Tênue escrita por Nena Machado


Capítulo 1
Tênue




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Qualquer um que visse os dois homens parados de frente um para o outro na travessa imunda e mal iluminada poderia afirmar que eram totais desconhecidos. Ninguém ali reconheceria que os dois na verdade cresceram juntos correndo na mesma casa, o mais alto possuía os longos cabelos cacheados estrategicamente arrumados na desordem e era possível ver uma camisa suja de tinta por baixo da longa capa verde musgo. Ele possuía uma postura desleixada de quem sabe que não precisa fingir complacência por ninguém ali, mas as mãos no bolso apertavam firmemente a varinha enquanto encarava o mais baixo. O cabelo deste era curto o suficiente para não se saber se era liso ou cacheado, além de estar perfeitamente penteado para trás com algo brilhoso que parecia deixar cada fio no lugar, as roupas provavelmente custavam o suficiente para alimentar uma família de cinco pessoas durante um mês, além do grosso anel de ouro que acompanhava a família há gerações, sua postura era ereta, um tanto rígida, imponente o suficiente para nenhum ladrão mequetrefe se meter a besta, ele possuía as mãos a vista, nenhum pouco apressado em encontrar a varinha.

Não, ninguém que visse aqueles dois homens no mesmo lugar imaginaria que na verdade eles eram irmãos, ninguém imaginaria as histórias que eles compartilhavam juntos e os caminhos que trilharam separados.

— Intrigante lhe encontrar na Travessa do Tranco, irmão. – falou o mais baixo. – Imaginei que tinha deixado a criminalidade de lado agora que não tem mais a credibilidade dos Black's para livrar-lhe dos problemas.

— Tenho certeza que você não está mais surpreso que eu, Regulus – responde simplesmente, com um sorrisinho debochado. – Não deveria, sei lá, estar velando o corpo de nossa mãe?

O rosto de Regulus continuou neutro, completamente indiferente ao fato da mãe ter supostamente morrido recentemente.

— E aí, a velha se deu mal como? Alguma missão para Voldemort? – debochou ele balançando os cabelos. - Ou alguém finalmente deu àquela mulher o que ela merecia?

— Mamãe está desaparecida, isso está acontecendo muito em meio à guerra, torcemos para que ela seja encontrada logo. – A fala foi mecânica, uma resposta padrão seguido de um suspiro. – Vai embora, Sirius, aqui não é mais o seu lugar.

— Tenho coisas para fazer, Reg.

— Sei bem quais coisas são essas, suas missãozinhas humanitárias, apagando fogos e coletando corpos por aí, vocês estão perdendo tempo, não têm o verdadeiro foco, nem sabem o que deveriam procurar. – Sirius ficou em silêncio, sem forças o suficiente para tentar defender os seus ideais, os últimos meses estavam difíceis, e ele não pode negar que realmente encontraram muitos corpos. – Eu tenho uma obrigação de verdade, vai embora antes que eu comece a falar mais alto.

Às vezes, quando Regulus fala com ele assim, de forma tão absurdamente igual aos pais, Sirius tentava se lembrar da criança que ele acalentava, da criança que se assustava com ratos e trovões. Ele não conseguia mais, só notou que começou a pressionar as unhas na palma das mãos quando sentiu a fisgada de dor, isso era bom, a dor o manteria calmo.

Sirius encarou o braço esquerdo do irmão por algum tempo, quase como se pudesse ver através da manga da capa preta a marca queimada na pele, olhou uma última vez o irmão nos olhos.

— Espero não lhe encontrar de novo. – disse ele simplesmente. – Não quero ser aquele a te matar.

E sem mais, virou as costas e foi embora, deixando Regulus para trás mais uma vez, sem ver o irmão puxar uma mecha de cabelo da nuca.

Exatamente como a criança que um dia ele fora.

X-X

A memória mais antiga de Sirius era de quando ele tinha dois anos. Ele lembrava de ir na ponta dos pés até o quarto ao lado do seu e encarar o bebê rosado através das grades do berço. Ele lembrava de pensar que poderia terminar aquilo ali, que o bebê era fraco e incapaz e talvez nem notassem a falta dele de tão inútil. Porém os gritos recomeçaram, o fazendo pensar que talvez fosse bom ter alguém para dividir a fúria e a solidão.

Alguma coisa quebrou no andar de baixo, Sirius nunca sabia dizer se o problema da vez era a mãe ou o pai, mas era pior quando era os dois. Ele olhou para o bebê, dormindo tranquilamente, pois nos curtos dois meses de vida já se acostumara aos barulhos perturbadores das brigas em casa. Ele colocou um pequeno baú na frente do berço, subindo nele para se inclinar até o irmão.

O bebê era um pouco mais pesado do que ele imaginava, mas ele conseguiu se equilibrar, levando o pequeno embrulho com ele para seu quarto.

— Você pode ficar aqui comigo hoje. - disse com a vozinha infantil contrapondo as ferozes dos pais. – Aqui eu posso te proteger, Reg.

Eles podiam encarar isso juntos.

X-X

Era fácil esquecer os problemas quando eles tinham aqueles dias de paz, os dias em que a mãe lia para eles na hora de dormir e que o pai os ensinava a voar nas vassouras infantis. Esses dias aconteciam de tempos em tempos, talvez fosse algo que acontecesse e deixasse os adultos mais felizes, propensos a beijinhos e cafunés na cabeça. Era fácil se enganar que eles seriam assim para sempre, que continuariam amorosos, mas normalmente esses dias eram só a calmaria antes da tempestade.

Eles tiveram duas semanas de paz no início daquele verão, mais dias do que qualquer outra vez antes, e em algum momento os meninos apenas pararam de apreciar a paz e passaram a ficar apenas apreensivos. E então a tempestade chegou.

Todo ano, no fim do verão, a família Black se reúne, com alguns convidados com parentescos próximos. Um grande jantar para mostrar a grandiosidade dos Black’s, e todo ano, tradicionalmente, as crianças de 11 a 17 anos faziam uma apresentação no piano.

— Já é um ano inteiro de aulas e você ainda não consegue tocar O Cravo Bem Temperado de uma forma digna! Como vai se apresentar dessa forma?! Vai envergonhar todos nós! – A mãe falava ríspida enquanto arrastava Sirius pelos braços até o banquinho na prende do instrumento. - Não vai ter comida, nem água até aprender essa música ridícula. Ouvi dizer que Belatrix vai tocar Beethoven novamente, todo ano é isso, desde sua primeira apresentação e todo ano é mais lindo do que no ano anterior.

Sirius teve vontade de dizer que nenhuma criança normal tocaria tão bem aos 11 anos, mas ele sabia que isso só resultaria em um tapa bem acertado, e ele podia ver o pequeno Regulus na porta espiando enquanto fugia das aulas de francês. Nenhum pai que prezasse pelo bem-estar dos filhos faria uma criança tocar piano por 12 horas sem parar.

Seus dedos estavam rígidos, as unhas doloridas, e seu estômago roncava tanto que, quando Regulus apareceu na sala tirando biscoitos que escondera nos bolsos quando pediu para beber água, Sirius os engoliu sem se preocupar em tirar os fiapos de roupa antes. Ele não gostava de ficar com fome.

— Isso é estupido! – reclamou o mais velho, mais revoltado do que o normal. – Uma tradição ridícula para um jantar ridículo.

— Você está nervoso, é seu primeiro ano, ninguém espera que seja perfeito. – Regulus respondeu, mesmo que ambos soubessem que os pais esperavam sim a perfeição e que custaria alguns hematomas caso não fosse. – São tradições Sirius, precisamos segui-las.

— Você fala isso porque gosta de francês, quero ver quando começar o piano. – Ele reclamou, alongando os dedos um pouco, sentindo as juntas reclamarem. – Ainda bem que vou para Hogwarts mês que vem, e então finalmente poderei pensar em piano apenas nas férias de verão!

Sirius se arrependeu do que falou no momento seguinte, não porque era mentira, mas sim porque isso trazia à tona um assunto que os meninos evitavam tocar. Sirius estava indo para escola, ano que vem seria um ano difícil para Regulus.

— Desculpe, Reg, eu...

— Está tudo bem – ele interrompeu, de forma ríspida, estava tentando mostrar que ficaria bem, que era forte.

Mas Sirius lembrava de cortar mechas do próprio cabelo para colar na nuca do irmão naquela mesma manhã.

X-X

Os jantares de famílias bruxas tradicionais eram sempre um porre, no início Sirius ficou animado por finalmente participar de uma dessas, por ser grande o suficiente, e mais tarde quando Reg esperou todos dormirem e correu para o quarto do irmão, ele contou animado sobre as comidas elegantes, sobre os artistas dançando em aros no teto e a música ao vivo.

Menos de uma década depois e Sirius faria qualquer coisa para não ter que estar em uma festa dessas, tivera um tempo de paz após os três primeiros anos de Hogwarts, depois da trágica quebra de tradição onde o mesmo foi eleito para Grifinória, porém ele ainda era o herdeiro Black, ainda era o filho mais velho. Então aos poucos foi reintroduzido no círculo puro sangue.

— Temos pessoas de outras casas, afinal – afirmou sua mãe.

E de fato tinham, os jantares puro-sangue eram diferentes dos jantares magia das trevas, onde sua grande maioria eram Sonserinos ou ex-alunos da Durmstrang, e que olhavam com desconfiança para qualquer um que não fosse como eles. Aqui tinha outras casas, além de pessoas que nem mesmo tinham estudado em Hogwarts ou até mesmo as educadas em casa. O único pré-requisito para participar desse clubinho era ser sangue puro, e acreditar que a família deveria continuar assim.

Não que isso fosse muito investigado. O próprio Sirius estava ali afinal, e ele não acreditava nem um pouco nisso, principalmente nos últimos meses, em que tanto tinha se aproximado da cultura trouxa depois de Lily Evans festejar um animado aniversário no Salão Comunal, com rock e bebida trouxa. Sirius certamente via Lily com outros olhos após descobrir que Whisky trouxa é bem mais forte que Whisky de Fogo.

O fato é que ele aprendera a admirar os trouxas, era simplesmente fascinante o quanto eles tinham evoluído sem o apoio da magia, tão pouco dependente de algo sobrenatural, que aprenderam a colocar as mãos na massa e fazer acontecer. Sendo assim, porque ele seria superior apenas por ser de uma família com várias gerações de bruxos?

Ele sabia que não era o único a pensar diferente ali, principalmente quando Marlene Mckinnon se aproximou.

— Você devia ir com calma, sei que em Hogwarts é acostumado, mas aqui não vai ser nenhum pouco bonito se você cair de cara no prato de tão bêbado. – Ela falou sorrindo, enquanto revirava a taça de vinho.

Eles não eram exatamente amigos. Marlene era um ano mais nova, da turma do Regulus, porém da Corvinal. Em Hogwarts, seus caminhos eram tão distantes um do outro que a única vez que ele de fato a notara foi quando ela mandou um balaço diretamente na cara de James, seu grande amigo e Artilheiro do time de Quadribol da Grifinória.

Entretanto, ali eles eram aliados. Afinal Sirius sabia muito bem que Marlene tinha um relacionamento de alguns meses com a nascida trouxa Mary MacDonald, e ela era uma das pessoas com quem ele poderia ter uma conversa sem ser sobre a importância de se casar com um sangue-puro e ter pequenos bruxinhos sangue-puros.

— Álcool é tudo que me faz não querer matar alguém aqui. – Ele respondeu sorrindo levemente. – E ninguém está olhando para mim.

Sem que ele precisasse especificar algo, Marlene olhou na direção onde Regulus se encontrava, conversando animadamente com alguns amigos da Sonserina. Tinha sido um grande alívio ele continuar a tradição, mas não era um alívio ver o quão bem ele se adaptou entre os mesmos.

— Reg é um bom garoto, - Marlene afirmou – apenas sabe fingir tão bem que nos engana também às vezes.

— Você sequer o conhece – desdenhou Sirius.

— Na verdade, estudamos juntos duas vezes na semana – respondeu ela, sabendo bem que o pegaria de surpresa.

Regulus não falava com Sirius em Hogwarts, não que Sirius se esforçasse também. Ambos sabiam que as coisas seriam bem mais fáceis para ambos se seus companheiros de casa esquecessem que eles tinham um irmão na casa rival. Em Hogwarts algumas pessoas até eram pegas de surpresas ao descobrirem que eles eram irmãos e não primos distantes ou algo do tipo. Eles eram pessoas completamente diferentes, em caminhos diferentes.

— Estou aqui por outro motivo. – Confessou Marlene, atraindo finalmente a atenção de Sirius, - Nossos pais queriam que nós nos conhecêssemos.

Sirius a olhou confuso, como famílias puro-sangues eles se conheciam desde a infância, em jantares e concertos.

— Que nos conhecêssemos como possíveis pretendentes, Sirius.

Sirius sentiu o ar fugir dos pulmões. Gostaria que a mãe não o tivesse obrigado a cortas as unhas tão curtas para o jantar.

— Não, não, Merlin, temos 15 anos, quer dizer, você mal completou 14! – ele arregalou os olhos, largando a taça na mesa antes que as mãos trêmulas a deixassem cair. – Eles não podem querer nos casar assim, não agora!

— Por favor, por favor, não aja como se tivesse odiando falar comigo – suplicou Marlene, se aproximando mais. – meus pais estão olhando.

— Ai, meu Merlin, você quer isso! – ele falou após respirar fundo para conseguir controlar a voz. – Porque? E Mary?

Marlene olhou em volta, tendo certeza que estava distante dos ouvidos de qualquer um, mesmo assim quando ela voltou a falar sua voz mal passava de um sussurro.

— Chegou nos ouvidos do meu pai que estou envolvida com um nascido trouxa, eles ainda não sabem que é uma mulher, mas tenho certeza que isso não vai ajudar nenhum pouco. – Ela segurou seu braço o puxando para perto de uma forma desconfortável. – Por favor Sirius, não vamos assinar nada, não quero me casar com você mais do que você quer se casar comigo. Só peço que você converse comigo, não deve ser tão ruim assim, sei lá, me visitar em casa uma ou duas vezes nesse verão. Só preciso que meus pais achem que estou aberta para o casamento tradicional puro-sangue.

— Porque não Regulus se vocês são tão amigos então? – ele perguntou ironicamente. – Todos aqui sabem que ele é o predileto dos meus pais, seria bem mais proveitoso.

Uma sombra de vergonha passou pelo rosto dela, que desviou o olhar para Regulus de novo. O garoto estava conversando com Mulciber e sua noiva, todos pareciam animados de uma forma que Sirius não saberia dizer se ele estava falando sobre a Copa Mundial de Quadribol ou sobre torturar criancinhas.

— Ele não é como você, eu... eu não tenho certeza da opinião dele sobre isso. – Marlene sussurrou baixinho, Sirius também não tinha e ele se perguntou quando foi que passou a conhecer Marlene melhor do que conhecia o próprio irmão. – Eu achei que você era a única pessoa que poderia me ajudar.

Sirius estava a ponto de negar, de mandá-la procurar outro, afirmar que já tinha muitas preocupações com os pais insistindo cada vez mais para que ele se alistasse de vez ao idiota Lorde Voldemort. Mas então ele olhou os olhos de Marlene, estavam carregados de lagrimas e tinha um brilho de desespero neles, os olhos eram verdes, com cílios quase invisíveis de tão loiros, tão diferentes dos olhos azuis com cílios negros de Reg, e ainda assim tão semelhantes. Antes que pudesse pensar, se viu dizendo.

— Certo, acho que posso te visitar algumas vezes.

Faria qualquer coisa para não ver mais aqueles olhos.

X-X

Crescer em um lar conturbado não é bom para nenhuma criança, a criança precisa de paz ou cresce meio doida, provavelmente era por isso que todos os Black’s tendiam a uma loucura inexplicável, ou talvez apenas seja a genética agindo após tantos casamentos entre familiares próximos.

O fato é que uma criança precisa de um lar estável para crescer bem, mas o que é um lar bom? Sirius e Regulus certamente não saberiam dizer, mesmo na casa das primas, onde as surras não eram frequentes, não parecia certo, não parecia um lar.

Em um lar de verdade as crianças poderiam brincar livremente, os pais brigariam sobre não jogar bola dentro de casa ou sobre marcas de tinta na parede. Em um lar de verdade certamente a queda de um vaso não seria motivo para se entrar em pânico.

Mas na Muito antiga e nobre casa dos Black, eles observaram o vaso feio e caro cair e se espatifar em vários pedaços como se estivesse em câmera lenta. Imediatamente Regulus ficou ofegante, sua pequena mãozinha atracou os cabelos da nuca puxando com força enquanto tentava puxar o ar pela boca.

Ele ainda estava naquela fase onde não tinha muita coordenação motora, era fácil deixar coisas caírem ou perder o equilíbrio, porém isso certamente não era desculpa para os pais, que não poupavam gritos e tapas sempre que algo quebrava. Sirius sabia que era necessário apenas um aceno de varinha para tudo estar perfeito novamente, mas também sabia que antes de fazer isso a mãe faria um outro aceno com o mesmo instrumento.

Eles nunca falavam o feitiço em voz alta, mas os meninos aprenderam o que significava cada movimento: um aceno com a varinha em sua direção significava que iam voar alguns metros até bater contra algo duro, se fosse um giro no sentido horário cordas pulariam da varinha e os prenderiam por quantas horas seus pais desejassem, se fosse um giro rápido com um aceno alguma parte do seu corpo que ficasse escondida sob a roupa iria queimar.

— Calma, calma, calma. – pediu Sirius, lamentando fortemente que aos sete anos ainda não tivesse mostrado sinais de magia para poder consertar tudo rápido. – Vamos esconder os cacos e ela nem vai notar.

Mas ela ia, eles sabiam que ia, e o pânico apertou o peito de ambos quando ouviram os passos na escada. Sirius precisou puxar os braços do irmão para baixo com força, vendo alguns fios de cabelo presos entre seus dedos. Eles se ergueram do chão um segundo antes da mãe entrar no quarto.

A mãe era uma mulher pequena, olhos idênticos aos dos irmãos, porém envoltos em uma frieza pesada. Frequentemente Sirius tinha certeza que a mãe os amava, porém era um amor distorcido e podre, do tipo que não fazia bem àqueles que o recebiam. Ela queria que eles fossem os melhores, que atingissem o máximo que poderiam, e não via porque não usar todos os meios disponíveis para isso. Frequentemente Regulus tinha a certeza que a mãe apenas não deveria ser mãe, ela não sabia lidar com crianças, não entendia seu desenvolvimento e certamente não sabia amá-las.

Eles acompanharam os olhos dela na mesma posição rígida, coluna ereta, mãos para trás e cabeça erguida, a postura de um Black. Ela olha para o mais velho, depois para Regulus, e por fim para o vaso. Sirius sentiu o irmão tremer ao seu lado, e antes que a mãe pudesse perguntar qualquer coisa ele enfiou as unhas na pele e deu um passo para frente.

— Fui eu! – ele disse sem gaguejar, Regulus ofegou ao seu lado, mas não o desmentiu, sabia que se o fizesse a mãe o castigaria de qualquer forma pela mentira. – Eu fui correr até a janela e bati na mesinha.

— Já falei que correr é proibido dentro de casa. – falou a mãe simplesmente, ela não precisava lembrar que teria uma punição, eles sabiam disso.

Um giro rápido e um aceno.

Sirius já sabia o que ia ser.

X-X

Nenhuma carta, três meses e não tinha chegado nenhuma carta. O pânico corria em suas veias, fazendo ele acordar suado de madrugada. Seus amigos não entendiam o que tinha de errado, não entendiam porque ele sentia a bile queimar na garganta com tanta força que Peter tinha que correr até a enfermaria e pegar uma poção para enjoo.

E como ele poderia explicar, como falar que ele deveria ter ido para outra casa, para casa errada, mas que sem dúvida seria mais certa. Como explicar que ele não sabia o que esperar quando chegasse em casa após ser selecionado para a Grifinória.

O primeiro Black que não fora para a Sonserina. Até mesmo Andromeda, sua prima cinco anos mais velha, se cobria com as vestes verdes, e evitava cruzar com ele pelos corredores para que não tivesse que lidar com suas perguntas.

Três meses que ele não tinha informações de casa. Ele mandava cartas é claro, e cercou as primas tanto quanto pode, porém elas eram mais treinadas e se limitavam a jogar uma azaração que o tiraria do caminho. James se ofereceu para levá-lo para a casa dos Potter’s, mas ele sabia que precisava enfrentar logo o que quer que fosse, e acima de tudo precisava saber se Reg estava bem.

Ele sabia que não seria bonito, mas se surpreendeu quando encontrou o pai na sala, quando chegou em casa depois de ninguém o buscar na estação. Normalmente era a mãe que lidava com as crianças e seu coração acelerou consideravelmente ao notar que não sabia o que esperar do pai.

Foi mais pesado do que qualquer outra vez, talvez porque nunca antes tivesse feito uma ofensa tão grave. Os pequenos cortes eram fáceis de lidar, o que mais doía mesmo era por dentro, ele não imaginava que a Maldição Cruciatus funcionasse assim, atacando as entranhas e a mente. Ele gritou e se contorceu, chorou e pediu desculpas mesmo depois do pai virar as costas e sair da sala.

— Me desculpa, me desculpa, me desculpa...

As palavras repetidas tantas vezes que estavam perdendo o sentido. Foi apenas depois de duas horas que ele conseguiu se arrastar até o andar de cima, ainda tinha uma coisa que precisava fazer.

— Reg – ele chamou, a voz rouca.

Ninguém respondeu seu chamado, e continuaram sem responder pela próxima hora que ele continuou chamando, e pedindo desculpas. Queria perguntar porque o irmão não mandou nenhuma carta, queria saber se tinha ficado tudo bem com ele, mas tinha medo de falar algo que pudesse colocar o irmão no caminho da ira.

Enquanto isso, dentro do quarto, Regulus chorava, os braços da mãe apertados em volta dele. “Não dê ouvidos a ele” sussurrava ela em seu ouvido “ele veio lhe procurar apenas porque está machucado, só quer usar você”. Regulus não se importava, apenas queria ajudar o irmão, queria curar suas feridas e poder abraça-lo. “Ele não mandou nenhuma carta, não quis saber de você desde que colocou os pés na escola, lhe substituiu por um garoto qualquer da Grifinória”.

Não, Sirius jamais me substituiria!

Mas ela estava certa, não tinha recebido nenhuma carta, tinha ficado horas inteiras esperando na janela, torcendo para ver a coruja cinzenta no horizonte. Tinha passado horas inteiras escrevendo para o irmão, contando que estava tudo bem e que ninguém tinha feito nada contra ele. Mas nenhuma resposta, apenas informações através das primas sobre como ele gostava de pregar peças nos outros com os novos amigos Grifinórios.

Sirius e Regulus jamais descobriram as cartas queimadas no escritório do pai.

X-X

Trajes a rigor eram simplesmente horríveis, eles faziam a pele pinicar em lugares que o tecido nem deveria encostar, a gravata apertada sufocava e dava a sensação de uma eterna vontade de tossir, além do cheiro enjoativo de alguma loção que a mãe mandou os elfos passarem. Incômodo, simplesmente incômodo.

Mesmo assim, os irmãos reagiam a ela de formas diferentes, sempre foi assim desde muito novos. Enquanto Sirius puxava o colarinho e coçava o corpo todo até a pele alva ficar muito vermelha, Regulus aguentava tudo e sentava elegante como um pequeno príncipe.

— Para com isso. - Rajou Regulus puxando a mão do irmão com força.

— Acho que tenho alergia a esse tecido. - Reclamou de volta Sirius. - Os trajes que uso em Hogwarts não fazem isso.

— Deixe de agir como um bebê chorão, - respondeu revirando os olhos - é só uma vez no ano, por favor.

— Eu odeio esses jantares!

Regulus não respondeu, de forma que Sirius ficou sem saber se seu ódio era compartilhado ou não. Eles continuaram em silêncio, sentados lado a lado enquanto os pais conversavam com outros Black’s e famílias associadas. Estavam em menor número esse ano, menos de três dezenas de pessoas.

A guerra vinha cobrando seu preço, afinal, a família Black assim como várias outras famílias puro-sangue tinham se posicionado ativamente na batalha. Sirius e Regulus eram as únicas apresentações esse ano, visto que os Black’s não tiveram muito tempo para ter novos bebês na última década.

— Eu odeio piano! - reclamou Sirius alongando os dedos após tantas horas de treino para a apresentação da noite - Ainda bem que é meu penúltimo ano.

— Você odeia muitas coisas, ignora metade das coisas que você diz odiar - respondeu Regulus abrindo um mínimo sorriso. - Pense pelo lado bom, você ficou realmente bom nos últimos anos, conseguiu aprender Sonata ao Luar em duas semanas, ainda mais sem nenhuma pratica durante o ano.

Sirius também sorriu, lembrando das tardes em que passou a frente do piano, o irmão trazendo biscoitos, mesmo que não estivesse proibido de comer, imerso nas notas. A apresentação desse ano tinha que ser grandiosa, compensar o pouco número de jovens com apresentações grandes, então Sirius em breve se levantaria para uma apresentação de quase duas horas.

— Quem disse que não pratico?

— Eu certamente nunca te vi na Sala de Música em Hogwarts. - A amargura na voz o irmão fez Sirius se perguntar quantas vezes ele tinha ido à sala com a expectativa de encontrar o mais velho.

Ele forçou a descida do bolo na garganta, e preferiu não admitir que frequentemente treinava um pouco na Sala Precisa, afinal era bom prevenir as surras que viria se ficasse muito para trás nos estudos musicais.

— Bom, só sei que ano que vem é minha última apresentação e depois disso nunca mais tocarei em um piano na vida.

— É uma pena. - respondeu Regulus, o sorriso sumindo - Eu realmente gosto quando não tem ninguém em casa e você toca Elton John até os quadros gritarem.

Eram realmente bons momentos, mesmo que Sirius soubesse o que seus pais fariam se ficassem sabendo e que iria ter que arcar com as consequências. Era um momento único com o irmão, tomando vinho barato e tocando músicas trouxas, eram momentos que ele esquecia que eram de casas diferentes, que estavam no meio de uma guerra, que os pais não paravam de azucriná-lo para se alistar a Lord Voldemort, eram momentos em que eles esqueciam que tinha grandes chances de lutarem em lados opostos.

— Não fique triste, irmãozinho. - respondeu Sirius, passando os braços pelos ombros de Regulus, sem deixar o peso cair sobre ele, sabendo bem que o irmão não gostava de muito contato físico. - Ainda teremos o ano que vem.

Porém, eles não teriam.

X-X

Regulus não saberia dizer se a tontura era por causa da fome ou por causa do forte baque que levou na cabeça, até porque ele tentava não pensar nisso, não podia. Não quando estava trancado no quarto sem varinha há mais de dois dias, nem mesmo Monstro, o elfo doméstico da família, seus pais deixaram vê-lo. Todos sabiam o quanto Monstro era fiel ao futuro herdeiro Black, e eles não queriam que ele soubesse o que estava acontecendo no andar de baixo.

Desde o retorno de Hogwarts era isso, faltavam poucos meses para Sirius completar 17 anos, e seus pais queriam que ele se alistasse e recebesse a enorme honra de ter a marca negra. Sirius não queria, todos sabiam disso, mas ele ainda não tinha dito com todas as palavras, e Regulus sabia o porquê.

Ele era seu irmão mais velho. Regulus não conhecera um dia naquela casa sem o peso da existência do irmão, até mesmo naquele único ano em que ele foi para Hogwarts e Regulus ficara ele estava lá, o protegendo. Afinal o que Regulus podia fazer de pior do que ir para a Grifinória?

Ele pensou em quantas surras Sirius levou no seu lugar, quantas vezes o irmão assumiu a culpa por um erro dele, até mesmo seu primeiro sinal de magia foi unicamente para o defender. Regulus jamais esqueceria do rosto da mãe ao ser jogada contra a estante apenas por arrastar Regulus pelos cabelos.

E agora esse irmão estava lá embaixo, sofrendo Merlin sabe o que após dizer não para Voldemort em pessoa.

E se ele nem estiver mais vivo?

Regulus está tentando não pensar nisso também. Precisava fazer algo, precisava ver o irmão. Ele olhou para cima, para o duto de ventilação perto do teto, quando era bem pequeno, ele costumava se esconder ali quando os pais brigavam, mas parou com isso quando os ataques de pânico começaram, nunca é bom ter um em um espaço apertado.

Ele não conseguia ficar em um lugar pequeno há quase 10 anos, e talvez por isso os pais não tivessem pensado naquela saída. Ele tirou a grade de proteção com cuidado para não fazer barulho. O lugar era escuro e quente, provavelmente cheio de bichos e ele não teria como enxergar nada. Mas ele precisava continuar, por Sirius, seu irmão precisava dele.

Então ele respirou fundo e deu impulso, se arrastando pelo caminho até chegar na cozinha. Precisou contar mentalmente pra conseguir manter a respiração controlada, e ficou abrindo e fechando os dedos sem parar, mas conseguiu controlar a ansiedade. Devia ser madrugada, porque nem mesmo Monstro estava por ali, então ele aproveitou para beber água e pegar um pouco para Sirius, que também devia estar em privação.

Não foi difícil achar o irmão. Os pais costumavam trancar os meninos no porão desde sempre, porém certamente foi chocante ver o estado dele. Punhos amarrados fortemente, pele queimada, lábios sangrando.

Por dentro devia estar pior, bem pior visto que Regulus precisou sacudir o irmão violentamente para fazê-lo acordar.

— Reg? - ele perguntou confuso. - Reg, você veio me salvar?

A pergunta foi seguida por uma risada debochada, como se ele não acreditasse no que estava acontecendo. Regulus ignorou, empurrando a água contra a boca do irmão, vendo o líquido no copo se tingir de vermelho.

— Merlin, Sirius, o que você tinha na cabeça?

Regulus gostava de pensar que ele tinha se acostumado com o pânico e o medo, que eles tinham crescido com ele e que se tornaram bons aliados. Porém nada na vida o tinha preparado para o momento em que Lord Voldemort entrou na sala de jantar em um elegante traje negro, nada o preparou para uma refeição tensa, absolutamente nada poderia tê-lo preparado para ouvir Sirius dizendo não para Lord Voldemort em pessoa.

Por um momento ele tinha achado que o irmão iria morrer, que o Lord iria lançar um Avada Kedrava ali mesmo. Mas o homem pálido apenas riu, uma risada sinistra que vibrou pela casa inteira, se levantou e afirmou que não tinha interesse em bruxos alistados obrigados, e saiu porta afora. E então os pais começaram a gritar. E Regulus teve a certeza que o irmão iria morrer.

— Eu não podia, - ele disse, a voz rouca de quem passou muito tempo gritando - Você não entende, eu não podia, eu não conseguiria, eu prefiro morrer.

— E quanto a mim? - lágrimas vergonhosas desceram pelo rosto de Regulus, mas ele não se sentiu mal por elas, principalmente quando as lágrimas de Sirius passaram a acompanhá-lo. - Como eu fico se você morrer? Aceite, por favor aceite, é apenas uma marca estúpida.

— Não é apenas isso. - Sirius respondeu, mas não se aprofundou, Regulus cresceu na Sonserina, ele não sabia o que era ser encarado com desconfiança, o que era ser acusado de colaborar com a morte de alguém, ele jamais saberia o que foi ter que abraçar Lily, desejar os pêsames sabendo muito bem que os pais dele estavam presentes no ataque que matou os pais dela. - Eu não posso.

— Então precisamos ser rápidos. - respondeu Regulus, limpando as lágrimas das bochechas e levantando.

— O que?

— Eu me recuso a viver em um mundo sem você.

X-X

Achar a varinha de Sirius não foi difícil, ela estava na mesa bem à frente de onde ele estava amarrado, isso também era costume dos pais. O deboche de deixar o bem mais importante de um bruxo a alguns metros, e deixar o próprio amarrado sem poder alcançar a única coisa que poderia soltá-lo.

O difícil mesmo foi conseguir fazer Sirius subir as escadas em completo silêncio. Ele estava fraco e muito machucado, e era bem maior que o irmão caçula, que estava sem se alimentar há dois dias. Seria difícil conseguir tirar Sirius daqui sem ninguém ver, e certamente não teriam nenhuma chance se tivessem que lutar.

Regulus precisou de três tentativas para conseguir soltar as cordas, então não quiseram correr o risco de um feitiço falhar e rolarem escada abaixo causando mais machucados e um enorme barulho. Mesmo motivo pelo qual Regulus não se atreveu a tentar curar o irmão, magia é parte da sua força vital, se você não está bem, ela também não está. O risco ficaria muito alto.

Regulus sentia o corpo todo tremer, o formigamento que começara nas mãos se espalhando lentamente pelo resto do corpo, o sinal de que em breve um ataque chegaria. Aguente! ele disse a si mesmo em pensamento, Tire Sirius daqui e depois você pode surtar!

Ele certamente não tinha condições de usar magia. Ao invés disso, decidiram subir aos poucos, parando para recuperar o fôlego e beber mais água. O grande segredo de tudo foi a paciência, eles queriam correr porta afora, mas conseguiram ir devagar, na ponta dos pés e com ouvidos atentos para qualquer barulho.

Regulus sentiu o formigamento se espalhar para os braços, a respiração ficou mais ofegante. Segure! Por favor, segure! Precisavam de silêncio, precisavam conseguir sair da casa sem chamar nenhuma atenção, seria o fim se ele deixasse o surto chegar naquele nível onde ele não conseguia não gritar e se debater.

Ele tinha certeza de que Sirius estava em algum tipo de estado de semi inconsciência, pois é totalmente impossível o irmão não ter notado nada, não ter dito que tudo iria ficar bem ou tentado acalma-lo. Essa percepção só tornou tudo mais urgente, ele precisava tirar Sirius dali.

Regulus gostaria de dizer que esse foi seu grande ato heroico, que ele lutou bravamente para libertar seu irmão, mas a verdade é que ele apenas escolheu o momento certo. Estavam todos dormindo na casa e a saída do porão ficava perto da cozinha, que por sua vez ficava perto da porta da frente.

Eles levaram quase uma hora, mas finalmente sentiram o ar fresco da noite em seus rostos. Imediatamente Sirius vomitou, colocando pra fora toda a água misturada com uma espuma amarelada. O barulho foi alto, fazendo Regulus olhar para o segundo andar, para a janela do quarto dos pais.

Tudo continuou escuro. Como eles conseguiam dormir sabendo que os dois filhos estavam sofrendo? Realmente achavam que aquilo era uma punição justa? Acreditavam que ele merecia dois dias de fome apenas por ter tentado impedir que machucassem Sirius? Sirius merecia o que fizeram com ele?

Tortura.

A palavra piscou em sua cabeça. Até aquele dia ainda não tinha usado essa palavra para descrever as coisas que os pais faziam. Mas era isso, não era?

O formigamento chegou no tronco do corpo e Regulus precisou engolir a bile que subiu queimando pela sua garganta. Sua respiração estava completamente ofegante agora, mas ele não tinha mais motivos pra tentar controlar, então apenas passou o braço do irmão por cima dos ombros e começou a arrasta-lo para um beco conhecido.

Aparatar no estado em que eles estavam era arriscado, mas não tinham outra alternativa.

— Sirius, preciso que você me diga como aparatar na casa dos Potters. - Regulus pediu, com a voz rouca. - Preciso te levar pra um lugar seguro antes que eles notem que eu saí.

— Não, não, não, você não devia… não podiam - por um momento Regulus achou que o irmão estava alucinado, os olhos estavam desfocados e as palavras eram quase incompreensíveis. - Eu devia… uma criança… proteger… eu devia…

— Sirius, olha pra mim! - Regulus falou mais alto, sacudindo o irmão pelo casaco rasgado. - Nós não temos tempo, apenas diga.

Eles se encararam por algum tempo, estavam ofegantes, trêmulos e exaustos, as roupas cobertas de vômito e lama pelas quedas que levaram até ali.

Os olhos de Sirius focaram o irmão, o nariz enrugando ao finalmente sentir o mal cheiro do lugar, Regulus sentiu o coração palpitar mais forte ao notar o irmão voltando a si.

Confie em mim, implorou ele mentalmente, porque favor me diga para onde te levar.

E então Sirius confiou.

X-X

O alarme antiaparatação soou no momento em que os irmãos caíram na grama úmida. Sirius despencou para frente, levando Regulus junto.

O formigamento se espalhou com mais força, o instinto de precisar fugir urgentemente se instalando com força. As luzes da casa se acenderam uma a uma, trilhando um caminho até a porta da frente, em breve eles estariam ali, e Sirius estaria seguro.

Eles iam cuidar dele, sarar as feridas, alimenta-lo e acalma-lo. A missão auto imposta de Regulus estava cumprida

— Darei um jeito de lhe devolver a varinha - falou Regulus se levantando e preparando para desaparatar de volta.

Porém antes que pudesse concluir o movimento da varinha sentiu o irmão agarrar sua perna. A corrente de dor foi instantânea, odiava ser tocado, mas era Sirius, então a dor dissipou com a mesma velocidade que apareceu.

— Não vá, - pediu o mais velho, ainda deitado no chão, trêmulo e sem forças. - Fique comigo, eu posso protegê-lo.

— Não, não pode. - respondeu Regulus, se agachando para olhar o irmão mais atentamente, vendo a porta da frente da casa abrir e três figuras começarem a correr em sua direção, eles tinham pouco tempo. - Você completa 17 daqui há dois meses, mas eu ainda tenho um longo caminho antes da maioridade, eles vão te denunciar por sequestro, você vai pra Azkaban, não vou ser o culpado por isso.

— Por favor, não volte. Não aceite… - Sirius cuspiu mais vômito, se engasgando um pouco. - Vamos enfrentar isso juntos, por favor, Reg.

As figuras estavam muito perto agora, então Regulus apenas se ergueu, agitando a varinha para voltar para casa e encarar as consequências de ter libertado o irmã.

— Desculpe, mas você é o irmão corajoso.

X-X

Quando crianças, Regulus frequentemente acordava Sirius de madrugada. Seja por causa dos gritos dos pais, seja por causa de uma tempestade com trovões, ele escapava da cama e corria para o irmão. Se sentia seguro com ele, sabia que qualquer coisa precisaria passar por Sirius antes de poder machuca-lo.

Isso parou depois do primeiro ano separados, se foi porque Regulus aprendeu a lidar com os medos sozinho ou porque não se sentia mais seguro com irmão, Sirius jamais saberia. Porém ele sentia falta.

A primeira magia de Regulus foi uma pequena bola de luz, criada em baixo das cobertas em uma dessas noites compartilhadas. Esse tinha sido um dia bom, tinham ido em uma reunião com outras famílias puro-sangue e tinham se comportado tão bem que a mãe deu barras de chocolates para os dois depois do jantar. "Comam aos poucos" ela instruiu, então naturalmente eles se encontraram para engolir todo chocolate possível na mesma noite.

Foi pensando nessa noite que Sirius se viu abrindo a porta de Regulus naquela noite de Natal.

— Reg, você tá acordado?

O resmungo baixo foi resposta o suficiente para Sirius, que pulou na cama do irmão. Em breve estariam de volta em Hogwarts, e então seriam estranhos novamente, ele queria uma noite sendo amigos de novo.

— Levanta e pega um casaco, tenho que te mostrar uma coisa.

Incrivelmente, não foi preciso mais que isso para o pedido ser atendido, talvez Regulus também sentisse falta daquelas noites.

Os irmãos saíram pela janela da cozinha, a passagem que dava diretamente para um arbusto que amaciava a queda e fora descoberta ainda na infância.

Qualquer um que visse os dois jovens andando lado a lado na travessa imunda e mal iluminada poderia afirmar que eram totais desconhecidos. Sirius tinha um jeito engraçado de andar, como se estivesse em uma espécie de dança, totalmente diferente da postura rígida que ele mantinha nos jantares de família, já Regulus andava elegantemente, a cabeça erguida e os braços para trás.

Dois lados da mesma moeda.

Sirius liderou o caminho, levando o irmão até um beco onde ele tinha deixado o que queria lhe mostrar.

— Isso é… uma motocicleta trouxa?

Sirius ficou curioso sobre como o irmão reconheceu o veículo, mas não quis estragar o clima com indagações, apenas se deixou levar.

— Sim! Comprei no verão passado. - Revelou animado. - Andei fazendo umas modificações e finalmente consegui fazer funcionar, queria… queria te mostrar.

Regulus ainda encarava a moto, parecendo em choque, fazendo o irmão ficar apreensivo. Quais as chances dele contar para os pais que Sirius tinha comprado algo trouxa? O que aconteceria se eles descobrissem? Sem dúvidas uma bela surra e a moto seria destruída.

Ele precisaria pedir para Remus curar as feridas, era o único do grupo realmente bom com feitiços curativos. Isso seria ruim, Remus odiava ver os amigos machucados.

Seu coração começou a acelerar e ele precisou enfiar as unhas na pele macia para poder se acalmar.

— Estamos esperando o que? - perguntou Regulus finalmente - vamos dar uma volta ou não?

E então foi uma daquelas noites. Regulus gritou e vibrou quando a moto alçou voo, os braços abertos e o vento bagunçando o cabelo perfeitamente arrumado. Sirius até mesmo deixou ele pilotar um pouco, enquanto explicava os feitiços necessários para conseguir fazer o voo acontecer. Explicando como conseguiu entrar no cofre dos Black's e pegar dinheiro para a compra.

Dirigiram por horas a fio, aterrissando no alto de um prédio para ver o sol nascer e dividir uma garrafa de whisky trouxa, que fez Regulus engasgar e tossir enquanto Sirius gargalhava.

Eles sorriram um pra o outro, aproveitando aquelas horas como irmãos de verdade.

Eles não sabiam que seria a última daquelas noites.

X-X

Sirius nunca tinha imaginado colocar os pés naquela casa novamente. O ponto de partida, o lugar onde ele e Regulus nasceram e cresceram. Ele quase esperava que a casa entrasse em combustão espontânea quando colocasse os pés ali, mas ela o recebeu sem nenhuma armadilha.

Seguiu o caminho até a sala de jantar, não tinha interesse em visitar os quartos ou olhar os quadros nas paredes. Tinha ido ali com um único propósito e foi pensando nisso que se sentou na frente do piano.

— É irônico que você esteja sentado aí por livre e espontânea vontade depois de eu precisar tanto te obrigar. - Mesmo após tantos anos afastado, Sirius ainda sentia uma corrente de adrenalina passar pelo corpo ao ouvir a voz da mãe. - Deveria esconder os biscoitos?

Ele se virou, a mulher estava encostada contra o batente da porta, os cabelos desgrenhados e olhos vermelhos e inchados. Estava sofrendo, Sirius notou, estava sofrendo a perda do filho perfeito.

— Então a senhora está viva, afinal.

— É mais fácil sobreviver quando se tem um filho prestativo - tinha, o filho em questão não estava mais ali, porém Sirius achou desnecessário apontar esse fato. - O que você está fazendo aqui, Sirius?

Sirius olhou para mãe, ela estava lastimável, ele estava certo afinal, ela os amava, de alguma forma distorcida, porém amava. Estava acabada com a morte de Regulus, mas parecia até mesmo contente com a possível volta do filho mais velho. Teria sofrido com sua partida também?

Era difícil olhar para ela e separar a mãe que abraçava e beijava da mãe que batia e manipulava. Talvez porque as duas versões estiveram durante anos entrelaçadas.

— Eu vim me despedir. - Ele respondeu em um sussurro.

— Faça então, até mesmo um inútil como você tem direito de dizer adeus a alguém incrível como Regulus. - Ela apenas se virou, sem nenhum medo do filho lançar uma maldição pelas suas costas, confiante de que ele não teria coragem, apenas saiu da sala lançando um último jato de veneno. - Espero que você sofra ao reconhecer que é o único culpado pela morte dele.

Ela não precisava nem tentar, Sirius já sabia, já se culpava. E foi com esse pensamento que ele tocou as primeiras notas no piano.

Elton John.

Regulus gostava de quando ele tocava Elton John. Então foi o que ele fez, escolhendo a música que sempre o fazia chorar.

Your Song definia como Sirius se sentia há anos. Ele queria ter feito mais, queria ter tentado mais. Tinha prometido a si mesmo que ajudaria Regulus quando ele completasse 17, mas então estava tão envolvido com a guerra que só notou o marco meses depois.

Ele deveria ter feito mais, deveria ter procurado com mais afinco, deveria ter enfrentado os pais, deveria ter impedido Regulus de voltar naquela noite mesmo.

Ao invés disso o tinha deixado. Ele tinha abandonado o irmãozinho, ele deveria tê-lo protegido.

Agora estava aqui, tocando um piano estupido pra alguém que já estava morto há muito. Isso não deveria importar, mas importava.

Tocar na casa onde tudo começou, onde durante anos seus caminhos foram separados por uma linha tênue, até a fatídica noite em que divergiram de vez.

Se ele não tivesse fugido, talvez Regulus não tivesse recebido a marca, talvez ele tivesse mais tempo. Se ele tivesse fingido melhor, talvez os pais não os tivessem afastado, talvez Sirius pudesse ter ensinado Regulus a ser corajoso.

Eram muitos se's e muitos talvez's.

Regulus está morto.

E quando Sirius toca a última nota, o silêncio ensurdecedor da casa só reafirma o quanto ele é único culpado.


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