Legado Demoníaco escrita por carlotakuy


Capítulo 6
[Mundo Humano] - O inferno são letras e números


Notas iniciais do capítulo

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Colégio Axel, 2018

— Em algum momento você prestou atenção nas aulas?

Cali abriu um sorriso travesso para Thomas que cruzou os braços. Sentados no pátio gramado da instituição, compartilhando a sombra de uma das grandes árvores ali presentes, o grupo falava sobre os testes que se aproximavam. Com Lucas reclamando de estar indo mal em Literatura e Geografia, Ryan resmungando odiar Física e Matemática e a morena desabafando não entender nenhuma das quatro.

Desde o primeiro dia da garota infernal no colégio Thomas ficou próximo dela boa parte do tempo. Cali ainda ia buscá-lo na porta de casa antes de irem para as aulas e a dupla vinha conversando durante o caminho novidades que a mesma havia aprendido sobre o mundo humano atual, como a internet e baldes de frango frito que haviam acabado de entrar no cardápio do restaurante. Ela ainda falava sobre o inferno e as coisas de lá, mas apenas entre os dois.

Quando chegavam a escola e encontravam Lucas e Ryan ela se afastava, não tocando mais no assunto e sendo o mais normal que uma garota infernal poderia ser. Ainda haviam referências que ela fazia, mesmo com ninguém as entendendo muito bem, mas nada que comprometesse suas segundas intenções.

Levá-lo para o inferno.

Para a surpresa de Thomas a morena rapidamente fez amigos e quando menos percebeu ela já estava interagindo com toda a sua sala. Cali ria com as garotas sobre algum assunto que ele não sabia e dava dicas de artes marciais para alguns veteranos. Ela ficou rapidamente conhecida no prédio, pela beleza e jeito um tanto direto, tudo isso em mais ou menos duas semanas.

Thomas se questionou quando sozinho se ela ainda tinha o desejo de levá-lo mesmo, parar a tal guerra e salvar o velho que ela chamava de rei. Afinal, além das breves investidas no caminho até a escola, Cali se mesclava na classe, às vezes sumindo e o deixando sozinho, noutras ficando logo ao lado, mas com novas pessoas.

Não que ele quisesse ser o único alvo de sua atenção, ainda que tivesse se acostumado rapidamente com isso na primeira semana em que a conheceu. Era só que agora ela parecia distante. E mesmo que ele a tivesse mandado embora de seu quarto e pedido para ela parar com as histórias diversas vezes, em algum lugar dentro de si, Thomas ainda queria que ela o fizesse.

Talvez não invadir seu quarto.

Talvez sim.

Mas nem tudo estava indo tão ruim. Cali ainda o seguia nos treinos e ficava nas arquibancadas, agora muito bem munida de chocolates, o vendo jogar e comentando com ele, nas pausas, alguns detalhes de movimentos que percebia ajudarem outros jogadores. No final, eles comiam juntos e iam cada um pro seu lado, o que era até um pouco triste.

Era isso. Estar longe de Cali havia se tornado um pouco triste para Thomas. Ele queria alguma coisa a mais. Só olhar para ela de longe e vê-la acenar sorrindo já não o satisfazia. E os poucos momentos juntos eram como aquele, sob a árvore na presença de Ryan e Lucas, que também a queriam monopolizar, e quem sabe algo a mais.

— Tentei nos últimos dias, mas não entendo muito bem a linguagem escrita de vocês, ela é estranha.

Nossa língua é estranha? – Thomas balançou a cabeça – Por que não pediu ajuda?

A jovem deu de ombros enrolando preguiçosamente uma das longas mechas entre os dedos. Hoje os cabelos estavam soltos, arranjados com apenas duas únicas tranças finas nas laterais que se prendiam atrás da cabeça, permitindo aos fios balançarem minimamente com o vento.

O cabelo dela também tinha sido um assunto muito comentado no início, pelo tamanho, mas como qualquer fofoca logo passou e todos se acostumaram. Assim como fato de que ela realmente não usava ou tinha celular, para a alegria de Ryan, que não havia levado um fora naquele dia.

— Eu não tenho a quem pedir ajuda.

Lucas se preparou para respondê-la, mas o castanho foi mais rápido, pondo o lápis na mão que ela remexia as madeixas, parando o movimento e chamando sua atenção.

— Tem a mim.

Os olhos azulados foram lentamente para o rosto do garoto e Cali fixou seu olhar no dele. Castanhos, claros e intensos. Ela se arrepiou.

— Você não pretende me ajudar.

A indignação que Thomas nutriu com a fala anterior se esvaiu como fumaça com aquela frase e o que os olhos dela diziam. Ela falava sobre o inferno. Sobre o tal Tchort – por que havia decorado esse nome? – e sobre a guerra. Ela não havia deixado para lá. Ainda não.

— Mas nós te ajudaremos, Cali!

A troca de olhares, que se tornou bem intensa depois da constatação, desviou-se para Ryan, que estava deitado sob a grama fina e morna. Ele sorriu quando recebeu atenção.

— Sou ruim em números, mas sou bom com letras. Lucas é ruim com letras, mas bom com números. Somos uma dupla perfeita para ajudar você.

Ele se elevou, apoiando os cotovelos no chão, indicando o amigo ao lado. Lucas assentiu concordando, fechando o caderno que tinha mais rabiscos que letras nele.

— E então, que tal formarmos um grupo de estudos?

A careta de Cali a menção estudos foi involuntária, fazendo Thomas sorrir mesmo que sem querer. O movimento chamou a atenção dela e com algum quê de expectativa a morena se voltou para ele, até então excluído da citação dos amigos.

— Você vai?

Thomas quis dizer que não ia de jeito nenhum. Estudar com Ryan e Lucas era furada. Eles não levavam nada a sério e que ia ser perda de tempo e esforço. Mas Cali parecia animada e o melhor: estava esperando sua resposta. Provavelmente ele não tivesse sido deixado de lado como achou.

— É claro.

A expressão dos amigos foi de incredulidade.

— Mas não confie neles – Thomas virou uma das páginas do livro que tinha em mãos – não são nem um pouco organizados.

Cali piscou, ainda surpresa por ter posto tanta expectativa na ida de Thomas e estar se sentindo tão bem por ele também estar presente. Sorriu então, mais animada do que deveria, e assentiu.

— Dá pra perceber.

— Ei!

O protesto de Ryan causou uma risada grupal.

•••

Sentados na longa mesa de estudos da biblioteca, rodeados de alguns poucos e dispersos grupos de alunos e altas e longas estantes de livros, o quarteto se preparava para a aula de reforço. Thomas se sentou de frente à Cali, que estava entre Ryan e Lucas, ambos se esticando para conversar por detrás dela que encarava muito séria um dos livros de matemática.

— Ryan, você vai ler esse texto para explicar as respostas pra gente. Lucas, separei algumas questões de física, matemática e química para você. Precisamos revisar os cálculos juntos então tente fazer algo legível.

A dupla assentiu com determinação e Cali sorriu, voltando a atenção para o castanho esperando sua tarefa. Por alguns segundos Thomas pensou o que poderia pedir à morena para contribuir no grupo.

— Cali, em qual matéria você é boa?

— Nenhuma delas – afirmou quase automaticamente.

— Nenhuma?

Ela assentiu convicta. Thomas suspirou.

— Mas sei sobre a história humana – a morena apoiou os cotovelos na mesa, se inclinando um pouco sobre ela, contando nos dedos – e sei também sobre biologia, tanto a daqui quanto a de lá e algumas informações geográficas que são iguais em ambos os – ela demorou alguns segundos – lugares.

— Você vem de muito longe, Cali?

Ela concordou com a cabeça para Ryan, que tinha se debruçado sobre a mesa pondo o texto em pé apoiado em sua bolsa.

— De onde você é?

Os dois garotos a olharam curiosos, mas como sempre acontecia a garota sorriu e deu de ombros.

— Segredo.

Suspirando teatralmente Lucas apoiou uma página de apoio para os cálculos enquanto Ryan voltava a leitura. Ela voltou-se para Thomas.

— E então? Isso ajuda em alguma coisa?

O sorriso de lado do garoto estranhamente a deixou agitada.

— Cali, você era tudo que eu precisava.

Tirando a mochila que ele colocara em uma das cadeiras ao seu lado ele a indicou com a cabeça.

— Porque esses são os assuntos em que eu sou péssimo.

A morena quis rir, mas se limitou a soltar um sorriso de diversão, levantando e seguindo até ele. Primeiro Thomas lhe deu uma noção geral sobre o que falava o assunto do teste e em seguida mostrou, pontuando, quais textos no livro embasavam eles.

Enquanto tentava prestar atenção na explicação técnica do castanho, que passava longe do assunto em si, Cali encarou como um desafio o livro grosso. Thomas prendeu o riso ao lado dela, pela seriedade, mas se recostou deixando-a absorver as informações. Quando a morena não saiu do mesmo parágrafo, que era curto, por alguns bons minutos, ele se inclinou para o livro.

— Você realmente tem tanta dificuldade de entender nossa língua?

— Tenho – ela não tirou os olhos do livro – aprendi russo na infância, não isso.

— Russo?

O espanto na voz de Thomas obrigou que Cali o fitasse e ela riu baixinho, corando-o no processo.

— Eu disse que vinha de longe, não disse? – ela sussurrou de volta, batendo o ombro no dele.

O toque foi rápido e breve, talvez o primeiro desde que haviam se encontrado, mas uma sensação elétrica percorreu o local do contato em ambos. Ele piscou, aturdido pela revelação e pela reação ao toque, e Cali parou por alguns segundos encarando o rosto dele, confusa.

Tinha sido estranho, mas bom. Uma sensação boa.

— Você sentiu isso?

O sussurro de Thomas, carregado de algo que ele não sabia o que era, se tornou ainda mais intenso porque Cali não o respondeu, ainda o fitando fixamente, com algo nos olhos dela lhe dizendo que sim.

— Terminei!

A comemoração ruidosa de Ryan, que despertou alguns murmúrios de indignação ao redor vindas dos outros estudantes, trouxe a dupla de volta a realidade. Thomas puxou seu caderno da mochila rapidamente e Cali voltou a encarar o livro.

Se antes a linguagem no exemplar estava complicada tudo tinha ficado ainda pior porque o coração da morena estava inexplicavelmente acelerado e sua respiração ficara ofegante naqueles poucos segundos entre o toque e o olhar. Em algum momento o olhar do garoto ao seu lado a tragou completamente e ela se sentiu afundar, desesperada.

Tentando controlar o corpo e os pensamentos Cali começou a soletrar baixinho as letras, formando palavras e em seguida frases. Tentando afastar a ideia de que aquele era o verdadeiro poder da alma de Thomas e que talvez, no próximo toque, ela não continuasse sã.

•••

Se alongando cada um de um jeito o pequeno grupo desceu as escadas do prédio, já vazio pelo horário, desembocando no pátio iluminado e fresco. Cali resmungou alguma coisa e soltou os cabelos, fazendo os fios longos enrolarem-se ao redor de seus braços e perna como sempre.

— Estou tão cansada.

— Nem me fale – Lucas murmurou quase tropeçando – preciso de um banho e uma cama quentinha.

Ryan assentiu com exagero, suspirando, e Cali sorriu os observando. Nos dias em que passou ali a dupla tinha sido solicita consigo e pelo que pôde perceber eram bons amigos de Thomas, visto que faziam praticamente tudo juntos no colégio. E ela gostava da companhia deles, apesar de perceber, quase sempre, os olhares que recebia.

Não era ingênua e tão pouco adolescente o suficiente pra se enganar com segundas intenções. Lidava com celebrações a carne o suficiente no inferno para saber quando queriam seu corpo, apesar de nas comemorações inferiores eles quererem tudo sempre o tempo todo.

— Tchauzinho – Ryan foi o primeiro a seguir por um caminho diferente.

Lucas o acompanhou, se despedindo e indo por um beco para a avenida paralela, deixando Thomas e Cali, como todos os dias, sozinhos na entrada do colégio. O castanho ainda se espreguiçava quando comentou, subitamente, algo que vinha lhe corroendo há algum tempo.

— Você fez amigos rápido.

Cali o olhou de lado ainda parada nos portões logo atrás.

— Fiz conexões, o que é diferente. Sou encarregada da diplomacia no inferno, sei como manejar conversas.

Thomas revirou os olhos.

— Mas dizem por aí que você também é muito direta.

Desta vez a morena virou para ele.

— E por que não deveria ser?

— Você precisa entender que algumas coisas estão nas entrelinhas, não tem como acessá-las sendo tão direta. As pessoas podem se intimidar.

— Gosto de intimidar.

Ele ergueu a sobrancelha para ela que o rebateu com o mesmo gesto.

— Isso é um colégio, não o inferno.

Cali lembrou das palavras da proprietária da lanchonete. Cali, você é uma guerreira no inferno. Aqui você é minha garçonete. Na hora a morena quis rebater aquela afirmação. Ela seria uma guerreira aonde quer que fosse, mas depois de uma longa noite, viu que era verdade. Não dava para ser uma guerreira em todos os lugares.

Cali intimidou diversos membros da Corte infernal sob a voz de seu Rei, mas só porque lá a sua única arma era isso. Ela tinha que ser direta, objetiva e firme. Olhar no olho e deixar claro que ela podia matá-lo se quisesse, que tinha poder e habilidade para isso.

Mas ali, no mundo humano, as coisas eram tão diferentes e Cali havia passado tanto tempo no submundo que se esquecera como era ser humana. Agora, entretanto, ela não podia usar sua energia infernal e tão pouco tinha as chamas a seu favor. Suas armas não tinham utilidade contra adolescentes e velhos e suas sopas.

Era como se ela não tivesse espaço ali.

Conversara sim com os outros alunos da turma, mas usando estratégias de comportamento. Se demonstrara interessada e os assuntos em comum repassava entre os grupos, falando pouco e observando muito. Sentiu uma ínfima parte do que era ser adolescente quando as jovens riam entre si e fofocavam, todas com muito o que dizer sobre os outros.

Mas sabia que não tinha lugar para ela. Ninguém teria lugar para uma criança do inferno, que dedicara sua vida a matar e sobreviver. Não ali numa escola chique, tão pouco numa cidade grande como aquela.

E até mesmo eles podiam vir a perecer se ela não conseguisse retornar ao inferno e salvar Tchort. Impedir que os demônios atravessassem o portal. Ajudar as almas que desceriam sem rumo e sem guias.

Tudo isso voltou a Cali pela afirmação do castanho e olhando para a construção logo atrás dela a morena suspirou. Era claro que ela sabia que ali não era o inferno. Saco.

— Tudo bem, entrelinhas, certo? Vou buscar olhar para elas – disse com displicência.

— É? Então faça um teste – Thomas cruzou os braços, estufando o peito, fazendo a bolsa pender para um dos lados – tente ver através das minhas entrelinhas.

A morena o olhou confusa.

— Vou falar algumas coisas e quero que você tente achar o que eu realmente estou querendo falar.

— Você sabe que até mesmo alguns humanos não consegue isso, não é?

— Por isso é um teste!

Cali sorriu de lado.

— Então vá em frente e minta pra mim.

Thomas pensou em retrucar, mas se concentrou por alguns segundos no que dizer. Preferiu usar o exemplo de uma pessoa que não quer fazer uma coisa com alguém e tenta arranjar desculpas para não dizer claramente isso.

Cali quis rir quando ele começou, achando ridículo o garoto achar que ela não saberia o básico para não entender isso. Mas o deixou terminar e, fingindo pensar por alguns segundos, só de raiva, disse:

— Essa pessoa está louca para que eu vá fazer isso com ela.

O castanho bufou e a morena riu.

— Vamos Thomas, faça comigo.

Ele cruzou os braços, aceitando o desafio. Na verdade Cali sequer tentou esconder propositalmente alguma coisa no que ele chamaria de entrelinhas e só começou a falar sobre algumas situações que vivenciou no salão do trono, tentando convencer Murmur a tocar no sabbath que teriam, apesar de odiar o tema que os condes e duques tinham escolhido.

Thomas, entretanto, sentiu uma barreira impenetrável. Cali podia falar, sorrir, rir enquanto falava e até mesmo olhar para ele com expressões que sugeriam que ele devesse entender aquela parte, que o castanho se sentia sem saber o que achar. Os olhos dela lhe diziam algo, ele sabia, e o corpo queria que ele entendesse, mas não dava.

Cali era um mistério.

Ele lembrou dos pensamentos que teve na lanchonete na primeira vez que a viu fora do caminho para a escola, na sensação estranha e na certeza de que não a conhecia. Agora, não era isso. Thomas conhecia uma parte de Cali que ninguém mais tinha conhecimento, seu passado infernal, e percebeu algumas características dela como objetividade, dedicação e facilidade em se adaptar.

Descobriu também que ela ria com facilidade e rebatia suas infantilidades com ainda mais. Era séria quando preciso e defendia sua visão de maneira firme, como nas discussões breves que tivera no grupo, discordando de Ryan quanto a exercícios físicos. Ela era energética, um pouco sem noção às vezes – e isso explicava ela ter invadido seu quarto quando recém chegada do inferno – mas era doce.

Nas poucas vezes que viu a morena ser afetuosa haviam sido em alguns momentos específicos, quando ajudou outros alunos, fosse recolhendo materiais no chão ou dividindo o peso de livros. Cali se importava. E isso o deixava estranhamente feliz.

— Seu amiguinho do inferno tocou a música errada a noite toda?

O sorrisinho no rosto de Thomas era de desafio, rebatendo o deboche anterior dela.

Exatamente isso – ela deu meia volta – pronto, terminamos, vamos?

O castanho resmungou alguma coisa, mas a seguiu o curto caminho até depois da ponte, repetindo, quase três vezes: isso que fizemos não teve sentido algum.

E Cali riu.


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