Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 5
V




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Era incrível o quão mais tranquilo e menos estressado Miguel vinha se sentindo ultimamente, e mais incrível ainda o quanto ele detestava isso.

Nunca tinha experimentado algo tão paradoxal em sua vida, e lhe levou dias de reflexão e análise do que vinha vivendo e de seus sentimentos para entender daquilo ser um leve surto de ansiedade. Ele ia para a escola, encontrava seus novos amigos — seria idiotice tentar escapar da palavra depois de tudo, afinal, ele, Pedro, Clara, Lucas, Arthur e Zé Dois eram praticamente inseparáveis agora —, divertia-se com eles pelo dia inteiro e se esquecia de todos os motivos que tinha para se preocupar com algo. Então, por algum motivo, chegar em casa ligava algum reflexo paranóico em seu subconsciente, e o garoto passava as tardes afundando em livros, estudando para o vestibular e tentando não pensar em nada além disso.

No meio disso tudo, as aulas de teatro tinham se tornado uma verdadeira bênção. Miguel não sabia dizer exatamente o que acontecia, mas entrar na sala, imergir-se em cenas improvisadas, pequenas comédias e passar texto da montagem de Auto da Compadecida que estavam terminando de refinar vinha fazendo exatamente o que o teatro prometera ser para ele desde o começo: uma porta para uma realidade paralela onde pudesse apagar de sua cabeça, um pouco que fosse, todas as suas dores de cabeça.

Miguel tinha pegado o papel de Chicó. Não era do tipo de brigar pelo papel principal, estava até interessado em fazer o Cangaceiro, mas o papel de Chicó tinha sido dobrado com o do Diabo na montagem deles pelo tamanho bem pequeno do grupo, e principalmente, a falta de atores masculinos. Sendo Diabo um dos papéis de interesse de Miguel, ele acabou pulando na oportunidade, e naquele momento, estava muito satisfeito por isso.

— Eu pensei que você tinha morrido, João! — Miguel exclamou, dando uma olhada de canto de olho para o calhamaço de papel com suas falas que segurava na mão naquele momento.

— E o que é que tem isso, homem? — Gustavo, o garoto com quem dividia a cena, respondeu. Ele não estava com as falas dele escritas. Parecia ter decorado tudo muito bem.

— Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a Nossa Senhora para… para… ô merda — Miguel parou, puxando o papel para perto dos olhos e suspirando enquanto relia as falas. — Ok, perdão. Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a Nossa Senhora para dar todo o dinheiro a ela, se você escapasse!

Ele suspirou, passando as mãos pelo rosto e olhando cansado para a professora. A mulher se levantou da cadeira de onde vinha assistindo e reposicionou os dois na cena.

— Mais uma vez — ela orientou. — Miguel, você precisa ficar mais atento. Estou acertando a apresentação no recital e vai ser em uma data próxima.

— Eu sei — ele respondeu, suspirando e relendo as falas mais uma vez. — Me desculpe, vamos mais uma vez.

Ele colocou o papel de lado, respirou fundo e alongou os braços. Tudo bem, conseguia fazer isso, só precisava se concentrar. Concentrar…

Mas Miguel vinha tendo um probleminha ultimamente. Probleminha, pequeno, ele insistia, porque se recusava a pensar na possibilidade de ser algo grande ou importante. É claro que não. Certamente era apenas um devaneio de alguma espécie, algo minúsculo de seu subconsciente que desapareceria sozinho. Mas a verdade era: ultimamente vinha se sentindo um tanto distraído.

Não sabia o que vinha gatilhando isso, e acontecia nas formas mais esquisitas possíveis. Num momento estava focado em uma equação matemática, e no seguinte, sua mente viajava entre os números do papel para pensamentos de tardes em gramas verdes, piqueniques, e partidas de futebol. Nunca tinha sido assim. Se focar e controlar suas atividades nos momentos certos sempre tinha sido uma das maiores qualidades de Miguel, algo do que ele mais se importava, e ali estava agora, sem entender porque ficava de repente lembrando alguma de suas memórias divertidas com Lucas e os outros ou ainda imaginando novos momentos que pudessem criar juntos.

Sim, Lucas e os outros, porque era sempre dessa forma. Lucas e Clara. Lucas, Clara e Pedro. Lucas, Arthur e Zé Dois. Lucas. Lucas. Sempre Lucas. Com aquele brilho único no rosto de quem tinha passado iluminador de manhã — sim, depois de perguntar pela terceira vez o que era aquele brilhinho tão curioso no rosto do colega tinha finalmente aprendido o nome — ou com a boca também brilhando, principalmente quando batia luz sobre ela. Lucas tinha o cabelo cacheado, e volta e meia passava a mão pelos cachos com cuidado para arrumar. Nunca atravessando os cachos com os dedos, seria um sacrilégio, ele dizia. Apenas enfiando os dedos na raiz e os balançando de um lado para o outro para os cachos arrumarem sozinhos.

Lucas usava desodorante perfumado, forte, e enchia o ar quando se aproximava. Miguel descobriu depois de perguntar um dia daquilo ser desodorante corporal mesmo, daqueles para espirrar de cima a baixo com ele. Às vezes ele aparecia com uma corrente no pescoço, e em uma ocasião muito rara, Miguel o viu com um brinquinho de cristal branco em uma das orelhas. Lucas explicou que só usava muito de vez em quando porque era de pressão, pois os pais jamais o deixariam furar a orelha, e por ser de pressão, o machucaria se usasse demais.

Lucas era cinéfilo e viciado em livros. Lia e assistia coisas com uma velocidade incrível, e sempre tinha muitos comentários a fazer. Tinha um interesse visível pelo assunto, e uma vontade de seguir carreira no cinema, como diretor, maquiador, ou as duas coisas, uma combinação que Miguel achou muito divertida mas, ao mesmo tempo, muito a cara de Lucas. Quando falava sobre os seus livros preferidos — mudava com frequência, atualmente era uma série de fantasia urbana que tinha comprado na internet — seus olhos brilhavam, combinando de maneira incrível com a maquiagem iluminada dele, e ele abria um sorriso tão largo que era de dar inveja.

É. Estava, de fato, distraindo-se muito. Por mais simples que seus devaneios de tardes com os amigos começassem, sempre iam parar em Lucas de alguma forma, e por mais que Miguel estivesse fazendo um trabalho de dar inveja em ignorar tudo isso, fingir que nada estava acontecendo, a verdade era muito mais direta do que muitas vezes se fazia parecer.

Mas não importava o que queria, ou sentia. Não havia espaço para isso em sua vida, e poderia ser perigoso dar vazão a esses sentimentos bestas. Só precisava aguentar mais alguns meses de escola, certamente poderia fazer isso mantendo as amizades as quais estava se apegando muito sem colocar tudo a perder, não é?

— Miguel — ele ouviu Gustavo o chamar, acenando a mão em sua frente. Droga. Tinha se distraído mais uma vez, não tinha? — A cena.

— Sim, sim, a cena, a cena… — o garoto respondeu, pigarreando e alongando os braços por alguns segundos, antes de recomeçar. — Eu pensei que você tinha morrido, João!

— E o que é que tem isso, homem?

A dupla refez a cena mais algumas tantas vezes antes de finalmente acharem, até tanto eles quanto Marisa acharem que estava de bom tamanho. E não poderiam ficar fazendo muito mais, de qualquer forma, pois era hora de encerrar a aula pelo dia. Ela chamou todos os alunos para um último alongamento e uma roda de conversa, e Miguel já começou a sentir naquele momento um leve vazio pelo seu adorado momento de paz na tarde estar chegando ao fim.

— E um último aviso a todos — ela continuou, pegando uma pilha de panfletos e começando a distribuir entre os atores. — Eu agendei a apresentação, como tinha avisado. A noite de estreia do Auto da Compadecida vai ser no Festival Café com Queijo, estamos agendados para sexta-feira às oito horas. É aberto, então podem chamar quantos amigos e familiares quiserem para assistir.

Por alguns segundos, Miguel sentiu algum tipo de inquietação ao receber o panfleto e o encarar em suas mãos. Sentia que devia estar se lembrando de algo muito importante agora, mas não conseguia por nada no mundo se lembrar do que. Ele encarou o panfleto, virando-o para trás e vendo nele uma lista de atrações marcadas para cada dia. Ainda estava um tanto distraído, lendo a lista, quando seus olhos passaram por cima de um nome vagamente familiar de uma companhia de balé.

Oh. Oh não. Não, não, não…

Ele engoliu em seco, sentindo o sangue correr para fora do rosto e tendo muita certeza de estar pálido como uma folha de papel. Aparentemente isso tinha também sido reparado por Marisa, que ajeitou os óculos e se inclinou um pouco para a frente.

— Miguel, você está doente? Tem estado aéreo o dia inteiro, e agora tá branco como uma folha de papel… Alguém pegue um copo de água para ele, por favor.

Gustavo começou a se levantar no mesmo instante e Miguel virou o rosto para o garoto, levantando as mãos em um pedido silencioso para ele não se levantar.

— Não precisa — respondeu, às pressas. — Estou bem, não precisa.

Marisa o olhou de forma desconfiada por alguns instantes, e Miguel teve a consciência de não estar enganando absolutamente ninguém com essa sua resposta. Ainda assim, ela pareceu julgar suficiente, ao menos pelo momento e encerrou a reunião, mandando todo mundo para casa.

Ou assim Miguel imaginou. Quando o garoto se levantou, zonzo, e pegou a mochila do chão, pronto para ir para sua casa, não achou que teria de dar explicações para Marisa sobre qualquer coisa. Mas precisou. Ali estava ela, parada à sua frente quando se virou, com o olhar adivinhador que ela tinha e usava com muita habilidade.

— O que está acontecendo? — Ela perguntou.

Não precisou especificar. Distraído como estava ultimamente, e agora com essa reação depois de receber o panfleto, ela teria com certeza percebido algo. O problema era, obviamente, como poderia responder a essa pergunta? O que deveria dizer? Que estava se distraindo por alguma paixonite besta da adolescência? Que não podia de forma alguma ir àquele recital pelo risco de esbarrar com colegas da escola por lá, uma vez que uma estaria dançando, o outro maquiando a companhia de balé dela, e então teria de explicar a eles sobre fazer teatro nas horas vagas? Que tinha vergonha de seu hobby como ator por conta das implicações que isso já tinha trazido em sua vida?

Implicações essas desconhecidas por Marisa, e Miguel queria muito que continuasse assim. Então honestamente, o que iria dizer?

— Eu não posso ir — respondeu, de vez. Ia inventar alguma desculpa, qualquer uma, mas não poderia estar lá. — Eu… Minha tia vai estar lá em casa e ela tem uma cirurgia pra fazer. Meu pai quer que eu fique em casa pra ajudar.

Quanta mentira. Ele nem mesmo tinha tia, seu pai era filho único, assim como ele. Miguel apertou a alça da mochila, torcendo para sua mentira ser crível o suficiente, para Marisa aceitar a resposta e não perguntar mais nada.

Ela aceitou, mas isso não significou seu silêncio. A mulher suspirou, ajeitando os óculos e parecendo de repente bastante chateada.

— Nós não temos ator substituto, Miguel. Você tem certeza que não pode ir? Não dá pra fazer a peça sem o Chicó.

E a culpa o atingiu de vez como um soco no estômago. Se não fosse ao recital, tinha certeza, Marisa cancelaria a apresentação. E isso ia tirar de todos os seus colegas algo pelo qual vinham ensaiando já há muito tempo. Meses e meses de trabalho jogados pelo ralo, por uma mentira dele.

Inferno.

— Eu… Vou ver o que posso fazer. Te aviso na próxima aula, ok?

— Tudo bem — a mulher respondeu, com um sorriso um pouco triste e melancólico. — Espero que fique tudo bem com sua tia. Não é nada sério, é?

Inferno ao quadrado.

— Ah, não… Mas é na perna, sabe, então ela não vai poder andar, e todo o resto.

— Entendi.

E o tom triste na voz de Marisa fez Miguel se arrepender na mesma hora das próprias palavras. Não podia fazer isso com ela, e com o resto de seus colegas de elenco. Devia muito de sua paz de espírito a eles, principalmente nos últimos meses, e ia simplesmente os dar as costas dessa forma? Não era certo. Mas se Clara ou Lucas o vissem lá…

Ele conteve a vontade de suspirar, apertando a alça da mochila no ombro.

— Eu vou ver o que posso fazer — respondeu, já se odiando por não conseguir escapar de algo que poderia acabar se arrependendo muito de fazer. — Aviso com antecedência, ok?

Um “talvez” foi o suficiente para colocar um sorriso no rosto de Marisa. Simples, um pouco maternal, mas estava lá.

— Ok. Aguardo notícias suas.

Ele se despediu de Marisa, e antes mesmo de sair do prédio sabia que iria comparecer ao festival. Miguel seguiu até sua casa, relendo o roteiro da peça no ônibus e tentando memorizar suas falas com mais precisão. Se ia mesmo fazer essa peça, e se corria o risco de ser visto em cima do palco, que ao menos fizesse do melhor jeito possível. Pior que ser chacota por ter “passatempo de menina”, seria ser chacota por “ser ruim em passatempo de menina”.

Miguel chegou em casa cansado, frustrado e ansioso. Reconheceu os sinais ao fechar a porta atrás de si. O coração acelerado, um suor frio atrás da nuca e uma fome incontrolável que não estava ali antes. Era o tipo de sintoma que o indicava o tamanho de seu desespero.

Não podia dar atenção a isso. Sabia que não. Ele tentou se focar nas atividades comuns de seu dia, como estudar um pouco e passar outra parte do tempo jogando um video-game de futebol na sala, mas por todo o tempo aquela pulguinha estava o mordendo atrás da orelha, quase um mosquito sussurrando “e se?”.

Sendo racional, conviviam com Lucas diariamente, e ninguém ali parecia ligar de verdade. Até Arthur, incrivelmente fora de senso comum na maioria das vezes, não parecia se importar com o fato de Lucas ser gay, ele não entendia várias coisas e fazia comentários esdrúxulos, mas na maioria das vezes bastava alguém corrigir para ele se calar.

Mas era Lucas. Lucas usava maquiagem, dançava Lady Gaga com Clara no corredor e até falava fino de vez em quando. Ninguém esperava algo diferente disso vindo dele. Outra coisa seria Miguel ser descoberto gay. Miguel, que era fisicamente forte, falava de futebol e escutava sertanejo. Miguel que sequer sabia o nome do trequinho brilhante que Lucas usava no rosto até pouco tempo atrás.

Sabia o que ia acontecer. Já tinha visto esse filme.

Não acredito que você enganou a gente esse tempo todo!”

Tu é viado? E tá pagando de hétero pra que, pra manjar rola no banheiro?”

Que nojo cara, eu troquei de roupa na sua frente no vestiário!”

Falso. Enganador. Traíra. Nojento. Ninguém ia querê-lo por perto depois disso. Certamente não Arthur. Talvez nem Pedro ou Zé Dois. Sabia que não devia ter feito amigos, sabia que não devia ter tentado. Era tudo como um castelo de cartas, afinal, a um toque de cair. E agora, seu toque estava ali, a alguns dias de distância: podia faltar à apresentação do teatro, e magoar a professora e os colegas com quem convivia há anos em segredo por pura vergonha, ou ir à apresentação e ser descoberto por seus novos “amigos”, o que invariavelmente tornaria sua vida na escola um inferno. Mais uma vez.

Infelizmente — ou felizmente — para Miguel, seu pai o tinha ensinado a ser honesto acima de qualquer coisa. E no fim das contas tinha sido essa certeza de honestidade que tinha feito o homem o defender no evento de sua expulsão do colégio anterior. Não podia quebrar essa qualidade agora. Sua honra era tudo o que tinha, e que ninguém nunca poderia tirar de si.

Ele pegou o telefone e discou o número de Marisa.

— Alô? Miguel?

— Ah, oi. Só ligando pra dizer que conversei com meu pai, e tá tudo certo. Eu vou poder ir sim. — E então, ainda temendo ser visto por lá, se sentiu na obrigação de completar. — Só não posso ficar fazendo hora nem antes e nem depois, então eu devo chegar mais na hora e ir embora logo depois.

— Ah, tudo bem, maravilhoso! Que coisa boa que você conseguiu! Vai ser ótimo, vou começar a ver as coisas do figurino e do cenário. Obrigada Miguel, vou mandar uma agenda de ensaios gerais para todos depois.

Ele concordou com a cabeça, percebendo logo depois que ela não teria visto isso e dando uma confirmação verbal em seguida. A empolgação na voz de Marisa ao despedir, foi o suficiente para Miguel ter certeza de ter feito a coisa certa.

Mas e segura? Seria também a escolha segura?

Achava que não. Ele pegou o controle e voltou a se concentrar no jogo. Era melhor não precisar pensar muito por agora.


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