A Sliver of Infinity escrita por Queenium, Harper


Capítulo 2
Sobre Aranhas e Cafofos




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 Verena era a face da morte. Literalmente.

 Collin não fazia ideia do que ela possivelmente havia encontrado quando chegou ao topo, mas definitivamente a mudou, em mais de um sentido. Era como se tivesse passado por uma metamorfose.

 Ele lembrava-se de como ela amava seus vestidos, especialmente o vermelho. De como desfilava com eles, junto com uma tiara decorada com uma coroa. Bom, a tiara ainda estava ali, apesar de um pouco acabada, mas o vestido se fora. Ou, no mínimo, estava guardado.

 Ao invés disso, ela estava usando seu antigo uniforme. Por menor que fosse a garota, tornava-a imensuravelmente aterrorizante, de certa forma. As botas de couro pretas que chegavam próximas ao joelho, a calça preso por um cinto, o casaco com uma faixa vermelha na manga esquerda decorado por uma miríade de medalhas e insígnias (possivelmente falsas). Tudo emoldurava o rosto da jovem. Seus olhos estavam fundos, sua pele praticamente havia grudado nos ossos do crânio, seus cabelos loiros estavam brancos. Verena nunca fora uma pessoa verdadeiramente bondosa, apesar de isso não impedir um idiota de apaixonar-se por ela enquanto na Torre. Mas agora…? Ele sentia uma presença.

 Brockengespenst é o nome dado a um fenômeno óptico, quando a sombra ampliada de um observador é projetada sobre as nuvens opostas ao Sol. Quando ocorre, a impressão causada é que o espectro projetado pela pessoa é imensuravelmente enorme e que há uma auréola ao redor de sua cabeça.

 Collin sentia a mesma coisa vindo dela. Algo a deixava assim. Ele sentia sua mente revirar e seus piores medos dançarem na frente de seus olhos quando ficava frente a frente com ela. Mesmo que sorrisse, os dentes brancos da garota refletiam apenas pesadelos. E apesar de sua sombra comportar-se como qualquer outra, ele precisava reafirmar o lugar onde estava a todo momento, só para não ter certeza de que estava sendo devorado pelo abismo que sentia existir dentro dela.

 Ele ligou suas sombras.

 Elas dispararam. Centenas dela fazendo um número incalculável de ações. Algumas pareciam sufocar. Ele encarou a garota. Ela apenas cortava calmamente um cheesecake com uma calda de morango tão bem feita que era possível ver o próprio reflexo nela.

 - E então? - perguntou a jovem. Uma das sombras de Collin perdeu a cabeça. - A desgraçada veio mesmo?

 - Sim… - forçou-se a dizer. - Eu já tinha minhas suspeitas, mas só quando fui fazer o que havia me pedido ontem que consegui confirmar - explicou. - Eu a vi correndo pela chuva, e quando concentrei meus fantasmas, eles reagiram à ela.

 - Interessante… - respondeu. Uma das sombras de Collin agonizava de dor no chão em razão de uma perna perdida.

 A garota saboreou um pedaço do prato. Os sabores da massa feita de biscoitos, o cream cheese, o creme azedo, um distante sabor de limão. Cada mordida era um botão-de-solteiro que desabrochava. Era um pequeno pedaço do céu em uma única garfada.

 - Aceita? - perguntou para Collin.

 Ele olhou para os lados momentaneamente. Viu uma sombra perder os braços.

 - Não, obrigado.

 Verena deu de ombros.

 - Mais para mim.

 - Mas...sobre a Michaela… - perguntou Collin.

 - Mate-a - disse, fazendo um sinal indiferente com as mãos.

 - O que?

 - Você ouviu. Mate-a. Simples.

 - Mas ela…

 A garota virou-se parcialmente em direção a ele. Segurando o prato e levando mais um pedaço da sobremesa a boca com cuidado para não deixar cair na roupa, disse:

 - Você já me contou o que aconteceu naquela vez, não é? Quero dizer, eu não sei. É você e ela que conseguem fazer isso, eu não vi nada - falou, fazendo uma pausa para degustar aquela maravilha. - Então...mate-a, simples assim. Sem mais trocas, ou possibilidades, ou, sabe, catástrofes acontecendo ou coisa do tipo. 

 Ela voltou-se para a mesa e pousou a porcelana com cuidado sobre ela.

 - Já basta você - prosseguiu.

 Collin recuou, apertando os punhos com força.

 - Acho que… - engoliu em seco. - Acho que ela foi buscar ajuda.

 Verena parou, pousando o garfo no prato momentaneamente, sussurrando algo que o jovem não ouviu.

 - Certo… - disse devagar. Ela mexeu nos bolsos de um dos casacos, retirando uma pequena e brilhante joia vermelha. - Pensa rápido - acrescentou, jogando-a por cima do ombro.

 Ele pulou, segurando com firmeza o que recebeu.

 - Ela sozinha não deve dar problema, imagino. Então, se precisar realmente de alguma ajuda, se for alguém perigoso ou algo do tipo, quebre isso, que eu envio alguém pra te dar uma mão - explicou Verena. - Agora vai - ordenou.

 Collin engoliu em seco. Murmurou algo que provavelmente aproximava-se de um “Sim, senhora”, e deixou a sala. O esconderijo ainda estava vazio.. Se perguntou o que os outros possivelmente estariam fazendo, enquanto vestia com cuidado sua capa de chuva. Já havia saído antes, ela estava encharcada, e não queria ter sua mente invadida por aquelas visões. 

 As nuvens ainda cobriam o céu, e a chuva não havia parado. Ele pegou o que mais era necessário. Um binóculos, barrinha de cereal (se a noite fosse longa), algo para achar a garota, algo para lidar com a garota, algo para se proteger, a joia…

 Ok, tudo certo.

 Ele deu um passo para fora. As gotas tilintavam em sua capa, pingando bem diante de seus olhos. A água escorria por calhas nas construções mais novas, e pelas bocas de gárgulas e outras criaturas em monólitos de pedra de eras passadas e que talvez sequer tenham existido (no mundo que viveu, ao menos), seus olhos vazios seguiam-no em sua caminhada até o centro.

 Silhuetas estranhas de pessoas que ele havia sequer visto o rosto seguiam suas noites em seus lares, apreciando o som sussurrante tranquilizador enquanto liam, ouviam o rádio, refletiam sobre a razão de suas existências, ou outras atividades que ele não fazia questão de entender o que eram. As sombras caóticas de dezenas de arquiteturas estranhas que dividiam espaço sem respeito mútuo tomavam conta das ruas por completo. Prédios de madeira cujos andares mais altos foram feitos sem muito planejamento, edifícios decorados com grafites deslumbrantes, brancos e sem vida feitos para otimizarem o máximo de espaço possível, mansões escuras e taciturnas dignas de filmes de terror, e pequenos castelos em miniatura.

 Tudo ficava ainda pior no centro, conforme elas começavam a mesclar-se umas com as outras em pontes e passarelas, torres de rádio ocupadas por guardas que buscavam ameaças a seu barão sem parar, onde os melhores restaurantes, bares, empórios de grife, lojas de armas estavam localizados em sua grande maioria.

 Mas sempre havia um ou outro espacinho para poder respirar adequadamente. As praças. Abrindo-se, com o chão sendo decorado por múltiplas artes feitas com pedras multicoloridas, pretas e brancas, rosas e vermelhas, com arbustos, estátuas de bronze, fontes e até um lugarzinho para montar palcos para apresentações. Ainda era um pouco sufocante, os prédios simplesmente não desapareciam uma vez que alguém entrasse nas bordas de um parque, mas ao menos era possível ver o céu acima.

 Idunna residia nessa praça. Era particularmente conhecido por ser boca aberta, e por ter alguém ter lhe dado esse nome quando era meramente um broto que estava prestes a ganhar consciência, sem saber seu gênero ao certo.

 Os arbustos, rosas, flores e gramado recebiam graciosamente a água (dava para chamar assim?) que lhe eras dada. Idunna, um bordo, residia próximo a uma das entradas. Estava ocupado, conversando com uma pessoa alta com tentáculos no lugar dos braços e outras três com um quê de peixe.

 “As sardinhas parecem nervosas”, observou Collin, conforme os peixes do grupo gritavam sem parar com o tronco, provavelmente exigindo satisfação, antes de deixarem o local a passos pesados. O homem dos tentáculos parecia chateado, indo sentar-se em um banco para pensar no que fazer em seguida.

 - Idunna - disse, aproximando-se.

 A árvore balançou suas folhas. Gotas molharam seu rosto, os flashes vieram logo em seguida. Ele balançou a cabeça para reafirmar onde estava. Sentiu por menos de um milésimo de segundo a areia em seus pés, e o mar, e grama, e um líquido quente, e madeira. Collin grunhiu, encarando a árvore conforme a irritação faiscava em seus olhos.

 ORA, ME DESCULPE, NÃO HAVIA VISTO QUE ESTAVA AÍ… - mentiu.

 Collin não gostava de conversar com os arbustos. Ou as árvores. Ou qualquer tipo de planta ali, na realidade. Sempre sentia algo estranho em suas vozes, como se tentassem com muito vigor imitar as cordas vocais de um humano (ou outra raça consciente capaz de manter uma conversa), mas os ouvidos mais atentos sempre notariam que havia algo de errado.

 - Preciso saber se você viu alguém passar por aqui, ou se ouviu alguma coisa sobre essa pessoa.

 BOM, TALVEZ EU…

 Collin mexeu nos bolsos, erguendo logo em seguida um pacotinho com algo dentro.

 ESPERA, ISSO AÍ É… - disse Idunna, começando a formular uma pergunta.

 - Sim, é sim - interrompeu Collin. - Guano. Fresquinho.

 Uma breve expressão de nojo surgiu em seu rosto quando notou que havia cometido o erro de colocar a barra de cereal e a porcaria de morcego e pássaros no mesmo bolso. Teria certeza de jogar fora e comprar uma nova no caminho até...seja lá a pista que a árvore o daria.

 OLHA, SE VOCÊ ME DER EU…

 - Não, não. Pode ir parando aí. Eu sei o seu jogo - disparou. - Primeiro você vai desembuchar o que eu quero ouvir - advertiu. - Você vai falar tudo. Tudo. Certo? Eu sei como as plantas se comunicam, mesmo sem uma consciência. Você vai desembuchar tudo o que captou dos seus amigos e que viu com os próprios olhos. Aí eu te dou seu guano.

 O bordo grunhiu.

 O QUE VOCÊ QUER SABER? - perguntou.

 - Uma garota - disse. - O nome dela é Michaela, ou só Mika. Ela é loira, usa um casaco de couro, é meio durona - disse. - Esquisita também - acrescentou. - Preciso saber onde ela está, ou por onde passou.

 O bordo suspirou através de todas as suas folhas.

 VOCÊ TEM IDEIA DO QUÃO POUCO ISSO AJUDA? - perguntou.

 Collin arqueou as sobrancelhas. Segurando o pacote de guano com as falanges do mindinho e o anelar, o jovem fez um triângulo com o dedão e os indicadores. Suas sombras já estavam ligadas, há horas. Era um pouco cansativo, como estar em uma ligação de certa importância sem parar. Ao fazer isso, elas se revelaram. Dezenas de sombras ligeiramente azuis preencheram a praça.

 Ele cambaleou…

 Collin, me ajude. Era como o grito de uma banshee, ele sentiu reverberar por cada molécula de seu corpo. Seus ossos tremeram. Seus músculos se retraíram e enrijeceram conforme seu cérebro aumentou mais e mais a produção de adrenalina. Sua respiração ficou irregular.

 Ele ousou virar para trás. Encarar ela seria difícil, mas…

 Ela não estava lá. Collin olhou ao redor, seus olhos varrendo a praça, em busca da origem da voz. Mas ele não a viu. Não, mas Ele estava lá. Do outro lado da praça, ele o observava. Seus olhos vermelhos o encarando, as gotas de chuva desviando de seu terno impecável. Seu sorriso aumentando.

 EI — chamou o bordo. - TUDO BEM AÍ? 

 - Sim, sim, desculpe… - Ele havia desaparecido. Collin fez novamente o triângulo com as mãos, suas sombras voltaram a ser só suas. - Deu pra ver, não deu?

 SIM, EU CONSEGUI. SE ELA, COMO SUPONHO, É CAPAZ DE FAZER A MESMA COISA, ENTÃO OUVI SIM UMA RECLAMAÇÃO SOBRE - respondeu a árvore.

 - Elabore. 

 PERTO DE UMA DAS ENTRADAS DAQUI DA CIDADE. ESTAVA SENDO PERSEGUIDA, PELO O QUE ENTENDI, APARENTEMENTE ELA TROCOU DE LUGAR COM UM FANTASMA QUE CRIOU, PARECIDO COM O QUE VOCÊ FEZ. ELA FOI PARAR NO MEIO DA ÁRVORE E QUEBROU UM MONTE DE GALHOS E DESTRUIU UM NINHO DE AVES NO PROCESSO.

 - E onde ela está?

 NÃO SEI, MAS ELA QUEBROU UM BASTÃO EM UM AMIGO MEU UM TEMPO DEPOIS. NÃO PARECIA BEM, E DEPOIS RECLAMOU QUE NÃO CONSEGUIU ACHAR UM BAR CHAMADO OLYMPIA.

 Collin franziu o cenho.

 - Tem certeza que era ela? - perguntou.

 LOIRA, CASACO DE COURO, E FAZ O QUE VOCÊ FEZ.

 Collin abriu o pacote de guano e jogou o conteúdo próximo às raízes do bordo. Um gemido de prazer soou enquanto ele aproveitava a refeição.

 O jovem afastou-se, jogando o pacote de plástico sujo e vazio em uma lixeira próxima. Já estava um pouco tarde. Bares ficam abertos bastante tempo, mas se fosse um no centro, provavelmente já teria fechado…

 Collin foi até o homem com tentáculos no lugar do braço.

 - Com licença, você saberia me dizer onde fica o Olympia?

 Ele respondeu que havia saído de lá a algumas horas. E então indicou a forma mais rápida de chegar a pé, já que o Metrô Submerso estava fechado.

 - Obrigado - agradeceu.

 Saindo da praça, Collin parou momentaneamente diante da vitrine de uma modesta loja de vestidos. Ele tocou o vidro, e encarou seu reflexo. Ele teve certeza de gravar a própria imagem na cabeça. Não queria ter que revelar suas sombras novamente, mas provavelmente seria necessário. Foi necessário no serviço da noite passada.

 Ele teve certeza de ver os cabelos castanhos, das mechas laterais ao lado do rosto. Ver os olhos verdes e a tez branca. Ver o poncho azul com listras verdes e a camiseta preta com gola alta.

 “Eu não vou me perder”, disse para si mesmo.

 Então seguiu o caminho indicado. 

(...)

 - Tem algum problema com comida congelada? - perguntou Roberto.

 - Não, acho que não. - respondeu Mika. - A propósito, a gente não deveria colocar ele em uma cama ou… - disse, cutucando com o pé o corpo desacordado de Nicholas no chão.

 - Não, nem pensar - respondeu o bartender, colocando algo no micro-ondas e arrastando o corpo desfalecido do mágico para uma sala próxima. - Ele tentou me matar, que se vire. Vou jogar ele no quarto que guardo de tranqueira e ele que se arrume por lá.

 Quarto…

 Falando em quarto, para alguém que conversava com aranhas, ele pelo menos tinha bom gosto para decorar seu apartamento...não, esquece, não tinha não. Os sofás e poltronas tinham estampas de zebra, as paredes eram de um roxo suave, decoradas com quadros baratos de pop art de artistas que ela sequer conhecia (tudo bem, quem não conhecia o Notorius B.I.G.? Mas quem era Tim Maia para começo de conversa?), uma estante de discos de vinil e livros dividia espaço com aparelhos de som antigos e uma vitrola. O tapete de leopardo também não ajudava em nada.

 "Bom", pensou, sentando-se em um dos sofás, "adequado para alguém que ainda fala cafofo."

 - Bem… - disse o bartender com cautela, indo até o micro-ondas e observando os pratos girarem. - Se importa se eu fizer umas perguntas?

 - É sobre o Harmonia? 

 - Equilíbrio - corrigiu Roberto.

 - Tanto faz - respondeu Mika, dando de ombros. - Mas qual sua relação com ele? - perguntou.

 Roberto franziu o cenho.

 - Não me venha responder minha pergunta com outra - disse, levemente irritado.

 - Ei! - protestou Mika. - Eu também sei muito pouco sobre ele, valeu? Além do mais parece que ele é uma pedra no seu sapato, e eu posso te ajudar a resolver isso, então, por favor, me situe na informação.

 Roberto voltou a olhar para a garota com real irritação. Era como ter que lidar com uma criança petulante que queria porque queria saber a razão de ter sido posta de castigo. Ele bufou, e começou:

 - O nome dele não é Harmonia, nem Equilíbrio. Esses são só apelidos. Eles resumem bem o que e quem ele é - explicou. - O real nome dele é…

 Roberto disse um nome.

 - Tá, mas o que isso tem a ver com a situação? - perguntou, confusa.

 “Que nome é esse?”, pensou a garota. Não era sequer como ouvir um nome em uma língua imensamente diferente da sua nativa. Ele simplesmente escapava de sua mente.

 - O que tem a ver - prosseguiu, ainda com raiva. - É que ele não é pouca bosta. Ele por si só já é um problema. O fato de você, uma mensageira dele, não ter ideia de quem ele é, é algo ainda maior.

 “Mais irritante também”, pensou o bartender.

 - Onde você encontrou ele? - perguntou Roberto. No momento que a garota fez menção de abrir a boca, acrescentou: - E se você me fizer outra pergunta eu juro que te chuto pra fora.

 Mika franziu o cenho, aborrecida.

 - E aí o que? Eu não estou na melhor posição de negócios, mas você muito menos - disparou. - Nós dois precisamos de respostas.

 Um silêncio momentâneo recaiu sobre o ambiente, somente o ruído do micro-ondas aquecendo o jantar preenchia o ambiente. O bartender ainda olhava para a garota, austero, aguardando uma resposta adequada. Longos cinco segundos passaram-se. Mika bufou.

 - A Torre - disse ela.

 - Torre?

 - Eu e meus amigos ficamos presos nesse lugar - explicou. - Eu não sei explicar como, mas eu sinto que a gente ficou mais tempo lá do que deveria, sabe? Como… - ela balançou as mãos, procurando alguma analogia adequada. - Como um jogador de baseball que não conseguiu alcançar uma base porque ele sentiu que estava mais lento, mesmo que não houvesse nada de errado com ele, entende? Algo assim.

 - Não - disse Roberto. - Não entendi.

 Mika bufou uma segunda vez.

 - Era uma sensação de déjà vu, como se estivéssemos repetindo de novo e de novo as mesmas coisas, tentando sair de lá. Um… - a palavra lhe escapou por um segundo. - Um loop! Isso.

 Roberto coçou a cabeça.

 - Uma anomalia temporal...é, talvez faça sentido ele querer consertar isso - disse. - Mas por que a sua?

 Mika ergueu as mãos.

 - Eu também não faço ideia - disse.

 Roberto pensou por um segundo.

 - Foi quando esse loop acabou que você viu ele pela primeira vez, não é?

 - Bom...sim… - disse. Mika mordeu a língua, era chato falar sobre o loop. Só agora entendia porque o Sully insistia em não querer falar sobre o que aconteceu com seu pai.

 - E então você encontrou ele. E aí?

 - Bom…ele me disse que essa cidade aqui corria perigo, e que por consequência as pessoas com quem eu me importo também, e disse que se eu quisesse salvar elas, eu precisava vir aqui…

 A face de Roberto contorceu-se em uma expressão de desdém.

 - Perigo...essa é mole… - disse, com desgosto.

 - Qual o problema? - perguntou.

Por um lado - explicou ele - , eu quero muito expulsar você daqui por vir me falar de “Pulvervale em perigo” - disse, fazendo aspas com as mãos. - Por outro...tem a mão do Equilíbrio nisso…

 Roberto praguejou em silêncio. Era como ouvir uma teoria da conspiração sair da boca de uma figura respeitada da comunidade científica. 

 - Mas o que tem aqui estar em perigo? - perguntou Mika.

 - O que tem é que eu ouço isso. TodoDia. Alguém dizer isso aqui é assumir o papel de mendigo maluco com cartaz de papelão alertando sobre o fim do mundo - explicou. - Toda semana tem um maluco desses lá.

 - Então...não vai me ajudar…? - perguntou a garota, com cuidado.

 - Infelizmente eu vou - disse, com raiva. - Você conheceu ele, e ele disse pra especificamente procurar. E isso me deixa puto - pontuando a frase com um suspiro. - Tá, continua.

 - Bom, ele me disse isso no...lugar que ele ficava… - a garota sabia que havia algo lá, mas simplesmente não conseguia lembrar o que. Toda paisagem desapareceu e só restava um quadro em branco. - E aí…

 - E aí… - apressou o bartender.

 - Bom, ele fez... algo, não sei o que, e aí eu caí em algum lugar. Era uma cidade normal, sabe? Com prédios, cercada por uma floresta. Só que a lua era verde, e não tinha ninguém lá - o bartender meneou a cabeça ao ouvi-la dizer isso.

 - Típico dele. Você provavelmente foi parar em um dreamscape — explicou. A garota voltou a abrir a boca para falar, e o rapaz levantou um dedo, interrompendo-a. - Calma, calma, deixa eu adivinhar agora. Você foi perseguida por algo. E no meio da fuga veio parar aqui.

 A jovem concordou com a cabeça.

 - Me diz… - perguntou Roberto. - Mais alguém estava com você quando encontrou ele?

 - Sim. Não. Digo, outras pessoas saíram comigo da Torre, mas só eu me encontrei com ele - explicou.

 - Entendo… - disse, antes de uma súbita realização vir a sua mente. - Espera aí, você não se apresentou, apresentou?

 - Ah, foi mal. Michaela, mas eu prefiro Mika - disse, acenando para ele.

 - Bom...você já sabe meu nome, não preciso dizer. Mas...me diz, qual seu sobrenome?

 - Por que quer saber? - perguntou, intrigada.

 - Só diz logo.

 - Purkins…

 - Entendi - disse.

 Faltava pouco tempo para o prato ficar pronto. Roberto abriu uma gaveta e começou a tirar pratos, talheres e copos da gaveta. Os copos eram enfeitados com o desenho de um bigode, o prato, por sua vez, tinha a silhueta de uma pessoa com um rastafari, com a bandeira da Jamaica ao fundo.

 “Brega”, pensou Mika.

 - Bem...já que ele te disse para salvar tudo, você tem algum plano?

 Mika recuou no sofá. Constrangida, um pouco irritada também.

 - Não… - admitiu.

 Roberto encarou-a, um pouco incrédulo. “Não tem como alguém ser tão idiota assim, tem?”, pensou.

 - Então… - disse devagar. - Você foi designada para salvar o mundo. Sua família e amigos estão em risco. E você não tem um plano. É isso?

 - Eu estive fugindo pelos últimos dois dias de uma projeção astral maníaca e de uma garota que derrubou um prédio com um único soco! E aí eu chego na droga dessa cidade e tem chuva mágica caindo na minha cabeça e eu tenho que procurar um bar na porcaria do fim do mundo! - disparou, frustrada, irritada, cansada e com muita vontade de socar alguém. - Então não, eu não tenho a... — Mika interrompeu-se. Não haviam crianças na casa, haviam? Possivelmente não, eram apenas dois pratos no fim das contas. - Não, eu não tenho um plano - afirmou por fim.

 - Era só o que me faltava… - reclamou. - Escuta, eu estou terminando um ótimo livro, então realmente não estou com vontade de abandonar meu negócio e deixar o meu cafofo de lado pra ajudar alguém que nem sabe o que fazer

 O micro-ondas apitou. Os dois olharam para o aparelho.

 “A gente discute enquanto come”, pensaram ao mesmo tempo.

 Roberto abriu a porta e retirou com cuidado a refeição fumegante com um pano de prato e colocou-a sobre a mesa.

 “O cheiro é bom”, pensou a garota. Só então se deu conta que estava faminta.

 - O que é? - perguntou.

 - Costelas, jambalaya picante de galinha, e succotash de feijão e milho - disse, tirando a comida da embalagem de plástico e colocando-a no prato (que ele conseguiu com um desconto muito camarada). 

 - Parece bom… - disse, ao receber o prato.

 Um sibilo de uma aranha se ergueu no ar. Ao lado de Mika.

 A garota deu um pulo.

 - Mas que porra, eu achei que não tinham essas pestes na sua casa! - gritou.

 Roberto deu um cascudo na cabeça da jovem. Ela soltou um gemido de dor, e chutou-o de leve nas costas como resposta, não iria arriscar derrubar o prato e provavelmente ser obrigada a limpar o tapete de leopardo dele.

 - Não fala assim delas - disse, nervoso, enquanto ia em direção a sua empregada. A aranha sibilou mais alguma coisa. - Eita, eita, calma lá, o que foi? - perguntou, se ajoelhando para encará-la nos olhos.

 A pequena aberração marrom-clara sibilou mais e mais vezes. Mika era incapaz de compreender o que, mas parecia importante. Colocando o prato na mesa e ajoelhando ao lado de Roberto, tendo certeza de manter uma distância segura da aracnídea, perguntou:

 - E aí, o que ela tá dizendo? - perguntou.

 O bartender olhou a jovem no fundo dos olhos. Seu olhar estava sério, um pouco sombrio talvez. Ele ergueu um dedo, pedindo silêncio.

 - Não. Toma. Reações. Exageradas - disse, firme. - Tem alguém observando a gente… - explicou.

 - O que? - disse Mika, fazendo menção de olhar por cima dos ombros.

 - Não! Para! - advertiu Roberto. - Ele pode perceber! Até agora não há nada demais!

 - Mas...quando…? - perguntou a garota.

 - Quando eu mandei o pessoal embora - explicou - , um grupo deles avistou alguém. Ele está a alguns prédios daqui, observando a gente com um binóculo ou algo do gênero.

 - Então…o que acontece agora? - perguntou, apreensiva.

 - Vire-se e aja normalmente, senta na bancada e come sua comida - falou rápido. - Eu vou fingir que vou estar brigando com você e vou sair. Vou lá lidar com ele, entendeu? Vou deixar a Kuma cuidando de você.

 Mika concordou devagar. Dependendo da pessoa ela poderia ajudar. Céus, dependendo da pessoa ela poderia muito bem completamente arrasar a cara dela. Mas se tivesse que ligar suas sombras mais uma vez, temeria que aquilo aconteceria outra vez. Além do mais, sabendo do quão cansada estava, era melhor deixar o trabalho para ele. O bartender era muita coisa, mas certamente fraco não era uma delas.

 - Tudo bem… - disse ele. - Em 3, 2, 1…

 Ambos se levantaram. Roberto pegou a aranha cuidadosamente com as mãos e segurou-a como um indefeso pássaro que havia quebrado uma de suas asinhas.

 - Tá vendo o que fez? - gritou, nervoso. A garota tremeu por um momento. Ela havia realmente machucado a aranha, ou… - Eu vou levar ele no médico - disparou. - Fica aqui e não faz merda .

 E virou-se, abrindo a porta do toalete e batendo-a com força.

 A garota pegou seu prato de volta. Confusa, e tentando fingir impaciência. Será que eles haviam voltado? Não...aquela garota derrubaria o prédio todo se significasse que morreria no processo…

 “Quem será que é?”, pensou, enquanto comia uma das costelas. Não sabia como, mas elas estavam tão macias e tão suculentas, mesmo sendo descongeladas. 

(...)

 Collin jogou longe a barra de cereal. O nojo sabendo que estava comendo algo que acidentalmente havia colocado no mesmo bolso que o guano era maior que a fome do estômago que roncava. 

 Praguejou de raiva. Ele havia passado bem em frente a uma loja de conveniências aberta, e esqueceu-se de comprar.

 Por que fez isso? Ela parecia boa para mim. A voz soou. Ele sentiu-a fazer seu espírito tremer.

 “Calma, calma”, pensou, olhando ao redor. Sabia que estava sozinho, mas era bom confirmar. Havia sido um erro revelar suas sombras para Idunna. Um ainda maior usá-las para poupar tempo assim que deixou a carona.

 O semblante aterrorizado da garota-esquilo e a voz trêmula do homem com máscara de raposa eram sensações intrusivas. Ele manteve suas sombras ligadas por muito tempo. Revelá-las e ainda trocar de lugar com uma deixou sua mente cheia demais. O homem-raposa e a garota-esquilo sequer eram importantes, eles só lhe deram uma carona. À força, sim, mas não importava mais. E ainda assim a textura do banco de trás, os sons que ela fazia, o cheiro do carro, tudo persistia.

 Ora Collin, disse a voz Dele. Você os deixou aterrorizados, espera se esquecer disso tão facilmente?

 Collin respirou fundo uma segunda vez. “Tá tudo bem, tá tudo bem”, pensou. “Poderia ser pior.”

 Ele olhou mais uma vez para a janela do apartamento. Do telhado daquela casa ele conseguia uma visão clara do apartamento.

 “Mika”, pensou. “Não me diga que vai passar a noite aí.”

 Nunca gostou do quanto aquela delinquente fora tão próxima dela, mas ao menos sua primeira morte havia servido para algo na época. Todas as demais, essa inclusa, eram meramente um estorvo.

 Ele continuou observando-a. Já estava indo para seu segundo prato. “Como a Chino conseguiu gostar de você?”, pensou. Não, espera, tinha uma pergunta mais importante.

 “Onde o amigo dela foi parar?”, ela provavelmente havia machucado algo. Uma aranha, supôs. Mas o que ele foi fazer naquela sala com ela por tanto tempo? Era uma sala de cirurgia? “Não importa”, pensou. Era suspeito. Talvez fosse melhor fechar a noite por ali e esperar um momento mais oportuno para tentar acabar com aquilo de uma vez.

 - E aí - disse alguém.

 Collin tremeu. Não, não eram aquelas vozes. Aquela era real. Sacando sua arma, ele virou-se, disparando instintivamente na direção de onde veio a voz. O telhado iluminou-se momentaneamente conforme a pólvora acendeu-se. O som alto do tiro ressoou momentaneamente, misturando-se com o tilintar incessante da chuva, e, tão abruptamente quanto surgiu, desapareceu. Só faltava o baque surdo de um corpo caindo no chão…

 Algo parou a bala.

 “O que ele está fazendo aqui”, pensou Collin, um pouco alarmado.

 - Sabe - disse Roberto, sorrindo. - Esse é um jeito meio rude de receber alguém.

 Collin manteve os olhos firmes nele. Acocorado a poucos metros de distância, o homem observava-o. As gotas de chuva evitavam-no, como se um filamento fino de fios de prata desviassem as gotas para longe.

 Collin concentrou suas sombras nele. Elas dispararam, e dispararam. Sem parar, elas continuavam surgindo. Ele grunhiu, aquilo não era nada bom. “É como Verena”, forçou-se a pensar. Não era uma realização particularmente agradável.

 O proprietário do Olympia o encarava, não piscava sequer uma única vez. Seus olhos eram duas esferas escuras, de um roxo profundo, que pareciam o ler como um livro.

 - E então, a vista estava boa? - perguntou Roberto.

 Collin permaneceu calado.

 - Não vai me convidar para ver o que estava observando? - perguntou novamente.

 Collin manteve-se quieto.

 - Muito bem… - disse.

(...)

 Mika comia o prato de Roberto. Sentia-se um pouco mal por isso. Era falta de educação, mas a fome falava mais alto do que os bons costumes. “Ele também deve ter comido moscas no trabalho de qualquer forma”, pensou.

 Uma viúva-negra movia-se pela parede. Era a mesma que vira no seu ombro quando encontrou-o em seu bar? Aquela que era a Kuma?

 - Ãhm, Kuma? - perguntou, com cautela.

 A aranha sibilou algo que a garota não entendeu.

 - Ah, ok - suspirou de alívio. Menos mal, era uma aranha que, provavelmente, não iria chegar de mansinho para picá-la.

 Toc, toc, toc.

 O som de batidas soou na porta. Mika arqueou as sobrancelhas.

 - Ele...estava esperando alguém? - perguntou.

 A aranha sibilou algo, e balançou as patas dianteiras. Mika não compreendeu nada.

 Toc, toc, toc.

 Mika encolheu-se no sofá.

 - Atendo? - perguntou. A aranha sibilou outra vez. Mika, apesar de tudo, não falava aranhês.

 Toc, toc, toc.

 Ela olhou ao redor. As batidas na porta continuavam a soar. Era estranho. Mika olhou para a aranha. Ela continuava sibilando algo na parede próxima. Significava que era perigo ou que implorava a garota para abrir a maçaneta?

 Toc, toc, toc.

 Talvez fosse a segunda opção, não? Quer dizer, Roberto já lidava com um estranho há algumas centenas de metros dali, certamente suas aranhas veriam algo mais enquanto se dispersassem.

 Toc, toc, toc.

 Mas ninguém chamava…

 Mika levantou-se. Indo até o quarto onde o bartender deixara o corpo desacordado do ilusionista maluco, ela varreu o cômodo com os olhos. Ele o descrevera como “quarto das quinquilharias”.

  Surpreendentemente não haviam aranhas no lugar, ou ao menos não as viu. Dezenas de caixas empoeiradas eram amontoadas ali. Aparelhos ainda mais arcaicos que a vitrola dividiam espaço com vassouras, caixas, caixotes, esteiras, cestos, baús antigos (e ligeiramente sujos de areia), mas...ali! Passando com cuidado entre a velharia e tomando cuidado para não pisar no corpo de Nicholas, ela foi até o que avistara.

 Segurando firme com as mãos, ergueu um bastão de beisebol, sujo de poeira e esquecido em um canto qualquer. Se fosse realmente necessário abrir a porta, ao menos teria certeza de que estaria segura. Além do mais, era simplesmente bom ter uma daquelas coisinhas em mãos outra vez.

 Mika voltou para a sala, limpando o casaco e a calça de poeira.

 Toc, toc, toc.

 - Bom, lá vamos nós.

 A aranha sibilou ainda mais alto quando a garota segurou a maçaneta. Parecia um pouco desesperada. Mika girou-a, olhando confusa para a aracnídea. Só quando abriu que se deu conta.

 “Era a primeira opção”, pensou, alarmada.


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