Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 7
(Capítulo extra) Fome


Notas iniciais do capítulo

Olá! Antes de começarmos, só vim dizer que esse é um capítulo extra, então ele não vai fazer muita diferença na narrativa. Você pode escolher não ler ele e esperar pelo próximo.
Sem mais delongas, vamos pro capítulo.

"Por favor, confie em mim. Decididamente, eu sei ser animada, sei ser amável. Agradável. Afável. E esses são apenas os As. Só não me peça para ser simpática. Simpatia não tem nada a ver comigo."
— Markus Zusak, A Menina Que Roubava Livros.

Boa leitura!



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Yullian

 

Você é um amontoado de cicatrizes e ossos firmemente posicionados. Coluna ereta, queixo sempre erguido. Seus 10 centímetros abaixo dos 2 metros mantêm todo seu ego no lugar, suas camadas de complexos de superioridade e os impulsos nada saldáveis que você guarda nos bolsos do casaco. E como diabos é que você sequer consegue respirar?

Você é uma bagunça ambulante — e que pernas longas você tem! Então, você cobre todos esses seus amontoados com a pele de animais ferozes e joias preciosas. Ouro e prata e veludo. O brilho deles pode mascarar as outras partes. As feias. É assim que você se veste da sua autovalorização nos dias úteis da semana.

Sua decadência, você deixa para os finais, aqueles dias meio sonolentos de horas mortas. Então, você descobre todos esses amontoados na própria pele e nas dores de cabeça. Pesadelos e memórias e traumas. O peso deles o derruba sobre aquele metro e 90 centímetros acima do chão. É assim que você se veste da sua autopiedade nos dias inúteis da semana.

 

O silêncio preenche o vão em seus ouvidos como água. Como um lago. Como estar submerso. Sua cabeça chacoalha ao ritmo dos solavancos da carroça. Você não se move, porém. Aprecia a quietude. Mergulha nela como um lago. Como estar submerso. Além da janela da carruagem, o mundo foi envolto em branco e estrelas e negro. Como se alguém, um deus supremo, tivesse esvaziados os bolsos e derramado pequenos pontos brancos sobre todo lugar — e você gosta muito da palavra como, mas não questiona isso.

Você gosta de branco. Quase tanto quanto gosta de negro. Gosta de pessoas quase tanto quanto as odeia. Você gosta de vinho quase tanto quanto gosta de whisky, mas é sempre quase. Nunca uma certeza. Você não se decidiu ainda. E você não precisa ter pressa.

Seu irmão ao seu lado, porém, parece bem decidido. Ele tosse e se encolhe na manta de lã, as bochechas aflorando vermelhas e olhos apertados. Os olhos da mãe dele, azuis de um jeito líquido, luminoso — água do fundo do mar represada em um recipiente de vidro. Ele decidiu que odeia o frio. Deixa isso bem claro. Não é um rapaz de meios termos, como você. Ele é uma pessoa calorosa e brilhante, frio realmente não combina com ele.

Então, você se compadece. Move as mãos enluvadas, arrancando-as do estado de inércia quase petrificada em que estavam e espalha uma onda de calor pela carruagem. Como um tapete. Você estende quentura no ar com a facilidade com que respira e seu irmão relaxa, aliviado. Olha-o de soslaio — você não se dá ao trabalho de retribuir o olhar, está focado no branco casaco de neve em que o mundo foi envolto e nas sardas estelares do céu — e sorri para você, de um jeito quase fraternal.

“Você como sempre, faz tudo, Yullian”, ele diz, grato.

E com você é sempre quase, nunca uma certeza. Você não tem — ideia — de como ser um irmão de verdade. E não é agora que vai começar.

A carruagem para. Você sabe o que isso significa. Você sabe porque tem um ótimo olfato e só uma mudança de brisa faz a criatura dentro de você acordar. Remexendo-se. Arranhando as garras em sua caixa torácica — há muito tempo você parou de se incomodar, mas não quer dizer que não seja desconfortável.

Você é a criatura. Vocês são água e óleo. Normalmente não se misturariam. Mas no caso aqui, vocês estão em combustão. Ignir desperta e ronrona no interior de seus ouvidos. Não é astral, é físico. Você sente os instintos dele descendo juntos com os hormônios do seu corpo em sua corrente sanguínea. Testosterona, oxitocina e predação. A voracidade da fera é tão natural a seu organismo como seus anticorpos, como o tecido da sua pele.

Ele rosna ao sentir o cheiro de magia, e não é ele, é você. É sua fome. É seu impulso.

Você o cala. Como sempre faz. E ele se relega ao espaço dele, mas se ele não está contente, tampouco está você. Todos esses cheiros, cheiros de magias diferentes, cheiros de magias jovens. Cada um com uma forma, uma altura, um peso diferente. Cada um tem gostos, traumas e vícios diferentes.

E todos — sem exceção — são bons. Você entregaria sua vida inteira a cada um desses cheiros. Ou não. Ou talvez. Com você, nunca é uma certeza. Sempre um enorme e perecível talvez.

Você se pergunta se é capaz de adivinhar aspectos da vida de uma pessoa só pelo cheiro da magia dela. É uma ideia estúpida, você sabe, mas você gosta de apostas. E isso distrai você.

Por isso, quando você salta da carruagem, logo depois de Darin, seu conselheiro e Yan, seu irmão você as avista. Um montinho de cabeças tremendo, por frio... por medo. Os corações delas são como tambores de um ritual. Você se concentra nas batidas enquanto caminha. Separa-as em sua mente. Você não as conhece, as trinta ali de pé, em fileira. Só as trinta moças que vêm do Norte, as filhas dos nobres que recebem a Marca. Você mesmo foi busca-las, porque é o que diz a tradição. E a tradição é mais velha que você, e vai continuar aí mesmo depois de que você partir, então você deve ouvi-la, certo?

Assim como se deve ouvir os mais velhos, como seu pai o ensinou, como o pai dele o ensinou e assim uma longa geração de Duques. Mas sendo sincero — não que você seja sincero com frequência — você não queria fazer parte disso.

A tradição diz muita coisa. Você odeia tradições. Quase tanto quanto odeia os mais velhos, mas isso é só um talvez de novo. E mesmo que a odeie, você não pode só pisar por cima dos costumes, é o que seu pai dizia. E você o odiava também. Você odeia muita coisa. Essa é a sua própria tradição.

Conforme anda diante de suas novas pequenas aquisições — elas são suas, você prontamente se lembra, embora não acredite realmente nisso — você associa os nomes às batidas do coração. Ao cheiro da magia. Você tenta adivinhar um pouco da vida de cada uma, se a moça de cabelos repicados — Ralia, é o nome dela — gosta de caçar na floresta ou se aquela com pernas pequenas — Cilize — faz bordados. É tudo por causa do cheiro.

Ignir dentro de você discorda. Ele se revira como uma névoa densa ou uma tempestade de areia, como as nuvens em noites de tormenta, e se debate, e rosna, e baba, e ele quer devorar todas — sem exceção. Ele quer tocar aquela faísca incandescente de magia em cada uma. Ele sussurra para você que as ama. Que ama a humanidade inteira. De um jeito especial para cada uma. E mal pode esperar para provar a magia nelas.

Não é por fome. É mero capricho. E por um capricho seu, você manda que ele cale a boca e se concentra em Yan. Na animação dele. Na luz dele. Nos olhos da mãe, que ele tem. Quando você está quase sucumbindo, seu irmão não faz ideia de como ele o salva.

Ou quase. Ou talvez. Não dessa vez. Há um par de olhos grudados em você. Atravessando você, sua capa de pele de lobo, seus anéis de ouro e a máscara em seu rosto. Olham bem, e são quentes, e seu cheiro é doce como mel escorrendo pela boca. A magia desses olhos ondula e é como a beleza de uma manhã florida.

Beleza Florida, é o que Ignir sussurra quando você crava os olhos na garota. A magia dela é quente como a Luz do Sol, e fresca como o Orvalho da Manhã. É pulsante e antiga, muito, muito antiga, e ao mesmo tempo nova, muito nova, engatinhando ainda, e ela abre a boca.

“Perdoe minha curiosidade, Vossa Graça”, e há veneno gotejando de seus lábios. “Mas seria aquilo diante de nós a famosa Seldegra Floresta?”

Você consegue reconhecer alguém que odeia. Você reconhece víboras preparando botes desde que aprendeu a andar e você aprendeu a se defender delas muito bem, obrigado. Ignir força as paredes da sua mente.

“É o que lhe parece, senhorita?”, vocês rosnam, juntos.

“Sim.”

“Talvez porque o seja.”

Ela sorri, e não parece afetada pelo seu rosnado de aviso. Serpentes não são facilmente assustadas por lobos, você pensa. E não gosta. Você se veste de camadas e mais camadas de ego todos os dias, e elas tem que servir para algo.

Você se concentra só nas batidas do coração dela. São rápidas. 1, 2, 3, 4... um atraso. Uma quebra suave no ritmo, e então tudo começa de novo. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, outro atraso, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, agora um adiantamento, uma batida levemente mais ligeira.

Ah, ela tem arritmia.

Você percebe enquanto ela fala, o coração retumbante. E não importa realmente o que ela diz, mas como ela diz. Ela não tem um pingo de respeito por você. Nenhum. Você arrisca que ela talvez o odeie até, mas isso não importa porque muita gente odeia você. E você odeia muita gente também. É só que eles normalmente não demonstram isso com tanta clareza.

Ela não respeita você e você não suporta ser desrespeitado. É como um chute direto nas bolas do seu ego, e você quer dizer algo que faça Ekatherina Landford se calar. Ou ao menos começar a repensar o que diz. Mas uma lufada de vento traz ao seu super olfato sobrenatural um odor.

Um cheiro de lama podre e cadáveres putrefatos. Cheiro de decomposição. Você percebe o cheiro antes de qualquer um, é sempre o cheiro que chega primeiro. Seis cabeças à direita, a garota que treme na fila e ela está a um passo de ser corrompida pela própria magia.

Como era o nome dela mesmo? Ah, você se lembra. Kalisa. O nome dela é Kalisa. Ela foi Marcada com o galho e tem um sotaque forte do sul. As moças atadas a ela são Petra Gaelman e Lalith Pourtner. Elas serão machucadas pela corrupção se você não for rápido.

Então, você puxa a espada.

Aponta para Ekatherina Landford. E para todo o desrespeito pingando das presas dela. Você ameaça a amiga com quem ela se importa, porque, em algum momento da sua vida, você aprendeu que era muito eficiente tornar alguém submisso assim, usando a afeição. Mesmo que você não goste disso. Quem foi que lhe ensinou mesmo?

Ah, seu pai. Aquele desgraçado.

Mas você não pretende machucá-la mais do que o necessário. Você só quer assustá-la, você só quer demonstrar um pouco do seu poder.

Por isso, quando Kalisa é tomada pela corrupção, você deixa as sombras engolirem você. É como entrar no âmago de todo o vazio, como ser embalado por uma placenta, quente e calmo e longe de preocupações. Você salta de uma sombra a outra e, no instante seguinte, está de pé diante do monstro corrompido.

Ele foi uma pessoa dois segundos atrás. Já teve sonhos, e medo, e decepções e agora é uma massa fedorenta de magia negra e Ignir dentro de você se recusa a devorá-lo. Você acha que seria muito aterrorizante também fazer isso na frente das outras.

Você não precisa dar mais motivos para que o chamem de monstro.

Então, você a acaba com isso rápido. Um movimento com a espada e a cabeça da criatura rola. Sangue negro como piche mancha a neve. O corpo cai com um baque e você é um cavalheiro. Estende a mão para Petra, que estava no chão depois de ter sido derrubada pelo monstro.

— Você está bem? — você pergunta e Ignir ronrona, porque ela cheira bem também. E ela pisca, e ela tem olhos bonitos, e você convence a si mesmo que acha os olhos dela bonitos porque são mesmo e não porque a magia dela cheira bem.

Você, com frequência, é controlado por seu olfato. Mas não dessa vez. Não hoje.

— S-Sim, Vossa Graça — ela responde.

Ela exala submissão. Tem um cheiro que é como frutas cítricas no calor de um dia de verão. Você está feliz por isso.

Mas não está feliz quando vai embora. Não é culpa sua, você sabe, forçá-los a atravessar Seldegra. Você não tem opção. Lingard, o Duque do Sul, começou a fazer movimentos estranhos na fronteira com Alerion e você não sabe se uma guerra está vindo.

Mas o que quer que seja, você estará na vantagem quando a Dama da Primavera chegar, no Equinócio.

Você precisa se preparar, é o que você diz a si mesmo enquanto atravessam a floresta e você ouve os primeiros gritos vindos dos vagões. Você sabe que esses gritos não o deixarão dormir direito essa noite. Nem nas outras por seguir.

Mas você precisa se preparar.

Nenhum inverno nunca foi tão cruel como a primavera que virá.

É o que você diz a si mesmo para justificar as mortes. Você se convence com verdades turvas para tirar a culpa das suas costas.

E assim é que você se aguenta nesses seus quase dois metros de altura. É assim que você se aguenta nos dias úteis da semana.


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Notas finais do capítulo

Se você leu até aqui, obrigada!
Lembrando que esse é um capítulo extra e não ter lido não vai afetar sua compreensão da história.
Até mais!



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