Indomável escrita por Helen


Capítulo 1
Mulher lobisomem.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/802618/chapter/1

"Lobisomem".

O que te vem à cabeça quando eu digo esse nome? Um lobo antropomórfico com dentes afiados, sangue escorrendo pelo pescoço, uivando para uma enorme lua cheia de fundo? Ou um cara alto, bombado e moreno que fica brigando com um vampiro por uma garota sem sal?

Pois acho melhor ir abrindo espaço pra uma nova imagem. A de uma mulher. Uma mulher lobisomem. Já tava na hora de alguém contar a minha história.

 

Sou a mais nova de oito irmãs. Dizem que daí é que veio a maldição. Mas eu não me importo muito com isso. Não é como se caso uma delas morrer eu voltasse a ser normal.

Todas nascemos no interior, como você pode imaginar. Meus pais não tinham muito o que fazer, e fizeram todas nós. Eu era a mais bonita, mas todos tinham medo de mim por causa da lenda. Meus pais me trancavam em casa em noites de lua cheia quando eu era criança. Mas a verdade é que só fui me transformar pela primeira vez aos doze anos. Lembro até hoje.

Era um dia de festa. Um luau.

Meus pais já tinham se convencido de que a lenda do lobisomem era apenas boato, e tinham deixado eu sair pela primeira vez. Eu tinha me arrumado toda e estava radiante. Cheguei na festa bem cedo, no pôr do sol, e aproveitei enquanto pude. Quando a lua surgiu, eu comecei a passar mal. Corri de volta para casa, só para me ver com os braços peludos. Aquilo não era puberdade, definitivamente não era.

Eles me trancaram de novo. Eu estava morrendo de medo. Minhas unhas ficaram grandes, senti meus dentes arranhando meus lábios. De repente, eu era um animal. Tinha um olfato diferente, um olhar diferente. O mundo era outro. Completamente distinto.

Eu estava confusa. Arranhava os poucos móveis daquela sala projetada especialmente para me prender. Sentia vontade de sair. De correr. De caçar alguma coisa. Eu estava com fome. Estressada. Eu era um animal selvagem para estar presa? Eu era a filha deles! Por que me tratavam com tanta maldade?

A porta era resistente, e eu me cansei tentando destruí-la durante a noite. Nem notei que tinha dormido. Na manhã seguinte, eu era apenas músculos doídos, pelos e sono. Meus pais estavam assustados. Quer dizer, todo mundo na cidade estava assustado. Eu era realmente uma lobisomem. E ninguém queria mais se aproximar de mim. Ou das minhas irmãs, ou dos meus pais, ou da minha casa. Todos se afastaram de nós. E todos, numa cidadezinha do interior, significava muita coisa.

Eu via minhas irmãs lamentando perderem namorados e meus pais sendo ignorados pelas pessoas enquanto passavam. Aquilo me deu raiva. Na outra lua cheia, fiz questão de sair de casa. Desapareci durante a tarde. Meus pais e as pessoas da cidade entraram em pânico. Eu uivei dentro da mata e todos ouviram. Aquela noite era minha. E ninguém ia me destratar daquele jeito de novo.

Fiz um estrago naquela cidade. De manhã eram animais mortos, portas arranhadas, telhados furados. Ninguém tinha dormido durante a madrugada. Achei que eles me deixariam em paz, mas eu estava muito enganada.

Logo quando me encontraram, as pessoas me agarraram e mandaram me prender. Diziam que iam me sacrificar. Que eu era um monstro que devia ser eliminado. E eu fui presa na delegacia da cidade vizinha. Os policiais ainda não acreditavam na história do lobisomem, então acharam que era só um mal entendido. Debateram com os meus antigos vizinhos por dias. "Mata ou não mata?". Os policiais me soltaram, mas eu não quis voltar pra casa. Aproveitando a liberdade, fiz algo que sempre tinha tido vontade na adolescência: conhecer a cidade grande.

Eu tive que ir a pé. Andei pela estrada e um caminhoneiro resolveu me dar carona. Ele pensou que eu fosse uma prostituta e ficou com a mão na minha perna a viagem inteira. Eu não sabia nada sobre essas coisas, então eu não desconfiei. Achei que era algo normal. Somente quando ele parou o caminhão num lugar escuro e escondido que eu notei as intenções dele. E por muito pouco, muito pouco mesmo, eu consegui escapar abrindo a porta do caminhão. Mas eu caí com tudo por cima do meu braço. Tive que correr com a dor, mesmo sem ter ideia de onde ir. E naquela noite, eu achei abrigo no lugar mais improvável de todos: uma casa noturna.

Eu consegui me esgueirar pela porta dos fundos, e acabei me escondendo nos bastidores. Procurei um lugar e descansei ali. Umas das dançarinas me achou e foi quando começou uma grande discussão se eu deveria ficar ou não. Algumas diziam que não era lugar pra criança, outras diziam que eu não parecia ter lugar pra ficar. E foi assim por pouco tempo, até que surgiu uma senhora que começou a falar comigo. Expliquei parte da minha situação (não disse sobre eu ser uma lobisomem) e ela teve pena de mim. Disse que eu poderia ficar com ela. E desde então, ela se tornou a minha mãe.

Não demorou muito até a próxima lua cheia aparecer. Eu desapareci novamente, me escondendo entre os becos da cidade. Eu tinha medo de esbarrar com gente perigosa, mas todos eles fugiam quando me encontravam, o que era bom. O único problema era, na manhã seguinte, ter que depilar minhas pernas todas de novo, porque minha mãe dizia que era coisa de gente civilizada.

Foram alguns anos assim, eu conseguindo esconder minha maldição com certa facilidade. Pensei que nunca mais ia ter que me preocupar com isso, até que minha mãe me ofereceu um emprego na casa noturna. Eu teria que estar lá todos os dias, de noite. Primeiro eu pensei em recusar, mas eu não tinha estudo e os outros trabalhos que apareciam não pareciam muito promissores. Até trabalhei como caixa, mas os clientes estranhavam quando eu me coçava demais por causa das pulgas. Tentei outros empregos, mas em todos eles as pessoas tinham algo para apontar em mim. Acabei aceitando trabalhar como garçonete, mas pedia minhas folgas sempre nos dias de lua cheia. Ninguém reparava nisso, no entanto, o que para mim era maravilhoso.

Infelizmente, um dos meus aniversários caiu numa lua cheia. Minha mãe tinha feito uma festa surpresa para mim, e acabou me flagrando enquanto eu me transformava. Pensei que ela ia me expulsar, mas ela apenas desmaiou. Não pude deixá-la caída no chão, então a pus na minha cama e desapareci na noite. De manhã, eu estava de volta, e ela comentou o ocorrido. Eu tentei disfarçar, mas quanto mais ela juntava os pontos, mais a minha maldição ficava visível. Pensei que ela ia querer me matar também, ou me entregar para a polícia, mas ela não fez isso. Disse pra mim que iria fazer o melhor pra me ajudar. Eu perguntei o porquê, e ela disse palavras que nunca vou esquecer: "Você poderia ter me matado, mas não quis. Me colocou na própria cama e fugiu. Você pode ser uma lobisomem, Morgana, mas você tem um coração bom". Nunca pensei que fosse ouvir algo assim. Depois de tudo o que a vida tinha me feito de mal, ela estava começando a parecer mais brilhante.

Com o tempo e o trabalho, fui gostando cada vez mais de ver as dançarinas. Eu gostava do jeito sensual que elas balançavam o cabelo, dos movimentos dos quadris e de como conseguiam hipnotizar a todos com as pernas. Queria fazer algo assim. Minha mãe me pagou aulas e eu acabei entrando pras dançarinas.

Luzes vermelhas, rosas e amarelas. Sexyback do Justin Timberlake no fundo. É nesse momento em que eu brilho. Homens hipnotizados pelos movimentos das minhas pernas, meu cabelo cacheado esvoaçando, os quadris soltos. É como se o mundo me desejasse. Como se finalmente me aceitasse.

Você acharia estranho uma lobisomem ser dançarina de uma casa noturna? Talvez. Mas não estou aqui pra ser aquilo que você deseja de mim. Afinal, quando a noite cai e a lua cheia se levanta, eu me torno indomável.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Indomável" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.