invencibilidade escrita por saturn


Capítulo 1
soldado, poeta, príncipe




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1.

No Tártaro, onde as linhas entre bem e mal, moralidade e necessidade de sobrevivência se embaçavam, Percy não pela primeira vez questiona sua fé nos deuses.

Antes de se descobrir semideus, antes de todo aquele show de merda que sua já complicada vida se tornou, ele não era exatamente o cara de maior fé por ai. Não costumava acreditar em forças superiores, onipresentes, onipotentes, oniscientes e onibenevolentes, e mesmo após todos aqueles anos, ele ainda não sabe se acredita. Logicamente, ele não era nenhum descrente. Ele acreditava na habilidade de seu corpo de ser sua maior arma, em Annabeth, em seus amigos, em sua mãe, nas leis que regiam o universo de uma maneira que nem mesmo um deus poderia quebrar. Ele só não sabia se acreditava na divindade.

A eternidade lhe parecia, para tudo o que valia a pena mencionar, o mesmo que desistir de viver. Ele supõe que, quando se vive tempo o suficiente para ver impérios surgirem e civilizações inteiras desaparecerem, você meio que perde a capacidade de conexão com a realidade. Com o tempo tudo se torna supérfluo e corriqueiro. Não te atinge, não verdadeiramente. E quando o faz, dói. Então você se distancia até que se torne incapaz de compreender. Ele acha que deve ser mais fácil assim.

Deuses não são seres inteiros. Eles são ecos das percepções de outros sobre eles e das partes mais vivas de seus domínios, para sempre presos em apenas uma maneira de ser, sem grande capacidade de mudar. São seres imutáveis, gravados em pedras, poetas e vadios, eternamente em uma meia existência, escravos de suas próprias inseguranças. Ele não quer isso para si.

Ele luta. Ele vence. Ele quase se torna um dos monstros contra os quais costuma lutar. Ele escapa do inferno com sua alma – parcialmente – inteira.

(Ele aprende a ser um pouco menos misericordioso)

 

 

2.

Quando ele tinha doze anos e a vida era um pouco mais preto no branco, ele costumava ser um grande fã de histórias de super-heróis.

Algo sobre as aventuras de Aquaman (ele só entende a ironia mais tarde), Homem-Aranha e o Arqueiro Verde lhe chamavam. Havia dentro de si aquela chama que rugia pelo prazer de uma aventura, aquela vontade de entender como era a glória de vencer uma batalha, a fascinação pelos movimentos incríveis e os discursos inspiradores.

Aos dezesseis, com mais cicatrizes do que a maioria de seus colegas de escola, ele se senta em uma aula de história viking e se pergunta se alguma daquelas crianças já viu um amigo morrer bem na sua frente. É uma pergunta idiota, afinal aquele é o lado mais sombrio do Brooklyn e todos ali têm uma história ou duas para contar sobre violência policial e negligência pedagoga, então é claro que sim. Mas há uma distância entre suas lutas e as lutas dele que o deixam enojado.

Ele cresceu pobre e latino em um lugar que foi ensinado a odiar cada pedacinho dele com uma paixão ardente, ele entende uma coisa ou duas sobre injustiça e ódio ao sistema antes mesmo de descobrir que sua professora de álgebra é um dos monstros de seus livros de história. Ele não entende Luke na época, muito preso em sua concepção de que ‘é ruim agora, mas costumava ser pior, então é melhor me contentar com o que tempo’ para chegar a algum tipo de meio termo entre negar o pior, mas não se deixar ser vítima do ruim, mas alguns anos depois ele é mais velho, mais cansado e mais cicatrizado para entender de onde vem a raiva e necessidade de revolução.

No entanto, ele não quer deixar que isso o consuma. Tentar mudar os deuses e seu modo milenar, negligente e arrogante de governar é como dar socos em ponta de adagas. E mesmo que os outros campistas o olhem com reverencia e sussurrem coisas como ‘matador de deuses’, ‘destruidor de titãs’ e ‘levantador de céus’, ele não se sente nada disso. Ele se sente exausto.

Percy deixa a revolução para as próximas gerações, por mais egoísta que soe. É que embora ele possa, havia muito tempo desde que ele deixou de querer ser um herói.

(Ele ainda luta para que crianças não precisem o fazer em seu lugar)

 

 

3.

O reino de seu pai é estranhamente bonito e assustador.

As profundezas abissais são um mistério para a humanidade, e embora ele saiba que não precisa ser o mesmo para ele, é meio difícil aceitar que o oceano não vai tentar engoli-lo caso ele se aproxime demais. Então ele faz o que costuma fazer de melhor e mantém distância.

Talvez em seus anos mais jovens, quando ele ainda estava desesperado por algum tipo de amor paternal e aprovação familiar, a frieza e a indiferença vinda de seus parentes marinhos o magoassem. Agora ele se sente principalmente irritado. Com sua recusa em ver que ele não queria nada disso, com sua incapacidade de mudar, com sua distância da realidade. Mas ele é mais paciente com os anos e aprende a não se importar.

Os jantares são quase que insuportáveis. Se o tempo no Olimpo é quase que ignorável, o de Atlântida é inexistente. Há guerras sendo travadas há milênios, as resoluções se arrastando em conselhos e tentativas de unificação e paz, e apenas nos dois primeiros banquetes nos quais é obrigado a participar ele descobre cinco maneiras como poderia resolver toda aquela merda. Os nobres, servos e súditos o reverenciam com quase apatia, tudo neles – o ouro, as pérolas, a beleza – parece apático e imutável. Cada tentativa de seu pai de fazê-lo aceitar a imortalidade o enche de um horror afobado que o leva direto a ataques de pânico silenciosos e imperceptíveis. Ele não pode viver assim, não pode trocar sua alma e seu descanso eterno por uma meia-existência.

Annabeth entende, sua mãe entende, os outros deuses não. Mas ele não se importa, porque não há nada nem ninguém que o convença que aquela meia vida é algo desejável. Ele preferia sua mortalidade segura e findável, muito obrigado.

(Ainda sim, naqueles poucos momentos onde ele se permite tocar o mais fundo do mar, ele se senta na areia fina e se pergunta como seria caso ele pudesse ser para sempre uma parte do oceano – estóica e apática)

(Ele decide muito rapidamente que nunca vai querer descobrir)

 

 

4.

Clarisse é feroz, Piper é resiliente, Nico é teimoso, Jason é um líder, Thalia é forte, Frank é gentil, Hazel é compreensiva, Leo é inovador, Annabeth é pragmática e Luke era um revolucionário. Percy os ama com cada fibra de seu ser, agarra-se as partes deles que o lembram de si mesmo e ao mesmo tempo são incrivelmente diferentes e decide que não precisa deixar isso o comer vivo.

Rachel diz que sua parte favorita dos mitos gregos costumava ser a dualidade dos deuses – nem bons nem ruins, inerentemente humanos -, mas ele pensava que eles eram nada mais nada menos do que um reflexo da humanidade, uma paródia. Não havia muito de humano neles além da aparência e ele tinha medo das vezes em que essa característica se manifestava em si.

Muitos pareciam ignorar o que implicava ser metade deus, mas ele gostava de pensar que era vivido o suficiente para entender que nunca se dá para escapar de sua natureza, não verdadeiramente. Ele não é invencível, embora às vezes pareça que sim. Essa é sua parte favorita de ser meio-mortal, o saber de que há algo lá fora que pode chutar sua bunda e o transformar em polpa (convenhamos, esse alguém é provavelmente Annie). O ajuda a manter a mente calma e o ego controlado.

Sentado sob as estrelas, ele pensa em Bob e em Calipso. Em Silena que foi uma heroína, em Luke que de sua forma distorcida e cruel, só queria ser amado. Ele não odeia os deuses, ele acha que sente pena deles. Percy não conseguia se imaginar sendo incapaz de sentir inteiramente e não pela primeira vez se vê grato por sua efemeridade. Quem sabe o que ele poderia se tornar se fosse Perseus, o Deus, e não apenas Percy, o instrutor de esgrima.

(Ele é metade homem, metade deus e os dois sente medo do tipo de força que ele se tornou)

(Perseu Jackson era feito de luz das estrelas, cicatrizes e profundezas abissais e é feliz por ser mortal, finito e sensível)


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Notas finais do capítulo

Era para ser uma espécie de estudo de personagem sobre o desenvolvimento do personagem do Percy sob uma perspectiva mais poética e autoindulgente. Se tonou uma ainda autoindulgente divagação sobre as nuances da divindade vistas sob o olhar de alguém que é meio-deus/meio-exausto e eu tenho que admitir, eu gostei de escrever.



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