Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 3
III




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Miguel estava convencido, à essa altura, de se precisasse se descrever com uma única palavra para alguém que não o conhecesse ainda, a palavra adequada seria “trouxa”.

Começou com os treinos do time de futebol. Agora com ele sendo parte da equipe da sala, não podia recusar aparecer nos treinos marcados, seria muito errado de sua parte. E não era como se acontecessem todos os dias, era mais uma coisa semanal, raramente duas vezes por semana, e mais se parecia com uma pelada informal do que um treino de qualquer forma. Ele estava convencido dos garotos só chamarem aquilo de “treino” para terem uma desculpa para marcar tantos jogos na quadra assim, e Miguel não podia argumentar com a estratégia. Funcionava.

Então, por conta disso, ele vinha se reunindo com esses garotos bem mais do que lhe anteriormente interessava fazer. E, como uma coisa puxava a outra, em um dos dias se pegou aceitando ir comer um podrão depois da aula com eles. Para alguém não muito interessado em conversas, ou amigos, ele vinha traindo suas próprias imposições com uma habilidade quase invejável. Chegava a começar a imaginar quanto tempo levaria para desistir de vez das próprias imposições. Talvez, no fundo, de forma subconsciente, já tivesse desistido.

O que o fazia considerar essa hipótese era o momento presente. Era sexta-feira, e um dos jogos do torneio das salas marcados para aquele dia era o primeiro jogo de sua sala no qual iria participar. Era contra um dos times de terceiro, de acordo com Pedro não eram lá grandes coisas, mas não podiam dar mole com time nenhum e portanto todo jogo devia ser levado a sério. Miguel não podia deixar de concordar, afinal, sua turma estava brigando com outras duas para ter pontos para ir para as semi-finais. Todo jogo era jogo.

Naquela tarde, ele estava com Pedro em um dos cantos da arquibancada. Tinham chegado um pouco antes, e ainda esperavam o resto da turma aparecer. Sentados para ver o jogo, como Miguel já tinha acostumado a ver, estavam Clara, a garota por quem Pedro era visivelmente apaixonado, e Lucas, o melhor amigo que sempre andava com ela.

Miguel só estava naquela escola há algumas semanas e já achava incrível, pra dizer o mínimo, ver o quanto Pedro parecia ignorar os próprios sentimentos. Ele se perguntou diversas vezes se alguém tinha tido o tato de dizer a ele para seguir o próprio coração e, finalmente, decidiu que não lhe interessava se alguém já tinha feito isso ou não. Iria repetir a mensagem ainda assim.

— Você tá babando — comentou, apoiando o cotovelo na perna e o queixo na mão.

— Hã? Não tô não.

— Tá sim. Fala sério, você já tentou, sei lá, chamar essa menina pra sair? Vai que ela aceita.

Para o desespero de Miguel, a resposta de Pedro foi um bufar sarcástico. Ele passou a mão pelo cabelo, ajeitando os cachos afro por um instante antes de se virar para Miguel e perceber que realmente o garoto tinha falado sério.

— Tá de brincadeira? Eu? Chamar a Clara pra sair?

— É uai. Por que não?

Miguel franziu a testa, tentando identificar qual seria o impedimento tão óbvio na situação que ele não conseguia ver. Pedro continuava o encarando como se a resposta fosse gritante como um elefante de tutu dançando salsa, e Miguel continuou sem entender nada. De repente começou a se sentir burro. E incomodado. Ele franziu a testa, encarando Pedro um pouco irritado por não receber resposta nenhuma e por fim o amigo pareceu desistir. Suspirou, pegou o rosto de Miguel e o girou até estar de frente para Clara.

— Olha bem pra ela. Tá olhando?

— Tô, caramba.

— Ótimo. Agora — ele girou o rosto de Miguel de novo, agora para que ele o encarasse. — Olha pra mim. Não tá vendo nenhuma diferença gritante não?

Diferença gritante? Bem, ela era uma menina, isso parecia bem gritante e parecia também ótimo para Pedro uma vez que estava interessado nela, mas também…

Oh. Oh.

— Você acha que ela não vai querer sair com você porque você é negro?

A cara feita por Pedro em seguida, uma de obviedade indicando dessa ser a resposta mais óbvia do mundo, fez Miguel se sentir mais burro e incrédulo ainda. Isso era no mínimo delírio de Pedro, e no máximo muito injusto, já que ele chegava a ponto de pensar isso antes mesmo de tentar.

— Pedro, tentar não tira pedaço.

— Não preciso ouvir a resposta de uma pergunta que eu já sei, obrigado.

— Você quer que eu fale com ela pra você?

— O quê? Não, Miguel, pelo amor de Deus, deixa isso quieto! A Clara tá bem lá pro lado dela, e eu vou ficar bem aqui pro meu. Fim do assunto. Entendido?

Mas apesar de toda a assertividade, Pedro parecia muito chateado quando disse essa última frase, e Miguel continuou com o sentimento muito apertado no peito disso não ser correto. De forma alguma, simplesmente não era. Ele tinha ao menos o direito de tentar. Não podia ficar dizendo a si mesmo que não era digno da tentativa.

Decidiu que ia insistir no assunto, mas depois. Agora, Zé Dois estava se aproximando com Arthur, parecendo um tanto incomodado com alguma coisa. Eles estavam discutindo. Não parecia nada bom.

Miguel trocou um olhar rápido com Pedro e os dois desceram da arquibancada, correndo até os outros dois com olhares muito inquisitivos no rosto.

— O que aconteceu? — Pedro perguntou, quando já estavam perto o suficiente.

— Zé Bica sumiu, cara — Arthur respondeu, parecendo até um pouco vermelho de raiva. — Simplesmente sumiu. Puff.

— Tá me zoando? — Miguel questionou, olhando para a quadra e vendo os cinco jogadores do time adversário já começando a se posicionar na quadra. — Caramba não dá pra jogar com quatro só, dá?

— Só se a gente quiser virar comida do terceiro ano A — Zé Dois respondeu. — Fodeu, galera.

— E o Juca? — Miguel perguntou, referindo-se ao sexto garoto que costumava treinar com eles.

— Juca só joga no treino pra fechar dois times de três — Pedro respondeu. — Ele odeia competir, só joga pra zoar. Já deve até ter ido embora.

É. Como dizia Zé Dois, “Fodeu, galera”. Miguel suspirou, pensando no azar que tinha dado com essa situação. Sua vontade de jogar vinha lutando tanto com sua vontade de ficar longe das pessoas, que no fim das contas talvez o desaparecimento de Zé Bica fosse uma manifestação de seu carma em castigá-lo por desprezar tanto a equipe na qual queria fazer parte.

— Se for pra jogar de quatro, é melhor nem jogar — Zé Dois comentou. — Tenho amor às minhas canelas.

— Para com isso, Zé, deixa de ser frango — Arthur respondeu, dando um tapa nas costas da cabeça de Zé Dois. — A gente entra lá e joga assim mesmo, foda-se. Eu que não quero perder sem ter tentado, que coisa de gente medrosa!

— Hm… Galera — Pedro cortou de repente. — Tem um cara da nossa sala aqui na escola ainda.

— Cadê? — Arthur perguntou, e Pedro respondeu apontando com o polegar para onde Clara e Lucas estavam sentados.

Miguel ergueu as sobrancelhas, surpreso com a sugestão. Não tinha pensado nisso, e aparentemente seus colegas também não. Zé Dois inclinou a cabeça para o lado, pensativo sobre a sugestão, mas Arthur continuou tão indiferente quanto estava antes.

— Cadê? — perguntou de novo. — Só to vendo o Lucas ali. Ah, espera, é sério? Ele não era viado? Viado joga futebol?

De repente, Miguel quis muito dar um tapa na cabeça de Arthur, mas não ia ser igual o que ele tinha dado em Zé Dois, não. Ia ser pra ele tropeçar pra frente até dar com a cara no chão.

— E ele deixa de ser homem por causa disso, Zé Mané? — Zé Dois retrucou. — É botar ele no campo, desde que seja pra dar volume, ou não jogar, porque com um a menos eu não jogo. Seria loucura!

— Isso parece uma ideia ruim — Arthur retrucou. — Eu vou ligar pro Zé Bica…

— A gente já fez isso cinco vezes, Arthur — Zé Dois cortou de vez. — Eu voto pra chamar o garoto ali. Quem vota comigo?

Zé Dois levantou a mão, e Pedro também. Miguel não conhecia Lucas, não sabia se ele sabia jogar ou se ele sequer tinha interesse pelo esporte, mas sabia ver uma solução milagrosa para um problema quando ela aparecia em sua frente. Ele levantou a mão também, e os três se viraram para Arthur, este revirou os olhos e cruzou os braços.

— Tá, que seja! Não parece que tem outra escolha mesmo… Mas se ele tiver afundando o time, eu paro o jogo e mando ele de volta pra arquibancada!

Foi o bastante para Pedro, que abriu um sorriso, esfregou as mãos e saiu correndo em direção às arquibancadas. Miguel e os outros assistiram em silêncio enquanto ele cumprimentava Clara com um sorriso grande e um beijinho no rosto muito educado, e depois Lucas com um aperto de mão. E então eles estavam conversando.

Não dava para ouvir nada dali, mas dava para interpretar um pouco que fosse de acordo com as expressões dos envolvidos. Lucas se inclinou um pouco para trás em algum momento, e Miguel leu surpresa na expressão corporal dele. Depois indecisão. Estavam conversando, Pedro deu de ombros e Lucas trocou um olhar com Clara. Eles deviam estar conversando, embora Miguel não pudesse ver o rosto de Lucas por ele estar virado de costas para si agora. Seja lá o que tivessem conversado, pareceu funcionar, pois Lucas se levantou da arquibancada e começou a tirar o relógio e os óculos de sol que usava,deixando-os com Clara. Pedro acenou para que eles subissem para a quadra, e Miguel e Zé Dois foram sem hesitar, sendo seguidos por um Arthur hesitante atrás deles.

— Seguinte — Pedro comentou, quando finalmente chegaram perto o suficiente. — Ele disse que joga.

— Joga, é? — Arthur resmungou, ainda muito cético. — Onde?

— Com meu pai, alguns fins de semana. Tem esse negócio que ele e os amigos dele se juntam e levam os filhos pra todo mundo jogar junto.

— Joga onde? — Zé Dois questionou.

— Ataque.

— Viram? É perfeito pra ficar no lugar do Zé Bica — Pedro respondeu. — Valeu Lucas, tá quebrando um galho e tanto.

O garoto deu de ombros, balançando a cabeça para o lado em um gesto brusco para tirar uma mecha de cabelo cacheado da testa.

— Imagina, adoro futebol — ele respondeu, sorrindo. — Vamos lá então, eu vi o terceiro A jogando três vezes já. Eles adoram atacar do lado direito, o atacante deles é destro.

Jogava com frequência, preenchia direitinho a posição de Zé Bica e ainda tinha conselho estratégico para dar. Parecia de muito bom tamanho para Miguel, e também para Pedro e Zé Dois. Até Arthur pareceu se conformar, e ao menos parou de reclamar ou encarar Lucas com desconfiança, apenas seguindo para o meio da quadra.

— Zé Dois, o gol é seu — Pedro anunciou, avançando para jogar a moeda, uma vez que era o capitão informal do time. — Arthur e eu vamos defender, Miguel, você dá suporte pro Lucas atacar. Tem tudo pra dar certo, gente.

Zé Dois pegou luvas de goleiro emprestado com o goleiro do primeiro ano que estava jogando mais cedo, e o time começou a se preparar. Miguel esperou Pedro jogar a moeda com o capitão do outro time — perdeu, e acabaram ficando com o campo de frente pro Sol no primeiro tempo. Mas ao menos podiam começar com a bola.

O juiz, hoje um garoto de um segundo ano, colocou a bola no chão no meio dos dois, e Miguel parou de frente para ela, pronto para dar a saída para Lucas. O garoto o encarou, com as mãos na cintura e a postura um pouco quebrada para a esquerda. Bem, não queria fazer análise nem acusar ninguém, mas não era à toa que faziam tantos comentários sobre Lucas ser muito gay. Ele não era exatamente discreto.

Por algum motivo, aquilo deixou Miguel levemente desconfortável. Ele pigarreou, coçando a nuca por um instante e desviando o olhar para a bola no chão. O juiz do segundo ano apitou no apito de plástico que vinha em chiclete dele, e Miguel deu a saída para Lucas começar a jogar.

Miguel não fazia ideia do que esperar de Lucas na quadra, e percebeu muito rápido, ninguém fazia. O lado ruim era que, não conhecendo o jeito dele de jogar, a conexão entre os dois ficava um pouco desalinhada. Lucas perdeu algumas bolas que Miguel achava muito óbvias, mas conseguiu pegar umas outras que para ele seriam muito mais difíceis de achar. Felizmente, pelos trinta minutos de jogo, isso aconteceu pouco, e o que apareceu de verdade foi o lado bom: Lucas jogava muito bem.

Se era sério mesmo a tal história da pelada de domingo com o pai, os amigos do pai e os filhos dos amigos, Miguel não sabia, mas devia ser, porque Lucas jogava como quem tinha hábito de fazer isso. Sabia dominar a bola, sabia até fazer uma ou outra gracinha. Chegou a ver uma pedalada rápida para cima de um zagueiro do outro time, e embora o jogo tivesse sido equilibrado, seu time acabou ganhando de dois a um, muito graças a como Lucas vinha jogando.

Por um lado, não era como se fosse difícil superar Zé Bica, ele tinha um talento muito nato para errar os chutes dele. Mas por outro, Lucas sabia mesmo o que estava fazendo, e quando o jogo acabou e eles saíram vitoriosos, Miguel teve uma certeza: boa parte disso era graças ao garoto. E, quanto o time se reuniu após o fim da partida, ele viu que não era o único a pensar assim.

— Caaaaaaara! — Arthur exclamou, com as mãos na cabeça em choque absoluto. — ‘Ce tá me zoando que ‘ce tava na sala sabendo fazer isso esse tempo todo e nunca entrou pra jogar com a gente? Que que é isso cara, masoquismo? Tava legal assistir o Zé Bica chutar a bola na quadra de vôlei?

— Do jeito que você fala parece até que eu sou o atleticano do segundo ano…

— Arthur tem razão — Zé Dois respondeu. — Por que não veio jogar com a gente antes?

Nesse momento, um tom rosado subiu para as bochechas de Lucas, e ele abaixou o rosto, visivelmente evitando olhar para Arthur. Nesse momento, Miguel percebeu que o garoto sabia muito bem tudo o que era dito sobre si pelas costas. É claro que sabia, todo mundo sabia do jeito de Arthur de ser escandaloso. E Miguel se sentiu furioso. Ele queria poder dizer alguma coisa, qualquer uma, mas não queria chamar atenção para si. Pelo amor do universo, não podia fazer inimigos, principalmente um como Arthur. Não aguentaria passar por tudo aquilo de novo.

— Tudo bem, foi legal ajudar vocês, — Lucas acabou respondendo, por si só — mas acho que foi uma coisa de uma vez só pra mim.

— Não diga isso — Pedro respondeu, agora praticamente de costas para Arthur enquanto falava com Lucas. — A gente poderia realmente usar você aqui na equipe. Precisamos de ajuda. Zé Bica é legal, é nosso amigo, mas não sabe chutar nem se a vida dele depender disso. Por favor, cara…

Miguel pode perceber como Lucas se sentiu pressionado naquele momento. Ele ia acabar cedendo, conseguia sentir, era difícil negar as coisas para Pedro. Ele era simpático e educado demais. Mas ficar numa equipe com Arthur no meio dela ia ser um inferno para Lucas, imaginava. Não, não imaginava. Sabia.

— Deixem ele respirar — Miguel interviu. — Olha, eu to com fome. Vocês também?

— Varado — Zé Dois respondeu, rápido, parecendo satisfeito com a mudança de assunto. — Vamos comer um hambúrguer. Temos que comemorar a vitória, não é?

Mais ou menos nesse momento, Clara os alcançou, e Lucas pareceu muito aliviado com isso. Ele parecia ansioso para sair dali. O garoto parecia prestes a anunciar o seu desinteresse em segui-los à lanchonete, Miguel conseguia ver nos olhos dele o quase desespero por uma chance de ir embora dali, mas para sua infelicidade, Pedro foi mais rápido que ele.

— Ah, Clara! — ele exclamou, acenando para a garota. — Você também tá convidada.

— Estou? — ela perguntou, com um sorriso gentil no rosto. A garota tinha a voz e os trejeitos tão delicados quanto sua aparência denunciava, mas segurava a mão de Lucas com bastante força, Miguel percebeu, provavelmente dando apoio para ele. — Onde estamos indo?

— Comer hambúrguer — Zé Dois respondeu, pegando sua mochila do chão e alongando os braços um pouco.

— Ah, legal! Vamos sim!

Lucas olhou para Clara naquele momento com o que parecia muito desespero no olhar, mas Miguel percebeu muito rapidamente dele ser o único prestando atenção nisso. Clara deu de ombros, enlaçando o braço no do amigo, decidida a ir na lanchonete e arrastá-lo junto com ela. E assim, Lucas não conseguiu fugir da situação.

 

*

 

Estavam os seis na lanchonete, enfim. Miguel acabou se vendo sentado ao lado de Lucas na mesa a qual tinham escolhido, estando Clara ao lado de Lucas e Arthur, Zé Dois e Pedro do outro lado da mesa. Tirando o fato de Lucas parecer um pouco deslocado no local, todo mundo se divertir de alguma forma, conversando uns por cima dos outros, roubando batata da mesa do colega e, Miguel percebeu em dado momento, flertando. Ou quase.

Havia um clima e um excesso de sorrisos sendo trocado entre Clara e Pedro na mesa, e em algum momento Pedro acabou até trocando de lugar com Arthur, para ficar de frente para ela — deixando Arthur na frente de Miguel, para desespero do garoto. Felizmente, Zé Dois parecia estar entretendo Arthur o suficiente por conta própria, e sem querer interagir com Arthur no momento, e vendo muito claramente que não seria nem vela, mas sim castiçal inteiro se tentasse conversar com Pedro ou Clara, acabou jogando em seu pequeno cantinho de silêncio com Lucas.

Não sabia o que pensar disso. Não que tivesse algo contra o garoto — não tinha, muito pelo contrário, ele parecia muito simpático e fácil de lidar — mas a simples presença dele ali já era o bastante para incomodar Miguel em alguns pontos mais… essenciais. Lucas era muito autêntico. Só agora, sentado ao lado dele, Miguel percebeu do garoto usar alguma maquiagem brilhante muito leve sobre os lábios e nos olhos também, o tipo de coisa que teria passado despercebida se a lâmpada da lanchonete não estivesse batendo exatamente em cima do rosto dele.

Era corajoso, para dizer o mínimo. E incômodo. Sim, incomodava Miguel. Ele não queria se sentir incomodado, mas sentia. E não sabia o que fazer sobre isso.

— Você conversa muito com o Pedro? — Lucas perguntou, de repente, a voz baixa e quase sussurrada, claramente não querendo ser ouvido pelas outras pessoas da mesa. O timbre dele era normal, o que parecia louco para Miguel que o esperava falar com a voz fina sempre que abria a boca.

— Um pouco — respondeu, achando melhor não dar sinais de amizade ou relação duradoura com ninguém. Não quando estava tentando se manter em seu próprio canto. — Por quê?

Lucas inclinou a cabeça sutilmente em direção a Clara e Pedro, que agora riam de alguma coisa, e ele tinha voltado a roubar batatas da bandeja dela, a qual ela já tinha parado de comer.

— Ele tá a fim dela? Tipo, pra valer?

Pra valer? Miguel franziu a testa, perguntando-se o que devia responder com isso. Tinha jeito de estar a fim de alguém sem ser pra valer? O que Lucas considerava “pra valer”? Que métrica era essa?

— Isso é lá coisa que eu deva responder por ele? — Miguel perguntou de volta, sentindo-se um pouco intimado a dar uma opinião pessoal demais em algum assunto que não devia ser da sua conta.

— Desculpe. Eu não ia dizer pra ela nem nada, é só que… Ela gosta muito dele. De verdade. Mas ele não parece interessado e eu tenho medo dela se iludir de alguma forma e acabar se machucando.

Miguel se virou para Lucas de uma vez. Ela gostava muito dele? E Pedro estava ali, sentindo pena de si mesmo e achar que estava querendo algo fora do seu alcance? Miguel quase riu. Precisou estufar a boca com batatas apesar de já estar cheio para se impedir de reagir de cara, o que poderia acabar sendo até rude de alguma forma. Ele engoliu as batatas e se virou para os dois novamente. Pedro parecia sem graça. Não era algo que Miguel tinha visto nele até aquele momento.

— Eu não acho que ela vai se iludir — Miguel respondeu de uma vez. — Sei que está preocupado com sua amiga, talvez possa, sei lá, incentivar ela a tirar a prova por si mesma? Quem sabe?

Ele não sabia como dizer de outra forma que sim, Clara podia dar a cara a tapa e teria uma resposta positiva. E os dois só tinham a ganhar com isso.

Lucas parou para pensar um pouco, apertando os lábios por um instante e fazendo o que quer que seja brilhante que ele tinha passado ali, reluzir. Miguel achou melhor desviar o rosto e prestar atenção em seu celular, que de repente pareceu muito interessante de se mexer por um instante. Então, o garoto se virou para conversar com Clara, e os dois engataram outra conversa em sussurros, a qual Miguel não conseguia e nem queria ouvir.

Não demorou muito, depois disso, para Clara voltar a conversar com Pedro. Miguel reparou na mão de Lucas fechada ao redor do copo de refrigerante dele com uma tensão leve, o que em uma mão magra como a dele deixava os ossos saltarem de uma forma muito curiosa sobre a pele, em um decalque firme e surpreendentemente masculino para alguém que estava usando batom.

Miguel engoliu em seco, desviando o rosto para o próprio celular. Poucos minutos depois, Pedro e Clara se levantaram da mesa.

— A gente vai dar uma voltinha ali — Pedro anunciou, por ele e por Clara que parecia muito distraída ou envergonhada para falar. Ou as duas coisas. — Voltamos depois.

— Ok — Lucas respondeu, sorrindo e acenando com uma naturalidade quase de dar inveja.

Os dois saíram da lanchonete, Pedro segurando a mão dela pelo caminho. Algum tempo depois, Arthur se despediu, dizendo que o pai estava passando ali para dar uma carona para ele. E depois Zé Dois, que pediu um carro no celular e também foi embora. E assim, ficaram apenas Miguel e Lucas na mesa.

Miguel sabia que Lucas não iria embora até Clara voltar, já tinha percebido o quão dedicado ele era à melhor amiga, e não bastasse isso, Clara e Pedro tinham deixado as mochilas na mesa e alguém deveria vigiá-las. O problema era eles terem dito que “já voltavam” por volta das três da tarde, e agora o céu começava a escurecer devagar e nem sinal dos dois.

Miguel acabou mandando mensagem para o pai, explicando onde estava e com quem, para ele não se preocupar que iria embora em breve. Se Lucas também avisou seus pais ou não, não sabia, e não era problema seu, mas ele parecia ansioso com alguma coisa. Talvez já estivesse cansado de ficar ali, e ficar sentado à mesa com Miguel, ambos em silêncio, não parecia mesmo muito divertido.

— Você está usando batom? — Miguel perguntou, de repente, sentindo que qualquer assunto seria melhor em comparação com aquele silêncio aberrante, mas sem saber com muita certeza o que comentar, então acabou falando da primeira coisa que ocupava sua cabeça no momento.

Lucas corou de leve, e fechou a cara, parecendo emburrado. Ele apoiou o rosto na mão, desviando o olhar para a parede antes de responder.

— Viu só? É por isso que não quero ficar de vez no time de vocês.

— Ah, não, não ligo se está. É só curiosidade. Porque, sabe, tá brilhoso. Então… Desculpa foi uma pergunta burra, mas é que eu fiquei pensando porque não sabia que garotos usavam batom.

Bem, saber até sabia, já tinha visto na internet por exemplo, mas não estava esperando conhecer alguém com essa disposição. Isso sim era novidade.

— É gloss — Lucas corrigiu, não fez diferença nenhuma para Miguel que não fazia ideia do que um gloss era ou do motivo dele ser diferente de batom em alguma forma. — É só um brilhinho transparente. É bom pra boca não ficar ressecada.

Miguel não tinha noção alguma de batons para bocas ressecadas, decidiu apenas assentir e deixar o assunto de lado. Não poderia dizer que não tinha tentado engatar uma conversa com o garoto, o que para ele já estava de bom tamanho, embora o silêncio constrangedor perdurasse. Mas Lucas ainda parecia ter suas perguntas.

— Miguel?

— Hm?

— Hm… Olha, se não quiser responder, não tem problema, mas não vou mentir, estou curioso. O que te fez trocar de escola no meio do terceiro ano?

E é claro. É claro que alguém acabaria fazendo a pergunta. Miguel estava honestamente esperando vir de Pedro ou Arthur, por curiosidade ou falta de noção, respectivamente, então ouví-la de Lucas em primeiro lugar foi uma surpresa. Felizmente, já estava esperando por isso mais cedo ou mais tarde, então já tinha treinado sobre o que e como responder.

— Precisei. Não foi escolha minha.

E ele o disse com o tom de voz firme o suficiente para deixar bem claro que não iria acrescentar mais nada. Lucas, felizmente, pegou a dica, e também não fez nenhuma outra pergunta.

O garoto olhou pela janela da lanchonete, encarando o céu agora escuro lá fora, e Miguel acompanhou o olhar. Não podia ficar ali muito mais tempo, estava ficando tarde. Não queria deixar Lucas ali sozinho, mas também não queria matar seu pai de preocupação.

— Lucas… Eu preciso ir.

— Eu também — ele respondeu, levantando-se e suspirando, parecendo até um pouco cansado. — Não queria ir atrás dos dois, mas não vai ter jeito, olha só a hora. Mas que infernos eles ficaram fazendo esse tempo todo?

Miguel tinha uma noção muito boa do que os dois estavam fazendo, e não sabia dizer qual teoria a respeito disso estaria passando pela cabeça de Lucas, mas não era da sua conta. Ele pegou a mochila de Pedro, deixando Lucas pegar as coisas de Clara, e saiu pela mesma porta lateral que o casal tinha saído mais cedo, logo atrás de Lucas.

Só precisaram dar uma volta pequena na lanchonete para encontrar os dois sentados no meio-fio do jardim, conversando em voz baixa e trocando um ou outro selinho entre as palavras. A visão incomodou Miguel, algo que ele genuinamente não soube dizer se era só a natural reação de vergonha alheia ao ver um casal se beijando, ou se havia também uma pontada de inveja envolvida. Decidiu que não se importava. Ele pigarreou, alto, jogando a mochila de Pedro sobre o colo dele com pouca delicadeza.

— Acabou a festa — anunciou, cruzando os braços. — Olha a hora, eu preciso ir embora e o Lucas também.

— Caramba, já são seis? — Pedro exclamou, surpreso, olhando em volta. Incrível, eles tinham até perdido a noção da hora. Clara, inclusive, levantou-se às pressas parecendo bastante alarmada.

— Meu Deus, meu pai vai me matar…

— Não vai — Lucas cortou. — Eu disse a ele que estava comigo.

— Ah! Obrigada, Lucas, eu não sei o que faria sem você! — a garota exclamou em resposta, jogando-se sobre o amigo em um abraço apertado. Ele retribuiu, mas Miguel pode ver na expressão dele algo muito familiar para si mesmo.

Lucas também estava com uma pontada de inveja.

— Em troca você vai me dar uma carona — Lucas continuou. — Então vai ligando pro seu pai ou pro seu irmão aí pegar a gente.

— Pode deixar.

— Eu vou pedir um carro — Pedro comentou, pegando o celular do bolso. — Miguel?

Ele olhou em volta, fazendo um rápido reconhecimento de onde estava e apontando com o polegar para a rua atrás de si.

— Meu ponto de ônibus tá ali, então eu acho que vou andando.

— Hm… Eu moro no Belvedere, se morar nessa direção posso te levar comigo — Pedro comentou.

E embora Miguel sequer soubesse se “Belvedere” estava na direção de sua casa ou não, só sabia que era casa de rico, não queria ficar sozinho com Pedro agora e ver a cara de felicidade dele por ter beijado a garota. Ou ter que ouvir algo sobre isso. Não. Preferia o ônibus lotado do horário de pico.

— Acho que não rola, mas obrigado.

— Então é isto — Pedro comentou, abrindo um sorriso largo no rosto. — Nos vemos segunda-feira!

E Miguel teve a forte sensação de se ficasse ali teria de assistir Pedro e Clara se despedindo quando o carro dele chegasse, algo que não queria presenciar. Ele acenou para os três brevemente e deu as costas, seguindo sozinho para seu ponto de ônibus.


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Notas finais do capítulo

Temos um grupo no whatsapp! Link: https://chat.whatsapp.com/IvpAx8P4bEwEFoKQGUJ0gC

Histórias correntes:

Amargos Recomeços (Histórias de Bruxos 2) -- https://fanfiction.com.br/historia/799894/Amargos_Recomecos_Historias_de_Bruxos_2/

Agentes da S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) -- https://fanfiction.com.br/historia/799252/SHIELD_Guerreiros_Secretos_Marvel_717_2/



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