto sem sucesso.

— Quer saber de uma coisa? – Jamie exclamou de repente, a assustando, – eu não vou para Maryland agora, só daqui a alguns dias e eu pretendo aproveitar cada um deles, okay?

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer que pode não ser bom ou perfeito, mas eu estou aqui agora e eu gosto de você e eu não quero ficar lamentando por não ter aproveitado o tempo que me restava ao seu lado, – agora estava segurando ambas as mãos de Ana, o olhar determinado a deixando ainda mais encantadora. – Eu quero você, Ananya, e se você estiver disposta, pretendo ser a melhor namorada do universo durante essas duas semanas.

— Mas isso só não vai tornar a sua partida mais dolorosa?

— Talvez? Provavelmente sim. Mas meu coração vai ser quebrado de todo jeito, pelo menos assim eu terei lembranças agradáveis para poder chorar sobre.

Rindo incrédula, pensou por alguns segundos na sua proposta. Era verdade que sofreria independentemente do que escolhesse, e a vendo em sua frente, deslumbrante e animada e mais radiante que o sol, era impossível dizer não. Em vez de responder verbalmente, encostou os lábios nos de Jamie, sentindo-a sorrir contra a sua boca da forma como havia imaginado tantas vezes antes.

O terceiro beijo foi muito melhor do que o segundo, a energia de Jameela renovada, seus toques mais precisos e carinhosos, guiando Ananya de maneira exemplar. Ser tocada por ela a fazia se sentir especial, bonita, merecedora de uma mulher como a Potter. Com sua pele pálida e cabelo loiro acinzentado, sempre fora básica, obscurecida por belezas como a de Jamie ou das próprias irmãs mais novas, mas ali, nos braços da garota que amava, parecia ser a mulher mais estonteante do universo.

Separaram-se ofegantes e Ananya riu pelo que parecia ser a centésima vez desde que chegara no parquinho, frenética de uma maneira não habitual, animada com a mera presença de Jamie, convicta na sua decisão de estar com a garota. Teria que reorganizar toda a rotina das suas últimas semanas de férias para encontrar com a garota em qualquer momento que fosse possível e que a outra desejasse, mas até a quebra no seu cotidiano, algo que a deixava sempre irritada, parecia ser algo positivo.

— Então você quer ser minha namorada por duas semanas? – Jamie perguntou, o que soava estranho, mas não havia nada que gostaria mais do que isso no momento.

— Eu aceito ser a sua namorada temporária, – respondeu sorrindo, mas ainda pensativa. – E depois?

— Depois a gente se ajeita. Eu vou, mas eu volto, daqui a alguns meses, permanentemente daqui a alguns anos. E se você estiver errada e nada mudar, nós podemos tentar, se quiser.

— E se eu estiver certa e tudo mudar? – Provocou, ainda sorrindo, ainda feliz com a oportunidade de esmagar o próprio coração de maneira dolorosa.

— Se você estiver certa, bem, eu espero ser convidada para o seu casamento, – deu de ombros, revirando os olhos para a risada de Ana, – e prometo fazer um discurso sobre como eu quase fui a noiva.

— Jameela!

Passaram o que poderiam ser minutos ou horas nos balanços, conversando, mãos entrelaçadas, trocando carinhos delicados. Despediram-se com um beijo longo que logo se transformou em vários e Ana voltou para casa em transe, sem se preocupar que estava andando sozinha de madrugada por ruas escuras, como se sua felicidade a tornasse invencível.

Ao chegar em casa correu para o seu quarto e se jogou na cama, mandando uma mensagem para Jamie para avisar que estava bem e segura, logo em seguida gritando no travesseiro quando recebeu um “boa noite, amor” como uma adolescente em filmes de romance.

Quando finalmente se acalmou, sabia que faltava apenas uma coisa: informar Kit dos acontecimentos da noite e esperar que ele não a odiasse. Olhou a hora e viu que já passava das duas da manhã, então ele provavelmente já estaria dormindo, mas decidiu mandar uma mensagem mesmo assim. Abriu a conversa e seu coração se aqueceu com o carinho que sentia por seu melhor amigo.

 

[23:12, 02/08/2023] KitKat: princesa, eu espero de verdade que você não tenha ficado brava comigo, eu só quero que você seja feliz, é tudo o que quero, sério, e se não contar a jamie é o que você quer, eu te apoio sempre sempre sempre, perdão se eu te deixei desconfortável, ta?

[23:12, 02/08/2023] KitKat: boa noite, Ana,  te amo muito muito muito

Christopher, eu te amo.

Você não me deixou desconfortável.

E você estava certo.

Eu me declarei e eu estou feliz, realmente.

 

Nem mesmo cinco minutos se passaram quando seu celular começou a tocar, a imagem de Kit brilhando na tela, e Ana havia sorrido tanto nessa noite que sua mandíbula estava dolorida, mas não conseguia evitar. A madrugada seria longa, conversando com o melhor amigo e recontando cada pequeno detalhe do que havia acontecido no parquinho, porém, como havia dito ao amigo, estava feliz. Genuinamente feliz.

Essas seriam as melhores duas semanas da sua vida e, pela primeira vez na vida, desejou estar errada. Se um dia fosse convidar Jameela para o seu casamento, esperava que fosse como noiva.

 


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Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam? Aceito comentários, críticas (construtivas) e sugestões!

Muito obrigada por lerem a fic, Jamie é minha filha e eu tinha que dividir ela com o mundo.

Até a próxima!