Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 12
Magia Antiga e Brutal


Notas iniciais do capítulo

"— Eu te odeio tanto que às vezes não consigo pensar em mais nada."
Holly Black, O Rei Perverso

Boa leitura!



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X.

 

Não tive bons sonhos, mesmo descansando minha cabeça no mais macio travesseiro do mundo. Meus pesadelos eram cheios de mãos de mortos e montes de espinhos sufocando-me, e eu estava sempre presa, incapaz de correr ou sequer me mover. O que era estranho porque nos travesseiros em Morrigan, feitos de espuma dura, eu raramente tinha sonhos ruins. Dormia sempre tão pesado, exausta, que nem tinha sonhos, aliás; e levantava sempre pronta para um novo dia.

Acordei ao som retumbante de um trovão. Dei um salto na cama, resfolegando e lutando com os lençóis. O trovão estalou de novo e havia um som misturado a ele. Baixo o bastante para ser abafado e passar despercebido, mas suficientemente feral para despertar meus instintos. Era um uivo. De lobo.

Saltei da cama e espiei lá fora através de uma fresta da cortina da varanda. A noite estava densa e nevava. Névoa se esgueirava pelos arredores do castelo e alguma coisa — alguma coisa não, magia, era fácil saber que era magia — arrastou-se contra mim. Dei um passo para trás, o coração acelerado, a sensação ainda ao meu redor, como se eu tivesse sido engolida por uma onda. Era fria, formigava na ponta dos dedos, arrepiava meu corpo, lambia minha coluna.

Magia. Magia antiga e brutal. Magia velha e com fome. Magia sem senso racional, arranhou a magia jovem que ainda brotava dentro de mim. Eu me curvei, sentei-me sobre meus tornozelos, ali mesmo, e engoli a dor que senti na Marca. Não sei quanto tempo fiquei. Mas quando saí, depois de me enfiar em um dos vestidos simples de algodão que Sirena havia nos dado, ainda conseguia senti-la em meus poros.

Roubei um dos candelabros na parede do dormitório e entrei no corredor. Meus olhos oscilavam entre os desenhos no mapa e as rotas diante de mim. Kendare não era exatamente uma desenhista e isso era bem visível nos rabiscos que ela chamou de mapa. E sua letra era feia, ainda por cima. Depois de quinze minutos, eu desisti de tentar interpretar o bilhete e enfiei-o no bolso do vestido.

Enquanto avançava por cada salão mergulhado em uma escuridão assustadora, eu tentei me lembrar das rotas que fiz com Yan ou mesmo algo útil que Yellena tivesse dito. Ela devia ter dito, eu que não prestei atenção. E eu retiro tudo o que disse sobre eu não ser burra. Sou sim. Pelo menos, não encontrei nenhum guarda ou Recrutador durante a jornada e isso para mim é lucro.

 Parei no meio do saguão do castelo, tremendo. O coração subindo pela garganta e olhos arregalados na escuridão permanente, apenas rompida por mim, algumas poucas tochas nas paredes e a luz ridícula da vela em meu candelabro. Que eu, por acaso, apaguei rapidamente enquanto me movia na direção de uma das pilastras, atrás da qual me escondi. Era a magia. A mesma magia de antes. Menor, mas mais perto. E se movia. E como diabos eu sabia disso?

Eu não tinha resposta e nem tempo. Retraí-me mais, o coração vibrando, esperando por alguma coisa que estava vindo.

Então, vi-o parcialmente. O vermelho estridente de seus olhos chegou até mim primeiro. Fiquei ali, sem saber onde olhar e o que quer que fosse aquilo, era absurdamente grande.

 Meus olhos o perderam na penumbra, era sombra viva, por toda parte e em todo lugar. Acho que consegui distinguir uma forma quadrúpede apenas porque havia centelhas flamejantes ao seu redor. Como vagalumes escarlates na noite. Estava dentro da escuridão, era a escuridão. Uma escuridão antiga e majestosa, coroada com um diadema de fogo e cinza vulcânica. As chamas dela estalavam e lambiam o ar, sua luz laranja deslizando na pedra do piso, passeando pelas paredes. Negro, escarlate, dourado e laranja se misturando e se desfazendo.

Engoli pavor e encantamento junto às mãos trêmulas e o maxilar tenso e me limitei a observar seus movimentos à meia luz, cada passo ondulante como o de um predador. De alguma coisa que nem era humana e nem fera, algo entre os dois. Algo além dos dois. Algo de sombras e rochas em combustão, fogo ancestral e magia selvagem. E minha mente me deu a resposta que eu não queria:

Ignir. Príncipe da Noite. Rei dos Monstros. O Terror Noturno. O Arauto da Destruição. Aquele que se assenta sobre o mundo. Ele não tinha três cabeça. Ele não precisava. Vi metade de seu corpo e só isso poderia ter me matado. E só isso teria matado qualquer um.

A penumbra móvel foi se dissipando. Deu a volta no salão e quando achei que continuaria em frente, parou diante de um cabideiro. Meu coração disparou feixes de adrenalina por minhas veias.

— Ekatherina Landford — disse a criatura. Sua voz criando ecos na escuridão. Era profunda e fria, paralisou minhas trêmulas pernas. Paralisou todo o meu corpo, todo o sangue em minhas veias e cada resquício de ar em meus pulmões. Meus olhos ficaram tão parados que começaram a arder.

Ekatherina. É como minha mãe me chamava quando queria me assustar. Ou quando fazia carinho nos meus cabelos. E agora não sei se serei capaz de ouvir meu próprio nome sem me lembrar de como a besta o pronunciou.

A sombra viva começou a desaparecer. Assim, bem lentamente, como fumaça soprada pelo vento. E só então notei que minhas unhas haviam ferido a carne das palmas das mãos. Os nós dos meus dedos haviam perdido a sensibilidade e minha garganta estava seca.

O Duque despiu-se das sombras, seu corpo voltando ao estado humano. Vislumbrei apenas o que a pouca luz me permitiu ver, os sulcos dos músculos em suas costas, como suas pernas eram longas. E demorei quase um minuto inteiro para entender que ele estava nu.

Desviei o olhar com desespero, o rosto queimando e o constrangimento tomando o lugar que fora do medo. Tentei limpar minha mente das imagens, mas eu não havia visto muito mesmo e, pela primeira vez no dia, agradeci por estar escuro.

— Mesmo que eu não conseguisse vê-la através da escuridão — Era a voz do Duque dessa vez. Tinha uma cadência rouca e esnobe, fácil de reconhecer. Com um sorriso pedante implantado nela. —, e mesmo que eu não conseguisse sentir seu cheiro a quilômetros de distância, ainda poderia ouvir seu coração. É barulhento. E tem um ritmo bem específico.

O Duque estendeu a mão despreocupadamente, pegou o roupão que havia no cabideiro e o vestiu. Eu não sabia bem como reagir. Meus músculos estavam duros demais para que eu me movesse com liberdade, mas me forcei a dar um passo para fora da pilastra. Senti os olhos do Duque sobre mim.

— Olhe só o que o gato trouxe... ­— cantarolou, cínico, e eu nem sabia que ele era capaz de cantarolar.

Me obriguei a olhá-lo, a imagem clara de Ignir ainda rondando minha mente. Aposto tudo o que tenho que meu rosto deve parecer só um borrão vermelho agora, mas não tenho controle sobre isso.

— Imploro seu perdão, Vossa Graça, eu não tinha a intenção de...

— De quê? — desafiou. — Que intenção tinha ao perambular por aqui à essa hora? A senhorita já deve saber os perigos do castelo. Então, o que pretendia... — Parou subitamente. Imaginei-o erguendo as sobrancelhas e espalmando o rosto como se soubesse um segredo. Um segredo meu. — Ah! Não me diga que estava tentando fugir. — Sorriu. Consigo sentir isso. — O portão norte já está fechado, se quiser fugir terá de ir por Seldegra. O que eu não aconselho muito, mas a senhora provavelmente já deve saber disso.

Ele deu um passo para frente e eu resisti ao ímpeto de dar um passo para trás. Estalei minha língua mentalmente. Odeio tudo sobre esse homem e mal o conheço. Se eu tiver de conhecê-lo, tenho certeza que odiarei ainda mais.

— Com todo o respeito, Vossa Graça, mas... — Respirei fundo para acalmar meu coração. Então fingi um sorriso. — Bem, ao menos dessa vez eu entraria lá por decisão própria.

O Duque riu, olhando-me como se eu fosse nada. Uma criança pequena e sem modos. Eu sou mesmo. Eu sei que sou. E mesmo assim, o olhar dele me irritava. Ele devia saber disso. Ele devia saber exatamente como fazer uma pessoa inferior se sentir inferior. Mas, então, o ridículo Duque desviou o olhar e caminhou até pequena a mesa ao lado das escadarias, logo sob uma tocha tremeluzente. Ele estendeu a mão para a garrafa de uísque que jazia ali, inclinou-a sobre um copo e entornou um gole de uma vez, sem hesitação.

— Sempre que a senhorita inicia uma frase com "com todo o respeito" — disse, depois de um segundo. —, eu sei que em seguida ouvirei algo completamente desprovido de respeito.

— Eu não...

O Duque me interrompeu depois de uma segunda dose. Ele não fez careta, mas eu sim. Imaginei a quentura da bebida descendo pelo esôfago e, se vou ter que conversar com esse homem, eu também quero um gole. Ele continuou:

— Eu sei que está confiante depois de passar por Seldegra uma vez, mas saiba que entrar na floresta sem Ignir para protegê-la não será tão fácil. Os monstros não hesitarão dessa vez.

Eu provavelmente já sabia disso. Porque o Duque estava na caravana, com Ignir dentro dele — ou sendo ele, ou seja lá como eles se conectem —, os monstros de Seldegra não nos atacaram. E então só tivemos que lidar com os espíritos, o que não é pouca coisa, mas enfrentar espíritos e os monstros seria nossa sentença de morte. Pensando nisso, acabei voltando para o dia em que arranquei o dedo de Roman a dentadas e ri comigo mesma.

— Uma vez me disseram que Ignir me devoraria por ser pestezinha — comentei, mais para mim do que para qualquer um.

O Duque inclinou o rosto, os olhos se estreitando de um jeito quase risonho.

— Eu não duvido. Ignir adora pessoas que pisam além da linha do limite.

Estremeci um pouco. Entidades separadas ou a mesma entidade? Eu queria perguntar, mas não sabia se era uma boa ideia. Não, eu sabia sim. Era uma péssima ideia.

— Sinceramente, eu estaria mais assustada se o senhor tivesse três cabeças, como nas lendas.

— Ah, as lendas. Não é bom confiar totalmente nelas. E pior ainda é ignorá-las. — A última sentença foi uma ameaça. — Mas talvez eu não fosse tão atraente se tivesse três cabeças.

Eu soltei o sorrisinho confiante que aprendi com ele mesmo, pálpebras baixas, lábios esticados só o suficiente.

— Tem razão — zombei. — Uma só com certeza lhe basta, eu fico imaginando como seria se tivesse três bocas.

— Então eu teria seis pares de caninos bem afiados. A ideia me agrada.

Um longo minuto se passou enquanto nos encaramos. O Duque está sempre muito ereto, o queixo muito erguido, olhando tudo de cima. Não que ele precise. Ele já é absurdamente alto. Mas acho que seu ego não o deixaria demonstrar qualquer tipo de inferioridade.

Me irrita ter que olhá-lo de baixo. Temos olhado homens poderosos de baixo por tempo demais e eu não queria ser como minha mãe. Eu queria zombar dele. Queria dizer algo realmente rude, mas existe um lugar até onde se pode pisar com um Duque e também a entidade mais forte do país. Ainda estou na casa dele, nas terras dele. Por agora, a falsa cortesia me bastava.

— Acho que está tarde — eu disse, depois de um suspiro. — E, ao contrário do que Vossa Graça pensa, eu não estava tentando fugir. Pelo menos, não dessa vez. Quero encontrar um caminho para a biblioteca e imagino que passar esse tempo esclarecedor com Vossa Graça tenha sido muito vantajoso para mim, mas preciso ir. Agora se me dá licenç...

— E você sabe como chegar lá? — Lançou a pergunta com desdém e levou o copo à boca. Seus olhos ainda meio avermelhados espreitando-me sobre a borda. — Porque quando cheguei aqui, você parecia bastante perdida, Ekatherina.

Eu quero que ele pare de me chamar assim. Meus músculos se retraíram e o vento fez oscilar um pouco as chamas das tochas nas paredes.

— Katherin — eu corrigi. — Pode me chamar de Katherin, Vossa Graça, todos me chamam assim. Ekatherina é como minha mãe me chamava quando estava zangada comigo.

O Duque riu e largou o copo sobre a mesinha num movimento desinteressado. Então, encurtou a distância entre nós o suficiente para que eu pudesse ver os resquícios da magia velha em seus olhos. E sentir o hálito de uísque em sua boca.

— Suponhamos que eu esteja sempre um pouco zangado com você, Ekatherina. — Estendeu a mão na direção do corredor norte. — Eu irei acompanhá-la. Só para o caso de você se perder de novo.

Não. Não. Não.

— Não há necessidade de se incomodar...

— Não é incômodo nenhum. Vamos.


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Notas finais do capítulo

Estou pensando em começar uma webtoon. Se eu vou terminar? Ai é outra história.

Até mais!



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