Dear Mr. Nemesis escrita por Nekoclair


Capítulo 10
Capítulo 9 - parte 2


Notas iniciais do capítulo

Continuação direta da parte 1 porque o Nyah! me trollou...



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O corredor que separava o laboratório das escadas que conduziam ao apartamento do Victor nunca pareceu mais extenso, e a iluminação escassa tampouco estava ajudando a amenizar o humor decadente em que todos se encontravam. Cada passo parecia contar por uma centena, e mesmo assim a distância não parecia diminuir tanto quanto deveria. Porém, ainda assim, eles seguiram em frente.

Silêncio os acompanhava, tenso e desconfortável, uma companhia indesejada que ninguém estava disposto a assumir a responsabilidade de se livrar. A quietude era tão profunda e densa que, por um instante, Yuuri pensou ter ouvido os gritos raivosos de mentor e aprendiz ainda ecoando nas paredes ao redor. Nem dez minutos haviam se passado desde que se encontraram com Yurio, e mesmo assim já se via assombrado pelo passado.

Yuuri olhou adiante, em direção à escuridão infindável que se estendia à sua frente. Victor liderava o caminho, arrastando Yurio atrás de si, segurando-o com firmeza pelo pulso e não lhe dando qualquer esperança de se libertar. O adolescente não proclamou uma palavra sequer desde que deixaram o laboratório, e o mesmo valia para Victor. Além disso, desde o confronto, recusavam-se a olhar olho no olho. Yuuri estava preocupado. Vê-los brigar não foi fácil. Ele não disse nada, porém, nem naquela hora e nem agora. Não estava em posição de se intrometer.

Estava exausto, não apenas por ter corrido pela cidade inteira e depois subido vários lances de escadas, mas também por causa de todos os sentimentos com os quais estava tendo de lidar ao mesmo tempo. Sentiu vontade de suspirar, mas se conteve. Não queria destruir o frágil silêncio que havia se instalado ao redor do grupo, temeroso de descobrir o que aconteceria a seguir.

Yuuri olhou para os pés, observando seus passos, que não estavam lhe levando a lugar nenhum até onde sabia.

Quanto tempo mais tinham que seguir caminhando?

A sensação que tinha era de que estava marchando rumo ao Purgatório, e isso o levou a pensar em todos os pecados que cometeu em vida, todas as mentiras que já contou até hoje — ou talvez fosse mais correto dizer: todas as verdades que manteve escondidas.

Verdade seja dita... Não estava certo de que queria alcançar o fim do corredor.

Como poderia desejar isso para si mesmo, quando não sabia o que o aguardava no topo da escada?

 

—--

 

A solução temporária que Victor arranjou para o problema chamado Yurio foi colocá-lo de castigo.

Assim que chegaram ao topo da escada, Victor arrastou o garoto pela sala e os conduziu ao quarto. Ele nem mesmo cogitou esperar que Yuuri os alcançasse; assim que os dois adentraram o quarto de Yurio, ele simplesmente bateu a porta, dando a mentor e aprendiz a privacidade de que precisavam. Os dois tinham assuntos para discutir, questões que tinham respeito somente a eles. Por mais que Victor amasse Yuuri e desejasse que ele estivesse cem por cento envolvido em todos os aspectos de sua vida, havia momentos em que era necessário traçar um limite.

Yurio olhou ao redor, estudando as paredes e móveis que no último ano foram parte de sua vida, tentando se acalmar através da familiaridade que o local apresentava, mas falhando miseravelmente. Ele permaneceu estático, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, ombros tensos. Mesmo mantendo a cabeça erguida, os olhos do jovem transbordavam uma visível ansiedade; ele olhava para Victor como esperando que ele lhe mandasse arrumar as malas e partir.

— Senta. — Victor apontou para a cama e ordenou.

Yurio obedeceu — não que tivesse muita escolha — e se acomodou tão confortavelmente no colchão macio quanto a situação permitia. Victor permaneceu como estava, em pé e com os braços cruzados diante do peito.

Victor suspirou e balançou a cabeça.

— Vamos tentar de novo — Victor começou, tentando soar o mais paciente possível, mas não soando lá muito convincente, sua agitação podendo ser ouvida claramente por detrás de suas palavras. — Por que fez tudo isso?

Yurio permaneceu quieto e em silêncio, sua rebeldia revelando-se ao se recusar reagir de qualquer forma que fosse à pergunta de seu mentor.

Um nervo pulsava na têmpora de Victor. Ele caminhou em círculos pelo cômodo por alguns instantes e então um segundo, e mais profundo, suspiro escapou de seus lábios. Somente depois que esse pequeno ritual foi realizado foi que ele se virou para o jovem aprendiz.

— Por que não diz nada? — Victor perguntou, exigindo uma explicação, sua voz um pouco mais elevada do que ele pretendia, mas estava agitado demais para se importar.

A verdade é que, mais do que zangado, Victor encontrava-se abatido — abatido pelo que viu lá fora na cidade, pelos feridos que certamente estavam sendo levados para os hospitais naquele exato momento, e pelo aprendiz à sua frente, com quem havia falhado tão grandiosamente. A caminhada do laboratório para casa foi extremamente esclarecedora, pois permitiu que Victor percebesse que ninguém era mais culpado pelo que havia acontecido do que ele próprio.

— Tem ideia do que fez? Você pelo menos entende por que o que fez é errado? — Victor perguntou.

Victor deu um passo à frente, aproximando-se, mas não muito; uma distância considerável ainda existia entre eles, e Victor achou que era melhor assim. Não queria que Yurio se sentisse intimidado — não havia razão para fazer isso, especialmente quando o tiro poderia sair pela culatra e tornar tudo mil vezes pior — e dar-lhe um pouco de espaço foi a melhor solução que encontrou. O que ele mais queria era que Yurio prestasse atenção no que ele estava dizendo pelo menos desta vez.

Novamente, foi recebido com silêncio, o que certamente não estava ajudando a apaziguar suas emoções acaloradas. Victor levou uma mão ao rosto e esfregou-a na testa. Ele deu mais algumas voltas, mas desta vez quase sem sair do lugar.

— Não é você quem vai ter que carregar a culpa pelas pessoas que foram feridas hoje e, Deus me livre, por aquelas que perderam suas vidas — cuspiu Victor, por fim, ao que as palavras se tornaram um peso grande demais para serem carregadas e mantidas escondidas dentro dele. — Sabia disso?

Por um segundo, pensou ter visto a sombra de algo cintilar no fundo dos olhos azuis de Yurio — Surpresa? Arrependimento? Indiferença? — mas, ainda assim, silêncio foi tudo que lhe restou. De novo.

Com o sangue fervendo como água esquecida tempo demais em cima de uma chama ardente, Victor caminhou em direção à escrivaninha onde Yurio costumava realizar seus estudos e, apanhando um livro aleatoriamente entre os vários que se encontravam empilhados em um canto — um dos seus, percebeu amargamente —, bateu-o com força contra a mesa. O estrondo foi estridente, como um trovão partindo uma árvore ao meio. Yurio se sobressaltou, mas permaneceu de boca fechada.

Depois de alguns segundos, uma batida foi ouvida na porta.

Victor murmurou um palavrão baixinho ao perceber a ótima impressão que estava passando ao namorado. Do jeito que as coisas iam, Yuuri o estaria odiando antes do final do dia, e Victor não seria sequer capaz de discordar de seus motivos.

Ele caminhou até a porta e ficou surpreso ao perceber que Yurio observava atentamente cada um de seus movimentos. Sua boca se encontrava ligeiramente aberta, e algo ardia no fundo de seus olhos, embora Victor não conseguisse identificar exatamente o quê.

Victor abriu a porta, mas não mais do que uma pequena fresta, apenas o suficiente para que ele e Yuuri pudessem ver o rosto um do outro.

— Está tudo bem? Ouvi um barulho... Fiquei preocupado.

A voz de Yuuri era suave, incerta, preocupada. Victor estava fazendo um trabalho incrivelmente ruim em manter a situação sob controle; sempre que piscava, mais coisas pareciam ter se estragado por causa de seu toque amaldiçoado. Talvez pudesse até mesmo esperar um prêmio no final do ano: "Pior namorado e mentor do mundo''. Não sabia quem eram seus concorrentes, mas não tinha como eles estarem se saindo tão mal quanto ele, nem de perto.

Victor abriu a boca para responder, pronto para assegurá-lo ter tudo sob controle, mesmo que não fosse o caso, mas antes que as palavras pudessem sair de sua boca foi interrompido por gritos raivosos, cuja origem não poderia ser ninguém além de Yurio.

— Você!... Que caralho você tá fazendo aqui?

O menino se levantou, posicionando-se em frente à cama e apontando acusadoramente na direção deles. Seu rosto estava escarlate, queimando por conta de uma raiva que Victor não conseguia compreender.

Por um segundo, Victor pensou ser o alvo daquela ira, mas então percebeu que não tinha como ser o caso; não faria sentido a explosão de Yurio ter sido causada por ele quando o garoto, há poucos instantes, mostrava-se tão determinado a ignorar cada uma de suas perguntas. Mas então sobrava apenas mais uma opção.

Victor olhou na direção de Yuuri e, ao se deparar com olhos arregalados e feições pálidas, sentiu seu sangue ferver. Sem pensar duas vezes, Victor segurou o braço de Yuuri e o puxou para dentro do quarto.

— Como pode dizer uma coisa dessas pra ele?! — Victor perguntou, exigindo tanto uma resposta quanto um pedido de desculpas. Yuuri não fez absolutamente nada de errado, e com certeza não merecia ser tratado dessa forma por um pivete revoltado que nem nunca viu na vida.

Por causa das ações estúpidas e mal pensadas do Yurio, Yuuri não teve opção além de cruzar a cidade enquanto tudo desmoronava ao seu redor, a todo momento correndo o risco de se acidentar; e então, ainda por cima, ofereceu-se a subir lances e mais lances de escada para tentar ajudar Victor a pôr um fim ao grandioso plano que Yurio havia orquestrado antes que tudo se transformasse em uma catástrofe maior ainda. E agora Yurio se atrevia a falar com Yuuri em um tom tão rude e condescendente? Sem chances do Victor ficar quieto!

— Mas é tudo culpa dele! É por ele ter entrado na sua vida que as coisas ficaram assim!

— Não vou deixar você colocar a culpa nele! Estávamos muito bem e felizes no nosso encontro até você estragar tudo com sua brilhante ideia de destruir a cidade!

Yuuri imediatamente agarrou seu braço.

Percebendo a tensão por trás do forte aperto em seu braço, Victor se virou na direção de Yuuri, peito cheio de preocupação. Deparou-se com olhos ainda mais arregalados do que antes, além de uma boca ligeiramente aberta, como se tivesse algo importante a dizer, mas não conseguisse decidir que palavras usar.

Infelizmente, Yurio não lhe deu tempo para colocar as palavras em uma frase e, mais uma vez, Yuuri se viu impedido de falar aquilo que tanto desejava dizer.

— Você o quê?! Com o porco? — Yurio franziu a testa, em parte enojado, em parte confuso.

Com um nervo latejando fortemente no canto da cabeça, conter-se e não retrucar era impossível para Victor.

— Yuuri não é um porco! Qual o seu problema? — Victor não sabia de onde o jovem havia adquirido esse hábito de chamar todo japonês que encontrava de porco, mas precisava ter uma conversa séria e longa com ele sobre respeito e preconceito.

As mãos de Yuuri se tornaram ainda mais tensas ao redor de seu braço, e Victor tinha a leve suspeita de que aquela era a forma dele implorar silenciosamente para saírem do quarto. Victor, no entanto, não conseguia desviar o olhar do Yurio, especialmente não agora quando repulsa deixava suas expressões, sobrando apenas uma confusão honesta.

— Yuuri? Que diabos você tá falando? Esse é claramente o porco! Katsudon!

Yurio apontou para o homem parado ao lado de Victor, que por sua vez virou o rosto e murmurou algo que ele tinha certeza de ter sido um palavrão. As sobrancelhas de Victor franziram em confusão. Yurio balançou a cabeça, descrença estampada em seu rosto.

— Você é cego? Tá ficando senil? — Yurio questionou, suas perguntas o machucando de uma maneira que Victor não havia antecipado. Alguma chance do seu aprendiz parar de lembrá-lo de sua idade por pelo menos um minuto?

Ignorando o gancho de direita direcionado às suas inseguranças, Victor se virou, tirando sua atenção do garoto que agora os observava com desgosto e transferindo-a ao homem que permanecia agarrado ao seu braço. Nesse meio tempo, Yuuri havia congelado por completo, da cabeça aos pés, seu rosto agora aparentando estar mais pálido do que o habitual.

Yuuri não estava olhando para ele, mas também estava se esforçando para não virar completamente o rosto. Victor franziu o rosto, sua boca entreaberta. Olhou atentamente o namorado, o homem por quem se viu apaixonado desde que o viu pela primeira vez naquele dia, dois anos e meio atrás, em Yu-topia.

Victor observou o cabelo do homem, o qual escondia boa parte de sua testa e cuja cor era mais escura do que uma negridão profunda — escura como uma noite sem lua. Os fios eram macios, uma suspeita que sempre teve, mas que só descobriu ser realmente verdade recentemente. Adorava passear os dedos por entre os fios, especialmente na região da nuca; Yuuri sempre relaxava contra sua mão, um suspiro prazeroso inevitavelmente escapando de seus lábios, e isso enchia o coração do Victor de um calor aconchegante.

Baixando o olhar, Victor se deparou com os olhos de Yuuri: brilhantes e castanhos, misteriosos como se guardassem dentro de si os segredos do universo. Eram bonitos, de uma beleza excepcional, e várias vezes nos últimos dois anos Victor se viu pensando em como era uma pena estarem sempre escondidos atrás de grossas armações; entretanto, ao mesmo tempo, os óculos combinavam muito com Yuuri, logo Victor não via razão real para reclamar.

Abaixo de seu fino e pequeno nariz encontravam-se seus lábios, de um rosa suave e irresistível. Oh, o quanto ele não amava beijá-los... Eram tão doces quanto o próprio Yuuri, e até mesmo uma bitoca rápida fazia sua cabeça alçar voo rumo em direção aos céus.

Então, descendo o olhar um pouco mais, Victor estudou seu corpo como um todo. Yuuri tinha uma silhueta esguia, e na maioria das vezes escondia o corpo atrás de roupas largas que deixavam muito para a imaginação. Victor gostava quando se abraçavam, quando se beijavam, pois nesses momentos conseguia cruzar as barreiras que Yuuri normalmente mantinha erguidas ao seu redor, e tocar, e sentir. Gostava especialmente de descansar os braços em torno dos seus quadris e puxá-lo para mais perto, até que seus peitos estivessem pressionados um ao outro, permitindo que sentissem seus corações batendo juntos. Foi em uma dessas ocasiões que Victor percebeu que, mesmo que parecesse frágil, Yuuri era na verdade o dono de músculos fortes e bem definidos, provavelmente obtidos no trabalho, onde geralmente passava longas horas carregando bandejas pesadas cheias de pratos e comida.

Victor ergueu o rosto e olhou de novo na direção do namorado, estudando cuidadosamente aquele homem que era tão precioso para ele. Victor então pensou em seu nêmesis, que foi sempre tão bom para ele e que era também — bem, não tinha como ou porque negar — muito bonito.

Katsudon tinha cabelo preto, assim como Yuuri.

Katsudon tinha um nariz pequeno, assim como Yuuri.

Katsudon era de descendência japonesa, assim como Yuuri.

Katsudon tinha olhos castanhos e misteriosos, assim como Yuuri.

Katsudon era uma pessoa importante em sua vida, alguém insubstituível e que tinha um lugar especial em seu coração, assim como Yuuri.

Victor franziu a testa. A mão que segurava seu braço ficou ainda mais tensa, a força por trás do aperto aumentando consideravelmente. A boca de Yuuri abriu e fechou, como se tentando dizer algo, mas se calando logo a seguir por não ter certeza que palavras usar. Victor, no entanto, não prestava atenção nele agora, ou no que ele poderia ter a dizer — não estava porque já estava por demais ocupado estudando o homem à sua frente, comparando-o com aquele que agora ocupava seus pensamentos. Era impossível dividir sua atenção mais que isso.

Victor manteve as comparações; não que fosse capaz de parar agora que havia começado.

Yuuri e Katsudon... Os dois tinham, até onde Victor era capaz de dizer, a mesma altura, o mesmo tipo de corpo e, pelo que viu hoje, a mesma agilidade em seus passos.

Contudo...

Katsudon não usava óculos e seu cabelo estava sempre penteado para trás, para longe do rosto. E enquanto Yuuri geralmente optava por roupas largas, Katsudon sempre se vestia com aquele terno preto e gravata feia de sempre. Pequenas diferenças, mas elas tinham que significar alguma coisa… Certo?

— Eles... não são iguais — Victor disse, por fim, virando-se na direção de Yurio uma vez mais.

Ele esperava que sua convicção fosse capaz de alcançar seu jovem e problemático aprendiz, mas quando as palavras saíram de sua boca, Victor não tinha certeza de que conseguiria convencer sequer a si mesmo com aquele tipo de tom. Nunca se ouviu tão inseguro. Para onde tinha ido toda a sua habitual confiança? Aquilo não soou nada como o ele de normalmente.

Yuuri e Katsudon não eram a mesma pessoa. Yurio estava errado; tinha que estar, senão, o que isso diria sobre ele? O que isso significaria para o relacionamento dos dois?

A mão que segurava seu braço o soltou, e isso mais do que qualquer outra coisa trouxe os pés de Victor de volta ao chão.

Ele se virou em direção ao Yuuri, em direção ao homem que ele admirou de longe por tanto tempo, e que agora tinha tão perto de si. Yuuri tinha a cabeça baixa, voltada para o chão sob seus pés e decididamente para longe do olhar penetrante de Victor, evitando-o como uma praga. Seus ombros estavam tensos e retraídos, e seu rosto se encontrava extremamente pálido, todo o sangue tendo se drenado do seu rosto. Victor se perguntou se Yuuri estaria se sentindo mal, mas não foi capaz de dar voz à pergunta porque as palavras se recusaram a sair de sua boca, tendo se entalado em sua garganta em um nó desconfortável. Só esperava não começar a tossir pétalas de rosa encharcadas de sangue…

O que roubou as palavras de sua boca foi o silêncio de Yuuri em si.

Quando Yuuri finalmente se virou para ele, expressões de remorso foram o que receberam Victor. Isso foi mais que suficiente para Victor entender a mensagem.

— Sinto muito — Yuuri disse, finalmente, sua voz falhando perto do fim.

 

—--

 

Sozinho dentro do quarto, Yurio se via agora deixado enfim em paz — ou assim desejava.

Na verdade, ele era suposto de estar "pensando nas coisas erradas que fez enquanto os adultos tinham uma conversa importante", de acordo com o comando que Victor cuspiu em sua cara antes de sair do cômodo com Katsudon em mãos. E a verdade é que, de certa forma, ele estava sim pensando no que tinha feito, mesmo que não de forma consciente ou voluntária. Ele simplesmente não conseguia manter os pensamentos longe da cabeça.

Honestamente, o que Victor lhe disse o alfinetou como longas e pontiagudas agulhas rompendo a pele e perfurando sua carne. Uma picada forte o bastante para machucar, incomodar e torná-lo ciente de sua presença, mas não o suficiente para tirar sangue.

Estava se sentindo incomodado e sua mente estava como um turbilhão, sofrendo nas mãos de uma tempestade que veio tão rápida e forte quanto um feixe de luz a cortar facilmente o céu chuvoso em dois. Havia tantas emoções ardendo em seu peito, e um número tão grande de pensamentos voando sem rumo dentro da sua cabeça, que não conseguia nem mesmo reagir adequadamente à questão de Katsudon e sua aparente real identidade, algo que deveria estar incomodando-o muito mais do que estava no momento.

Yurio se percebeu olhando para o teto, branco e distante, suas próprias expressões também tão vazias quanto uma folha virgem de papel. Suspirou profunda e lentamente, de forma a sentir cada músculo de seu tórax se mover para cima e para baixo conforme seus pulmões se enchiam de ar. Infelizmente, ao contrário do que pensava — do que esperava — seu corpo só ficou mais pesado, a pressão que o puxava em direção ao chão não diminuindo nem um pouco. Pelo menos o colchão abaixo de si era macio.

"Não é você quem vai ter que carregar a culpa pelas pessoas que foram feridas hoje e, Deus me livre, por aquelas que perderam suas vidas”, as palavras de Victor ecoaram no vasto vazio de sua mente.

Yurio fechou os olhos com força. Considerou respirar fundo novamente, mas sabia que isso não resolveria seus problemas, nem o faria se sentir melhor.

Pela primeira vez, Yurio se viu reconhecendo a gravidade do que havia feito, bem como o peso e as consequências de sua vingança sem sentido. Toda ação realmente tinha uma reação de força proporcional, bem como os livros de Física sempre lhe ensinaram. O que não lhe foi informado, todavia, era que na maioria das vezes as vítimas acabavam não sendo os alvos originais da insatisfação por trás da ação.

— Sou um vilão, sou mau e ferir inocentes não é um problema pra mim — Yurio disse a si mesmo, com firmeza questionável.

Uma parte de si insistia em continuar com esses pensamentos, agarrando-se a eles como se fossem sua única esperança, a única estrada que o levaria ao lugar que almejava estar. No fundo, Yurio ainda era apenas um adolescente, um garoto de quinze anos.

Ele se virou de lado, o colchão se movendo debaixo dele para melhor acomodar o peso de seu corpo. Não demorou até que Yurio se visse pensando em Victor, em suas atitudes e nos planos “malignos” do Treinador, tentando compreender o que acontecia dentro da cabeça do seu mentor. Pela primeira vez, tentou ver as coisas do ponto de vista dele, na esperança de que isso lhe trouxesse alguma luz.

Perguntou-se se, esse tempo todo, havia entendido tudo errado.

Teria ele confundido suas fantasias com a realidade? Isso não seria assim tão improvável, considerando o quão cabeça dura ele era algumas — na maioria — das vezes. Isso o fez pensar, imaginar, considerar todas as possibilidades que havia ignorado até então... e isso só fez com que a agitação dentro de sua cabeça se tornasse ainda mais violenta. Não demorou até que uma pergunta ecoasse em seus pensamentos, acima de todas as outras, exigindo uma resposta.

O que exatamente significava ser um vilão?

 

—--

 

Na mesa da cozinha, Yuuri se encontrava sentado com punhos apoiados no colo e unhas perfurando a pele das palmas das mãos. Doía, mas — como sempre — não conseguia evitar de cair em velhos hábitos, por mais ruins que fossem.

Victor estava sentado bem diante dele, ombros tensos e cabeça ligeiramente inclinada para frente, seu cabelo platinado cobrindo boa parte do rosto. A posição em que se encontravam era ideal para terem essa importante — mas bastante adiada — conversa, pois facilitava o contato visual, além de proporcionar distância suficiente entre eles para dar a ambos uma sensação de conforto e espaço, criando assim um ambiente favorável para abrirem suas almas e finalmente colocarem todas as cartas na mesa. Entretanto, nenhuma palavra foi dita nos últimos minutos, e nenhuma parecia estar a caminho. A quietude do ambiente era espessa e densa, quase palpável.

O silêncio era sufocante, e tudo que Yuuri podia fazer era assistir seu namorado — seu nêmesis — desmoronar diante de seus olhos, aparentando ter perdido o controle do mundo e estando agora com os pés afastados do chão. Yuuri não tinha ideia do que poderia fazer para ajudar, e duvidava que suas palavras pudessem fazer algum bem ao Victor; isto é, caso ele ainda estivesse disposto a ouvir qualquer coisa que tivesse a dizer, o que Yuuri não era capaz de afirmar com confiança após a grande revelação.

Depois de descobrir a verdade, que esteve todo esse tempo bem na frente do seu nariz, mas para a qual ele fechou completamente os olhos, Victor agarrou seu braço e o puxou para fora do quarto, não largando de seu pulso até que se vissem na privacidade da cozinha.

Inicialmente, Yuuri pensou que uma discussão estava por vir, que talvez Victor fosse redirecionar sua raiva e descontar sua frustração nele — o que teria sido justo, considerando o que Yuuri tinha feito. Porém, em vez disso, foi recebido com silêncio e com uma falta de qualquer reação real. Victor simplesmente se sentou, largando o corpo de tal maneira que Yuuri se preocupou que a cadeira tombasse para trás, e manteve a boca tão fechada quanto um pote de geléia bem lacrado. Como Yuuri não tinha ideia do que fazer, ou dizer, sentou-se diante dele na mesa da cozinha e se resignou a assistir o outro homem, uma preocupação silenciosa ressoando em seu peito.

Pelo que Yuuri podia ver, Victor não conseguia evitar de se sentir culpado pelo que havia acontecido, pelo que Yurio havia feito. Ele insistia em colocar toda a culpa em si mesmo. Seu estresse era tão grande e sua preocupação de grandiosidade tamanha que não parecia restar espaço para mais nada. Yuuri queria se sentir aliviado pela briga dos dois ter sido adiada por hora, mas era impossível fazer isso quando o homem à sua frente, que ele tanto amava, mostrava-se tão triste. Além disso, não seria certo. Yuuri estava errado, sempre esteve e tinha plena consciência disso, e merecia ter Victor gritando com ele por tanto tempo quanto ele achasse necessário, e ficaria mais do que feliz em ser submetido a essa punição se isso ajudasse a dissipar a nuvem escura que pairava sobre a cabeça de Victor.

Antes de sair do quarto, Victor mandou Yurio pensar no que havia feito. Yuuri se perguntava se o adolescente estava fazendo o que lhe foi dito, ou se sua rebeldia seria um problema com o qual eles teriam que lidar de agora em diante.

"Eles," Yuuri repetiu em sua mente, e sua cabeça tombou para frente em resposta. Será que ainda haveria um "eles'' depois de hoje?

Levantando novamente o rosto, encontrou Victor na mesma posição em que se encontrava desde que se sentou, curvado e abatido, completamente silencioso, o que fez Yuuri sentir um aperto no peito. Agarrou as bordas da mesa, os nós dos dedos ficando brancos devido à força do aperto. Sentia-se tenso, ansioso, mas pelo menos assim podia evitar de machucar as próprias mãos.

O que Yuuri mais queria era estender as mãos e entrelaçar seus dedos com os de Victor, sentir o calor de sua mão se mesclar com a sua, mas não tinha como ele fazer isso. A distância que os separava continuava sendo tão real quanto antes, e não era um obstáculo que conseguisse saltar.

— É tudo minha culpa — Victor murmurou, enfim quebrando o silêncio que havia se mantido firme nos últimos minutos

Yuuri fechou os olhos e agarrou o tampo da mesa com ainda mais força.

— É minha culpa ele ter feito uma coisa tão terrível — repetiu Victor, e então acrescentou: — Se eu tivesse sido um mentor melhor, se eu o tivesse instruído direito, as coisas não teriam acabado assim.

Essa foi a gota d'água.

Yuuri sabia melhor do que ninguém como era acreditar não ser suficiente, como era se menosprezar em toda chance que aparecia, julgando-se como incapaz e colocando uma “incompetência nata” como culpada pelos fracassos que se deveria estar a enfrentar de cabeça erguida.

Era mais fácil se convencer de que era inevitável as coisas terem dado errado por causa de quem você era e dos defeitos que carregava, do que lidar com os motivos que levaram a isso — uma atitude covarde, mas uma da qual Yuuri se utilizou mais vezes do que era capaz de contar. Não era algo do qual se orgulhava, longe disso. Tinha vergonha, e sempre fazia o possível e o impossível para evitar ao máximo recorrer a esse terrível hábito, desejando crescer emocionalmente. E se Yuuri foi capaz de se tornar uma versão melhor de si mesmo foi graças àqueles ao seu redor: sua família, que o apoiava em tudo, Celestino, Phichit e — por último, mas não menos — Victor.

Seu nêmesis foi uma peça fundamental em sua transformação, e se Yuuri foi capaz de se tornar um agente confiante de si mesmo e de suas habilidades era por causa do seu apoio. Desde o primeiro dia, Victor valorizou seu trabalho e o tratou de acordo, até mesmo o elogiando quando o momento mostrava abertura para isso. Vê-lo se afundando em um buraco fundo era de partir o coração, e não era algo que Yuuri esperou testemunhar em sua vida.

Era insuportável ver Victor caindo mais e mais fundo no abismo sem fim que era o desespero. Perguntava-se se ele ainda conseguia ver o menor e mais fraco lampejo de luz, ou se já havia se perdido completamente em meio à escuridão.

Yuuri desejava poder ser aquela luz. Queria ajudá-lo, assim como Victor o ajudou tantas vezes.

Esse pensamento foi o que lhe deu coragem para sair da inércia.

— Victor — Yuuri chamou, sem muita certeza, mas ainda assim buscando por aquele pequeno vislumbre de esperança de que poderia ser útil.

Não esperava que Victor imediatamente levantasse o rosto e o encarasse por trás de longos cílios claros, por isso, Yuuri foi incapaz de evitar de se sobressaltar quando se deparou com olhos azuis profundos. Se a batida estrondosa de seu coração era algo a se considerar, então talvez não estivesse tão pronto quanto pensava estar.

Ainda assim, não iria recuar. Essa não era uma opção.

Yuuri engoliu o nó que havia se formado em sua garganta e endireitou as costas, desejando se mostrar tão confiante e digno de confiança quanto possível, embora isso estivesse longe de ser como ele estava se sentindo.

— Victor, não é sua culpa. Nada disso. Além de que, ficar se culpando não vai resolver nada.

Por um minuto, Yuuri ficou em silêncio. Sentiu-se tremer, pernas balançando sem parar. Seu aperto no tampo da mesa havia ficado tão forte que tinha certeza de que linhas vermelhas agora decoravam as palmas de sua mão. O nó em sua garganta também estava de volta, mais incômodo do que nunca.

Victor balançou a cabeça, o movimento tão devagar que seu cabelo quase não se moveu.

— Você só diz isso porque quer que eu me sinta melhor — foi a resposta de Victor, sua voz suave como um sussurro.

— Bem, sim… Quero que você se sinta melhor — Yuuri admitiu e empurrou a cadeira para mais perto da mesa, em direção ao Victor, sentindo uma súbita necessidade de encurtar a distância entre eles. — Mas isso não é tudo.

Yuuri manteve a boca fechada por um instante, escolhendo uma a uma as palavras que falaria a seguir. Escolhas erradas não eram uma opção. Não podia — não podia de jeito nenhum — estragar tudo.

— Olha, você sempre foi um ótimo exemplo pro Yurio, e nunca fez nada que o pudesse levar a pensar que não tinha problema causar aquele tipo de destruição. Você o ensinou bem. Você o treinou para ser forte e capaz. Você foi… é um bom mentor.

O silêncio de Victor não o desencorajou, e Yuuri continuou determinado a não desistir até que ele mudasse de ideia.

— Yurio... Ele fez algumas escolhas ruins. Mas tudo bem! Você só tem que o ajudar a seguir o caminho certo daqui pra frente.

Yuuri viu-se mordendo o lábio sem nem perceber. Observou a mão de Victor sobre a mesa — tão distante, mas ainda ao alcance. Pensou neles, em Yuuri e Victor, em Katsudon e o Treinador. Pensou em todas as vezes que estiveram juntos, e nos dias… meses… anos que se passaram desde que se conheceram.

Também não foi capaz de prever as ações do Yurio. Isso significava que ele também carregava parte da culpa?

Não se sentia responsável pelo que havia acontecido e preferia não ter de carregar essa culpa, porém, se isso bastasse para aliviar o peso sobre os ombros do Victor, estava mais do que pronto para viver com isso.

Mas não diria isso ao Victor. Não agora, pelo menos. Não quando as coisas estavam tão nebulosas entre eles.

— Eu… — Yuuri abriu a boca e não conseguiu fechá-la a tempo, — tenho estado ao seu lado já há bastante tempo, de uma forma ou de outra.

Yuuri estudou as próprias mãos, que finalmente permitiu que relaxassem, aliviando seu aperto na mesa. Seu peito ainda doía, uma dor bem no fundo do coração. Assuntos imploravam por serem abordados, aglutinando-se em sua garganta e lá permanecendo, imóvel, um caroço incômodo que se perguntava quanto tempo mais teria que aguentar.

Tinha plena ciência de que deveria estar se concentrando no problema chamado Yurio agora, mas era difícil fazer isso quando não sabia quão perto podia chegar, quando não sabia em que pé estavam, se estava sendo odiado ou mesmo se sua presença continuava sendo bem-vinda.

— Está bravo comigo? — A pergunta escapou de seus lábios com tamanha pressa que as palavras não conseguiram evitar de tropeçar umas nas outras.

Yuuri sentiu seu coração acelerar, e seus olhos se arregalarem um pouco mais amplamente. Uma bolota de ar se entalou em seu peito, recusando-se a subir ou descer, e estava começando a ficar difícil de respirar. Não conseguia acreditar que realmente tinha dito aquilo, mas era tarde demais para voltar atrás.

— Eu não tinha a intenção de mentir para você. Eu só não queria destruir o relacionamento que a gente tinha — Yuuri explicou, sem esperar por um convite.

A batida frenética que ressoava nos ouvidos de Yuuri estava ficando cada vez mais elevada, a barulheira crescente. Seu olhar se via inquieto, incapaz de focar em um único ponto e, ao invés disso, ele passeava incansavelmente pela sala de estar.

A boca de Victor se abriu e assim permaneceu. Ele ergueu o rosto e, agora, encarava Yuuri atentamente. Seus olhos eram atraídos um ao outro, azul encontrando marrom em uma troca de olhares tensa e silenciosa.

— Você realmente me ama? — Victor perguntou.

Os olhos de Yuuri se arregalaram ainda mais — aparentemente isso ainda era possível — e seu coração se apertou, dolorido.

Não se dando tempo para mudar de ideia, Yuuri buscou pela mão de Victor em cima da mesa, pousando a sua sobre a dele. Dentre todas as coisas que pensou que pudessem acontecer, que Victor fosse questionar seus sentimentos com certeza não estava na lista. Pensou que seria recebido com raiva, irritação, frustração, mas não dúvida. Nunca dúvida.

— Sim! — Yuuri disse depois de alguns segundos, que foi o tempo que demorou para digerir a pergunta ridícula que foi atirada nele. — Sim, mas é claro

Ele olhou para a mão deles, ainda unidas sobre a mesa, e aumentou a força do seu aperto. Yuuri respirou fundo, até seus pulmões alcançarem os limites, e então deixou que seus sentimentos vazasse para fora de seu corpo.

— Eu te amo tanto que, às vezes, chega a ser difícil. Você ocupa os meus pensamentos tanto tempo que é problemático. E, manter minhas mãos longe de você é muito, muito difícil, pois tudo que mais quero é tocar e ser tocado por você.

— Eu... não sabia que você queria ser tocado. — As implicações daquelas palavras eram mais que suficientemente claras, o que levou Yuuri a corar em resposta.

A culpa deles não terem dado esse passo ainda, mesmo após meio ano em um relacionamento estável e alegre, era exclusiva do Yuuri. Eles se beijaram diversas vezes, foram em encontros, até mesmo trocaram leves carícias algumas vezes, porém, ainda não haviam consumado o relacionamento e havia uma boa razão para isso.

Yuuri olhou para baixo, tímido, mas sabia que não havia mais sentido em guardar segredos. Victor merecia ouvir a verdade, incluindo as partes que Yuuri preferiria manter lacradas dentro de seu coração.

— Como eu poderia fazer amor com você quando não conseguia nem dizer a verdade? — Sua voz tremeu levemente, algo que pegou até mesmo Yuuri de surpresa.

A culpa que ele havia trancafiado no fundo do peito emergiu de onde esteve escondida pelos últimos dois anos, e as emoções que trouxe junto foram devastadoras. Yuuri fechou os olhos ao senti-los úmidos, mas não havia como esconder de Victor o tremor involuntário que tomou seus lábios.

Yuuri estava se sentindo uma merda, e não conseguia acreditar que tinha mentido para Victor esse tempo todo. Ele não era digno do Victor, por isso as coisas estavam do jeito que estavam.

A mão sob a dele se virou e dedos se entrelaçaram aos seus de forma familiar. O gesto lhe pegou de surpresa. Yuuri ergueu o rosto, abrindo lentamente os olhos e sendo saudado pelo sorriso gentil de Victor. Victor estendeu sua mão livre e limpou as lágrimas do canto dos seus olhos, o que só fez Yuuri querer chorar ainda mais.

— Não é como se eu pudesse colocar toda a culpa em você, Yuuri... Katsudon... Hum, enfim. Também sou culpado por não ter percebido. Tipo, vocês dois... Vocês têm o mesmo rosto, e ainda assim eu falhei tão espetacularmente em notar isso.

Victor balançou a cabeça e suspirou profundamente. Ele não parecia estar com raiva, ou pelo menos o sorriso em seu rosto não passava essa impressão. Quando seus olhos se encontraram novamente, foi na companhia de uma pergunta — um pedido.

— Posso? — Victor perguntou, apontando para os óculos de Yuuri.

Seu pedido não podia ter sido mais claro. Com um aceno da cabeça, Yuuri concedeu sua permissão, e então permaneceu completamente imóvel para que Victor apanhasse os óculos. Enquanto ele os tirava do seu rosto, o tempo passou tão devagar que quase parecia ter congelado. O coração de Yuuri estava barulhento em seus ouvidos, reverberando tão alto que se perguntava se Victor também conseguia escutá-lo.

Quando enfim se viu livre dos óculos, Yuuri se sentiu envergonhado como se suas roupas é que tivessem sido removidas. Sentia-se nu, exposto, e a maneira como Victor estava olhando atentamente para ele não estava ajudando a apaziguar o calor em seu rosto. Seu único alívio era que, pelo menos, não conseguia ver as expressões no rosto do Victor — o único benefício de sua visão ruim. Ainda assim, apesar da visão embaçada, não teve problemas em reconhecer a curva que surgiu nos lábios do Victor, ou a maneira como seus ombros de repente pareciam estar bem mais relaxados do que antes.

Uma risada breve foi ouvida, a qual saira do Victor Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Como é que eu nunca percebi as semelhanças? É tão óbvio, e estavam bem na minha cara!

Victor riu de novo, agora mais alto, seu corpo tremendo por inteiro. Ele parecia estar em negação, mas não de um jeito ruim. Yuuri achava compreensível que seu nêmesis tivesse ficado tão chocado com o quão cego ele havia sido, o próprio Yuuri também nunca tendo sido capaz de compreender como ele não havia conectado os pontos logo no primeiro dia.

Um sorriso floresceu nos lábios de Yuuri — minúsculo, mas existente.

— Sim, sei o que quer dizer — Yuuri disse e se sentiu relaxar, seu corpo inteiro de repente parecendo estar muito mais leve. — No começo, pensei que você estava fingindo que não tinha me reconhecido, por isso decidi ficar quieto. Mas então você me disse, disse ao Katsudon, que estava apaixonado por mim, pelo Yuuri, e então eu percebi que tinha algo muito errado. Pensei em dizer a verdade, mas começamos a namorar pouco depois e só piorou a partir daí. Era difícil falar a verdade porque eu não queria que a gente terminasse.

— Então manteve sua identidade em segredo porque havia se apaixonado por mim? — O sorriso nos lábios de Victor nunca foi tão grande.

— Bem… Sim. — Yuuri admitiu e olhou para o lado. — Eu não tinha a intenção de te enganar, mas me desculpe de qualquer forma.

Yuuri suspirou, e aparentemente o sopro que escapou por seus lábios carregou junto toda a culpa que ele vinha sentindo há tanto tempo. O peso em suas costas desapareceu e ele com certeza não estaria sentindo falta dele. Era um alívio finalmente levar alguma luz ao relacionamento deles. Sem mais segredos escondidos nas sombras, sem mais motivos para Yuuri ficar se culpando, nada mais para importuná-lo em seu sono.

Ainda assim, ele não se veria cem por cento livre de preocupações até que uma certa pergunta fosse respondida.

— Então, estamos bem?

No fundo, Yuuri sabia que tudo estava bem — a reação de Victor e seus sorrisos calorosos deixaram esse fato claro. Porém, ainda assim, era incapaz de manter os temores afastados. Aguardou pela resposta de Victor em meio a uma quietude ansiosa.

Com expressões enigmáticas no rosto, Victor se levantou e caminhou em direção ao Yuuri, que observou sua aproximação com uma ansiedade torturante roendo-o por dentro. Victor se sentou na cadeira ao seu lado e se virou para que ficassem frente a frente. O silêncio que se seguiu pareceu durar uma eternidade.

— Posso te beijar?

Yuuri piscou, surpreso e ainda saboreando aquelas três pequenas palavras. Então, de repente e sem dar qualquer aviso prévio, o rosto de Victor começou a se aproximar. Yuuri fechou os olhos, sentindo seu coração bater na velocidade da luz, e se preparou para o beijo que estava por vir. No entanto, por mais que esperasse, o beijo nunca veio. Quando entreabriu um dos olhos para espiar a situação, percebeu que Victor havia parado no meio do caminho e que estava agora esperando que Yuuri extinguisse com a distância restante.

Com olhos semicerrados e um rubor cobrindo seu rosto até as orelhas, Yuuri não precisou pensar duas vezes. Inclinou seu corpo para frente e permitiu que seus lábios se encontrassem no pequeno espaço entre eles. Quente, macio, delicado. Uma explosão de emoções floresceram em seu peito, como se a Primavera tivesse chegado mais cedo. Yuuri se afundava nessa infinidade de sentimentos e sensações quando Victor colocou um braço em volta de seu pescoço, transformando completamente o beijo em algo diferente. Quente, profundo, ansioso. Yuuri não tinha queixas a fazer e simplesmente se permitiu afundar ainda mais.

Quando finalmente se separaram, viram-se emaranhados em um abraço que nenhum dos dois desejava desatar. Victor descansou o rosto no ombro de Yuuri e suspirou profundamente, em contentamento.

— Te amo tanto que se nos separássemos tenho certeza de que você levaria uma parte da minha alma com você — Victor sussurrou próximo ao seu ouvido.

Yuuri sorriu, então beijou seu rosto, sua bochecha, seu ombro — onde quer que pudesse alcançar sem ter que destruir o momento de intimidade que compartilhavam.

— Eu te amo tanto quanto.

Victor estremeceu e escondeu o rosto na curva do seu pescoço. Yuuri ficou confuso com a reação inicialmente, mas então notou a proximidade em que estava do ouvido de Victor. Yuuri sorriu e anotou aquela informação em um canto da mente — com certeza seria útil no futuro; em um futuro não muito distante, se tivesse sorte.

Quando Victor finalmente se afastou, suas expressões estavam novamente sérias e preocupadas, e Yuuri percebeu que era hora de voltarem a tratar da urgência do momento — ou seja: Yurio.

— Você realmente acha que não é minha culpa?

— Bem, sim. Ou ao menos essa é a minha opinião.

Sua resposta não pareceu bastar, e Yuuri podia ver o porquê.

— O que eu quero dizer é que, mais do que no passado, você devia se concentrar no futuro — Yuuri acrescentou. — Focar no que você pode fazer para garantir que Yurio não faça algo assim de novo.

— Alguma sugestão? — Victor perguntou, esperançoso.

Yuuri franziu os lábios e deu de ombros.

— Lamentavelmente não. Desculpa.

Sentia-se mal por dar ao Victor um conselho tão vazio, tão incompleto, mas preferia ser honesto e admitir que não tinha nenhuma solução mágica para oferecer do que mentir e arriscar piorar as coisas.

Com um suspiro profundo, Victor pousou os cotovelos na mesa e descansou o rosto nas mãos.

— Acho que não tenho escolha — lamentou. — É hora de ligar pro Mestre.

 

—--

 

Yakov estava no meio de um sonho pacífico quando foi acordado pelo toque estridente do telefone. Geralmente, ninguém ligava para ele em horas tão absurdas — poucos eram loucos o suficiente para perturbar seu sono — então ele imediatamente saltou para fora da cama com a expectativa de ser recebido por algum tipo de emergência. No entanto, bastou olhar brevemente para o visor do telefone de flip para que ele se acalmasse, permitindo que seu pobre e velho coração sossegasse. Era apenas o idiota do seu filho confundindo os fusos horários de novo, uma inconveniencia do qual nunca foi capaz de se livrar.

Aceitou a chamada já se sentindo estressado, um sermão descansando na ponta da língua só esperando para ser proferido.

Entretanto, não lhe foi dado tempo nem para dizer olá.

— Yakov, é uma emergência!

O velho senhor se endireitou e franziu o rosto, suas rugas se tornando ainda mais evidentes. Agora isso sim era algo que ele não esperava. Seu coração já estava correndo novamente, algo que seu médico não aprovaria nem um pouco.

Indo em direção ao guarda-roupa, Yakov já se preparava para sair quando percebeu que havia muito pouco que podia fazer. Victor estava em outro país, muito distante de si, e teletransporte infelizmente não era uma de suas várias habilidades.

A distância entre eles nunca pareceu tamanha.

— O que aconteceu? — perguntou.

Prontamente, Yakov estudou as possibilidades, listando-as em sua mente e riscando-as da lista conforme olhava para o passado. O assunto certamente não dizia respeito ao Victor propriamente, e essa era uma certeza da qual ele não tinha problemas em afirmar; seu filho adotivo preferiria morrer uma morte horrível a pedir-lhe ajuda. Com isso sobravam menos opções, mas ainda assim uma quantidade considerável.

— Yuri está morrendo? — foi seu primeiro palpite.

— Quê? Não! — Victor respondeu de imediato, parecendo incrédulo com a sugestão.

— Ele disse que vai largar a escola? — tentou novamente.

— Não.

— Então por que me ligou? — Yakov reclamou, franzindo novamente a testa, e então procurou pelo relógio ao lado da cama. — Às duas da manhã!

Yakov se sentou na beirada da cama e passou a mão no cabelo ralo em sua cabeça. Victor era certamente o maior culpado pela sua calvície.

— Desculpa, mas é sim uma emergência. E tem a ver com o Yurio — Victor falou, mas, ao contrário do que suas palavras diziam, ele não parecia estar realmente com a consciência pesada por conta do horário.

— Então o que está esperando? Desembucha!

Yakov esperou enquanto Victor lhe contava toda a história, partindo de quando ele iniciou carreira solo e começou a frequentar a faculdade. No início, pensou em exigir que ele fosse direto ao ponto; agora, trinta minutos depois, sentia-se grato por não ter feito isso.

Quando um filho sai de casa, é inevitável que ele construa uma vida para si próprio e que os pais passem a não ficar mais informados de cada mínimo detalhe de sua vida. Isso faz parte da vida, de crescer e de desenvolver independência, e Yakov sempre soube que, um dia, teria que deixar Victor sair do ninho. Entretanto, nunca imaginou que a distância chegaria a tais proporções, e sem que ele sequer percebesse esse fato. Até onde sabia, estava de certa forma bem informado do cotidiano do Victor e tinha uma ideia geral de como as coisas estavam indo graças aos telefonemas que eles faziam ocasionalmente, a cada dois meses mais ou menos. Agora, porém, via-se perante a realidade: a verdade é que ele não sabia de nada, de absolutamente nada.

— Então você está namorando? — Yakov perguntou, desejando ouvir uma confirmação do que acabara de ouvir.

— Sim.

— Com o seu nêmesis? — Yakov acrescentou, e Victor confirmou sem nem pensar duas vezes.

Yakov sentia que não devia estar surpreso que tal coisa tivesse acontecido enquanto ele não estava olhando, considerando quem era o pai de Victor, mas ainda assim era um choque saber que seu filho estava romanticamente envolvido com alguém que você não conseguia sequer ligar um rosto ao nome.

E se esse tal de Yuuri não for bom o bastante para o Victor? E se ele quebrar seu coração? Talvez devesse investigá-lo, quando tiver tempo... Só por precaução.

Voltando sua atenção ao que Victor estava lhe contando anteriormente e deixando o assunto do namorado de lado por hora, Yakov decidiu ir direto ao ponto. Já eram quase três da manhã e seus velhos ossos não eram mais compatíveis com uma vida tão agitada. Estava cansado e com sono, e estava com muita falta do seu travesseiro.

— Deixa eu começar dizendo uma coisa. Yuri ter destruído a cidade? É sua culpa sim — Yakov disse, planejando tirar isso do caminho o mais rápido possível.

Yakov foi recebido com silêncio. Ele suspirou. Aparentemente, algumas coisas não haviam mudado: Victor ainda se fechava completamente quando estava perdido em pensamentos. Visto que isso poderia durar horas se ele o deixasse na dele, Yakov decidiu simplesmente lhe entregar a explicação em uma bandeja de prata desta vez.

— Você devia ter ficado de olho nele. Isso não aconteceu do dia pra noite. Como você não percebeu o que estava acontecendo com o seu próprio aprendiz até as coisas ficarem assim?

— Eu... Eu não sei. Achei que ele estava feliz. Parecia estar — Victor tentou se defender, inutilmente. Ele mesmo pareceu perceber que suas palavras haviam soado como nada além de desculpas, pois se calou logo a seguir.

— Então você não estava prestando atenção o suficiente — Yakov repreendeu, soando tão severo quanto costumava soar quando repreendia Victor no passado, nos tempos em que ele era ainda apenas uma criança encrenqueira vivendo sob seu teto e o seguindo por toda parte.

Com um suspiro, Yakov deu ao Victor um minuto para que ele assimilasse tudo que havia sido dito. Coçou a cabeça e bocejou alto, a idade avançada pesando em suas pálpebras. Seus dias como supervilão já haviam acabado — isso já há algum tempo —, mas sua posição como mentor e figura paterna do Victor era algo que ele levaria consigo para o túmulo. Por causa disso, Yakov também se sentia parcialmente responsável pelo que havia acontecido com Yuri.

— Foi um erro aceitá-lo como aprendiz — disse Victor, abatido, e Yakov se perguntou se ele realmente acreditava nisso.

Quando Yuri era pequeno, ele admirava tanto o Victor que costumava ser um problema, e quando seu filho foi para fora do país, o menino se transformou em um problema maior ainda. Que ele iria atrás de Victor assim que surgisse a oportunidade era algo esperado, e ninguém ficou surpreso quando ele começou a exigir permissão para seguí-lo. Embora tenha se mostrado desapontado desde o momento em que chegou à sua porta, o menino certamente ficaria arrasado se Victor dissesse aquilo na cara dele.

Victor realmente ainda tinha muito que aprender.

— Do que está falando? Seu relacionamento com o menino não gira em torno de um único erro. Não seja estúpido.

— O que devo fazer então? — Victor perguntou, e ele parecia perdido, completamente perdido. Yakov podia ouvir deu desânimo até mesmo através do telefone, nem mesmo a distância mascarando o gosto amargo que o fracasso havia deixado em sua boca.

— Como esse tal de Yuuri disse, concentre-se no que você pode fazer a partir de agora. Mantenha seus olhos no futuro. Essa batalha ainda não acabou, garoto.

— Yurio não é uma pessoa fácil de conversar — Victor murmurou, falando como se Yakov não soubesse desse fato tão bem quanto ele.

Yakov suspirou, já perdendo a paciência.

— Bem, você é o mentor dele. Tenho certeza que vai conseguir pensar em algo.

Evidentemente, essa resposta não era o que Victor esperava, não sendo nem de perto o bastante para agradar seu exigente filho.

— Você realmente não tem nenhum conselho que possa me dar? — perguntou, impaciente.

— Bem — Yakov coçou o queixo e pensou no que poderia dizer. Sorriu quando as palavras certas encontraram sua boca. — Certa vez alguém me disse que uma conversa franca pode causar milagres.

— Alguém? Quem?

Yakov sorriu, seu peito cheio de nostalgia.

— Seu pai.

 

—--

 

Quarta-feira. Uma tarde desastrosa na Torre de São Petersburgo.

Três pessoas se entreolhavam em meio a um silêncio desconfortável. Eles se encontravam sentados na cozinha, uma xícara de chocolate quente fumegando sobre a mesa. Um garoto loiro fazia birra, braços cruzados na frente do peito, um russo de elevada estatura sorria o mais amigável que a situação permitia e um moreno observava os outros dois, sentindo tanto ansiedade quanto nervosismo.

Quando um par de olhos azuis irritados se encontrou com castanho do outro lado da mesa, o pobre homem, sentindo-se muito como uma terceira parte, perguntou-se se não era hora de partir. Ele estava prestes a levantar quando uma mão pousou em sua perna. O homem se virou e, ao se deparar com um par de olhos azuis, gentis e amorosos, imediatamente se sentou novamente na cadeira.

O pedido foi silencioso, mas claro.

Se aquele homem, dono de olhos tão radiantes, sentia que sua presença era necessária, ele então ficaria onde estava. Mesmo se aqueles olhos raivosos do outro lado da mesa lhe dissessem o contrário, mesmo se aquele olhar perfurassem seu corpo e alma... Não se moveria sequer um centímetro.

 

—--

 

Como em uma tarde monótona de domingo, o tempo passava devagar, o Sol se arrastando pela lona azul que era o céu. A xícara de chocolate que estava sobre a mesa já havia esfriado, seu conteúdo ainda intocado mesmo após tanto tempo; outro gesto fútil resultado de um protesto sem propósito, Yurio reconhecia, mas não conseguiu se impedir de agir daquela forma, por mais infantil que fosse.

Ele ainda estava se sentindo em conflito, os muitos pensamentos rodopiando em sua mente o deixando inquieto e desconfortável — sem ordem, sem paz, sem tempo para consertar o caos que corria solto dentro de sua cabeça. Se tivesse poder de escolha, Yurio teria prontamente optado por permanecer mais um pouco dentro do isolamento de seu quarto, onde teria sido capaz de dar ao seu cérebro o tempo que necessitava para lidar com toda a confusão que lhe feria o peito. No entanto, essa opção não lhe foi dada.

— Yurio — Victor chamou, a terceira vez desde que foi buscar o menino no quarto.

Nenhuma resposta foi dada. O garoto permaneceu com os lábios fechados, a cabeça inclinada levemente para a frente e os olhos voltados para baixo, mas para nenhum lugar em específico. No seu colo, escondidas sob o tampo da mesa, suas mãos agarraram ansiosamente o tecido de sua calça, causando o surgimento de rugas profundas e cheias de significado.

Victor suspirou e Katsudon olhou para o lado, seu desconforto perceptível na oscilação de seus olhos castanhos.

— Yuri — Victor disse em vez do apelido, e desta vez o menino ergueu a cabeça.

Embora não houvesse uma maneira de saber qual dos “Yuri” Victor estava chamando, Yurio ainda assim se viu reagindo.

Uma parte de si mesmo lembrou Yurio de seu lugar na vida do Victor — sempre em segundo lugar, nunca o primeiro a ocupar os pensamentos do homem —, sussurrando em seu ouvido que não havia como ele estar o chamando e não ao homem bem a seu lado, cuja mão Yurio tinha certeza dele estar segurando sob do sigilo da mesa. Internamente, todavia, na parte mais profunda de sua alma, ele tinha esse sentimento, essa certeza, de que aquele nome não poderia estar se referindo a mais ninguém.

Quanto tempo fazia desde que Victor o chamou pelo nome propriamente? Tudo que sabia era que já fazia muito tempo; tanto tempo que ele sequer conseguia se lembrar quando foi a última vez, a memória completamente perdida em um canto empoeirado de seu cérebro.

Os olhos de Yurio estavam arregalados, surpresos, e agora olhavam diretamente para Victor. Azul encontrou azul em uma colisão silenciosa; mesma cor, tons semelhantes, emoções completamente distintas. Os olhos azuis de Victor eram gentis, sua tranquilidade semelhante à superfície de um oceano pacífico logo após a passagem de uma tempestade avassaladora; já os de Yurio eram instáveis, como um lago lamacento onde um passo em falso te levaria a afundar mais e mais até que você se visse engolido pela lama.

Percebendo que havia conseguido conquistar a atenção de seu aprendiz, Victor permitiu que seus lábios se curvassem e trouxessem o menor dos sorrisos.

— Me desculpe — disse Victor, calmamente, e os olhos de Yurio cresceram ainda mais. — De alguma forma, falhei com você.

Yurio franziu a testa, mas permaneceu em silêncio — não era como se soubesse o que responder, de qualquer forma. Felizmente, Victor tinha mais a dizer, então o seu silêncio não foi visto como um problema.

— Tenho a impressão… —  ele começou, mas de repente se calou.

Pela primeira vez, Victor desviou o olhar; foi apenas por um segundo, mas bastou para que Yurio percebesse o nervosismo presente nos trejeitos de seu mentor. Victor respirou fundo e Yurio o observou recuperar sua compostura anterior. O homem ao lado dele — Katsudon, Yuuri, aquele que Yurio se fez acreditar ser a grande causa das futilidades do Victor, apesar de no fundo saber não ser verdade — limitou-se a sorrir de forma encorajadora para o namorado, para seu nêmesis.

Victor deu outra chance às suas palavras.

— Sinto que te desapontei de alguma forma. Não sei o que fiz para te deixar tão infeliz, mas tenho certeza de que tem um motivo para você ter feito o que fez. Quero entender porque tudo isso aconteceu.

"É tudo minha culpa, na verdade”, Yurio não disse.

Olhou para baixo, para as mãos, para a mesa, para a xícara esquecida entre eles.

"Eu tinha expectativas, expectativas que criei eu mesmo, e sou o único culpado por não ter visto a verdade até agora, depois de um ano inteiro ao seu lado”, ele também não disse. Não podia. Yurio não tinha coragem de admitir que estivera errado esse tempo todo. Sentia-se um idiota. Como uma criança. Sua ignorância nunca antes foi tão óbvia.

A sensação desconfortável presente em seu peito era diferente de tudo que já experimentou em vida, e estava ficando mais pesada toda vez que respirava.

Seu constrangimento o devorava por dentro, dentada a dentada, e o arrependimento que sentia vinha crescendo exponencialmente desde que se forçou a reconhecer que ninguém era culpado pela situação atual exceto ele mesmo.

Fantasias e coisas do gênero eram divertidas e inofensivas até se começar a projetá-las nas pessoas.

— Pode me dizer qual o problema? Tenho certeza de que podemos dar um jeito nisso juntos, e resolver o que quer que esteja te incomodando — Victor acrescentou, parecendo um pouco mais ansioso do que antes, talvez uma consequência do silêncio contínuo de Yurio.

Ainda sem resposta. Victor franziu a testa e desviou o rosto novamente.

— Ou, se preferir...

Uma breve pausa, transbordando de suspense e dúvida.

— Posso te mandar de volta para a Rússia — Victor disse, por fim, as palavras deixando sua boca a contragosto, como qualquer um notava na névoa esmarrida visível em seus olhos azuis, que geralmente eram tão radiantes.

Mas Victor não era o único infeliz pelas palavras que haviam acabado de ser ditas.

Ao que a sugestão começou a zumbir em seus ouvidos, seu significado finalmente se fazendo claro, os olhos de Yurio se esbugalharam. Seu lábio inferior trepidou, um espasmo decorrente do choque que sentiu, uma resposta involuntária que serviu somente para reafirmar o pouco controle que Yurio tinha sobre sua própria vida.

— Vou entender se quiser ir — Victor coçou a nuca, sua cabeça agora ligeiramente voltada para baixo. — Yakov seria um bom mentor pra você, melhor do que eu jamais pude ser, e tenho certeza de que ele concordaria em te ensinar o caminho das pedras se eu falar com ele.

Isso bastou para acabar com o voto de silêncio do Yurio, a voz retornando ao garoto tão rápida e irrefreável quanto um trovão em meio a uma tempestade impiedosa.

— Não! — Yurio exclamou, e o volume de sua voz surpreendeu inclusive ele mesmo.

Yurio balançou a cabeça e então, de repente, percebeu que havia se levantado da cadeira. Seus pés estavam plantados no chão e suas mãos se encontravam apoiadas na mesa à sua frente, ao redor da xícara de chocolate quente. Ele sequer sentiu seu corpo se mover. Yurio franziu a testa e, após balançar a cabeça uma vez mais, virou sua atenção na direção de Victor. Seu mentor, a pessoa que ele sempre admirou, havia congelado por completo, seus olhos grandes e cheios de surpresa.

— Eu... Eu não quero ir embora — Yurio admitiu quando foi novamente capaz de encontrar as palavras. Sua voz estava agora mais suave, mais tímida, além disso, havia soado mais honesta do que provavelmente jamais soou em sua vida.

Yurio permaneceu como estava por mais um tempo, completamente parado, limitando-se a trocar olhares silenciosos com Victor, os olhos de mentor e aprendiz pela primeira vez na mesma altura. Rezava para que seu olhar transmitisse tudo aquilo que ele não era capaz, as coisas sobre as quais sua boca se recusava a ser honesta a respeito, as palavras que ele mantinha escondidas dentro dele — palavras que ele queria muito trazer à luz, mas que era covarde demais para dizer.

Yurio se sentou e, sentindo-se constrangido e um tanto sem palavras, encarou as próprias mãos. Eram pequenas, mais infantis do que ele jamais se permitiu reconhecer.

— Quero ficar com você — Yurio repetiu depois do que pareceu uma eternidade, sua voz tão sutil que o mais baixo dos sussurros teria abafado suas palavras. Felizmente, a cozinha estava tão silenciosa quanto as profundezas do cosmos.

Quando o adolescente enfim se viu com coragem para levantar o rosto, sentindo-se tão curioso quanto preocupado com a quietude do cômodo, encontrou Victor sorrindo — um sorriso largo e emocional demais para ser escondido atrás de uma simples mão, mas isso não impediu o homem de tentar de qualquer maneira. Ao lado dele, Katsudon também sorria enquanto os observava, compartilhando a felicidade deles como se fosse sua própria; ele parecia orgulhoso que mentor e aprendiz tivessem conseguido resolver suas desavenças.

Yurio enrubesceu. Os dois homens estavam olhando para ele como pais olhavam para um filho, com olhos transbordando do tipo de afeto e orgulho que alguém sentiria por sua prole, e o garoto não estava sabendo lidar com isso. Ele virou a cara e torceu que seus longos cabelos fossem capazes de esconder o rosado que agora cobria todo o seu rosto.

— Bem… — Victor disse enquanto pousava os cotovelos na mesa e descansava a cabeça nas mãos, não mais se importando em esconder o largo sorriso satisfeito que agora reinava em seus lábios.

Yurio se virou novamente em direção ao homem, ao seu mentor, atraído por sua voz como uma mariposa por uma chama. Quando seus olhos azuis se encontraram de novo com os dele, Yurio permaneceu em silêncio e aguardou, pois Victor certamente tinha mais a dizer.

— Vamos discutir então qual foi o problema? — Victor inclinou a cabeça, sem interromper o contato visual por sequer uma fração de segundo.

O arrepio que correu pela espinha de Yurio foi gelado e eletrizante, os pêlos de sua nuca se arrepiando imediatamente.

— Eu... não quero — respondeu, defensivamente. Viu-se com desejo de virar o rosto, de escapar daqueles olhos que tudo viam, mas não conseguiu quebrar o contato visual.

Victor fez bico daquele jeito que sempre fazia quando as coisas não rolavam do jeito que ele queria e Yurio sentiu um suor gélido escorrer pelo rosto. Seu corpo estava tão duro e travado que não ficaria surpreso se descobrisse que seu sangue havia congelado dentro das veias e artérias.

Bem ao lado deles, mas mantendo-se afastado, Katsudon observava a interação deles em silenciosa contemplação.

— Por quê? — Victor perguntou, e agora ambas as suas sobrancelhas se encontravam erguidas. Ele tinha um olhar inocente no rosto, o que tornava difícil desagradá-lo. — Acho importante que a gente converse sobre o que precisa ser conversado. Se você vai ficar, não podemos arriscar coisas assim acontecerem de novo.

Essas palavras arderam como ferro quente, a culpa que ele havia sentido anteriormente voltando a assombrá-lo. Yurio mordeu os lábios, sentindo-se nervoso e encurralado. Se possível, gostaria de manter algumas coisas para si mesmo; infelizmente, essa não parecia ser uma das opções que lhe estavam disponíveis, pelo menos não em relação a esse assunto em específico.

Mas admitir que projetou nele dez anos de fantasias infantis, ignorando completamente a pessoa real que se encontrava bem diante do seu nariz, era humilhante demais para ele.

— Não precisa se preocupar com isso — assegurou Yurio. — Não vou fazer algo assim de novo. Nunca. — E disso ele tinha certeza.

O sermão do Victor pesava em sua mente até agora, como uma âncora impedindo que seus pensamentos fossem carregados para longe antes que o adolescente pudesse compreender o significado real por trás das palavras que foram ditas. Olhando para trás, Yurio considerou suas intenções no início — a vingança que ele estava tão determinado a fazer acontecer, uma demonstração de poder e vilania — e comparou com o que ele obteve como resultado, a realidade amarga que ele foi forçado a encarar depois que tudo havia sido dito e feito.

Ferir alguém nunca fez parte dos seus planos, mas ainda assim foi uma consequência inevitável de sua inexperiência, uma para a qual ele ingenuamente fechou os olhos. Mas pior ainda era ele ter fingido não se importar quando a verdade lhe bateu à porta.

Quando Yurio foi, enfim, obrigado a encarar a destruição que havia causado, sua reação inicial foi fingir não se importar com o caos e a dor que suas ações haviam causado aos pobres e inocentes cidadãos. Entretanto, não demorou para que essa ilusão desmoronasse. Não conseguia mentir para si mesmo, e o desconforto que se acomodou em seu peito era grande demais para ser simplesmente ignorado.

Uma terrível sensação de culpa o devorava vivo, mordida a mordida, como uma tortura lenta e dolorosa. Quanto ao seu frágil e inflado ego, pouco sobrou após o garoto se ver abatido por um indescritível sentimento de impotência, que lhe havia destruído aos poucos, gradativamente, um golpe de cada vez. A dor era insuportável, e também a razão pela qual Yurio era capaz de garantir com tanta confiança nunca mais fazer algo tão estúpido.

Esperava nunca mais ter de se sentir assim novamente.

Yurio levantou o rosto e se deparou com Victor, que o encarava com olhos tão vigilantes quanto os de um predador alfa. Estava claro como água cristalina que sua resposta anterior não havia sido capaz de satisfazer Victor, nem mesmo um pouco. Ainda assim, Victor evitou de lhe lançar a pergunta uma segunda vez, aparentemente tendo considerado imprudente exigir mais de Yurio do que ele era capaz de entregar agora, dando ao jovem a chance de cruzar a distância restante apenas quando sentisse que era o momento certo. Por isso, Yurio estava grato.

No entanto, algo ainda pesava no coração de Yurio, pulsando de tal forma que lhe impedia de simplesmente ignorar. Uma dor, um aperto, uma coceira que se recusava a deixá-lo sozinho, e a fonte desse incômodo residia em um pensamento — uma pergunta — que surgira em sua mente há pouco, quando ele ainda se encontrava na reclusão de seu quarto.

Esse tempo todo, teria ele entendido errado o que era ser um vilão?

Agora, mais do que qualquer outra coisa, Yurio queria se livrar das dúvidas e incertezas que o assombravam. Desejava compreender exatamente o que era suposto de estar fazendo daqui a alguns anos, como um real supervilão, e para isso precisava de uma fundação sólida para pavimentar o caminho rumo ao futuro que ele havia decidido para si mesmo.

O que significava ser um vilão?

O que causou todo esse problema foi sua falta de entendimento a respeito de algo que já deveria estar mais do que claro para ele, considerando que estava relacionado ao sonho que decidira seguir. Porém, foi cego pela sua ignorância e excesso de confiança, e por causa disso muitas pessoas se feriram.

Yurio engoliu em seco, descobrindo sua garganta ressecada quando empurrou a ansiedade para as partes mais íntimas de seu ser. Tinha que se livrar desse mal-entendido ou nunca estaria em paz consigo mesmo. O primeiro passo para não cometer o mesmo erro novamente era compreender o que havia feito de errado na primeira vez.

— Tenho uma pergunta. — Yurio fez uma pequena pausa, encarando as mãos e desejando que elas pudessem lhe entregar a resposta; assim, não teria que terminar o que havia começado a dizer. Então, por fim, ele acrescentou: — O que significa ser um vilão?

Os olhos de Victor cresceram em tamanho, a pergunta tendo claramente o pegado de surpresa — o que era compreensível.

— Eu disse que era um péssimo mentor! — Victor disse, mas não para o Yurio. Em vez disso, ele direcionou sua atenção ao homem ao seu lado: Yuuri, Katsudon, seu namorado e também seu nêmesis.

— Victor, por favor… — Katsudon disse, franzindo o rosto.

— Isso não é verdade! — Yurio interrompeu, arrastando o holofote de volta para si, que era onde era suposto de estar. Entretanto, quando se viu perante dois pares de olhos curiosos, as palavras não lhe vieram tão facilmente quanto antes. — Você... me ensinou bem.

— Como posso ter te ensinado bem se você nem sabe algo tão simples quanto isso?! — Victor ergueu não uma, mas ambas as sobrancelhas.

Yurio balançou a cabeça, prontamente, não perdendo tempo em garantir ao Victor que sua falta de noção de realidade não tinha nada a ver com ele. A culpa jazia inteiramente no Yurio, e no fato dele ser por demais cheio de si, além de muito orgulhoso, para levar em consideração um ponto de vista diferente do seu, e ninguém mais deveria ser responsabilizado por sua ignorância.

Eu que não te ouvi, que não te dei a merecida atenção. Fui estúpido e um péssimo aprendiz.

O silêncio que se seguiu foi desconfortável, e durou mais tempo do que qualquer um deles gostaria. Felizmente, Katsudon pegou para si a responsabilidade de colocar a conversa de novo em movimento.

— Vamos, Victor. Apenas responda à pergunta — disse o homem, e Yurio se viu grato por ele ter tomado a iniciativa de quebrar o gelo; não que ele planejasse reconhecer isso em voz alta.

Victor inclinou a cabeça e, depois de chacoalhá-la, como que tentando tirar os demais pensamentos do caminho, concentrou-se nas palavras que, juntas, seriam capazes de transmitir aquilo que ele sabia tão bem, mas que não estava certo de conseguir expressar verbalmente.

— É uma sensação… — ele começou, mas então franziu a testa e se calou, aparentemente percebendo que aquela não era a melhor forma de iniciar a explicação.

Yurio endireitou as costas e aguardou em silêncio enquanto Victor fazia uma consulta ao dicionário dentro de seu cérebro, como se esperando que o significado pudesse ser encontrado em algum lugar, anotado em um canto esquecido de sua mente.

— É fazer o que você quer, basicamente — Victor tentou uma segunda vez, mas novamente suas palavras morreram antes que pudessem chegar a algum lugar. Ele ainda não parecia ter certeza de qual era a melhor abordagem, e sua incerteza estava claramente visível nas expressões que repousavam em seu rosto.

Ao lado dele, Katsudon forçou uma tossida, atraindo a atenção de todos.

— Se eu puder tentar…

Katsudon olhou diretamente para Yurio a fim de ver se seu envolvimento não seria bem-vindo. Já que Yurio não reagiu de forma alguma, Katsudon interpretou seu silêncio como um sinal verde lhe dando permissão para se intrometer na conversa.

— Um vilão é alguém que coloca suas necessidades e desejos acima das dos demais, e que trabalha visando esse objetivo, mantendo nada além de si mesmo em mente. Não há uma só maneira de se definir um vilão, porque o mais importante é precisamente a individualidade de cada um. É sempre fazer aquilo que se quer, sem se preocupar com as opiniões e preconceitos alheios. É alcançar seus objetivos a todo custo, mesmo a custo dos outros, e ter a consciência sempre limpa. Para resumir, é uma forma de expressão, de liberdade e de ego.

A boca de Yurio caiu aberta e assim permaneceu. Honestamente, não tinha esperado que o porco desse uma resposta tão profunda e completa. Além disso, o que ele disse realmente fazia sentido, de alguma forma. Liberdade… Esse era definitivamente o pilar fundamental da vilania, e o fato de não estar com a consciência limpa com certeza tinha relação ao fato das coisas terem dado tudo errado.

— Uau! — Victor bateu palmas. — Eu não poderia ter escolhido palavras melhores! Incrível!

— Sim, se quer saber... Surpreendente ao ponto de ser um pouco suspeito. — Yurio estreitou os olhos enquanto encarava o homem de cima a baixo, inspecionando cada canto de seu ser. — Se tem mais alguma identidade secreta que gostaria de revelar, agora é a hora.

Katsudon enrubesceu e, fugindo dos olhos alheios, esfregou a parte de trás da cabeça.

— Li isso em um livro durante meu treinamento na SOAP — explicou, timidamente.

Yurio não mais conseguia se sentir surpreso perante toda a loucura exibida pela situação. O fato dos agentes serem obrigados a ler livros didáticos ao longo da orientação era algo ao qual ele não tinha muita certeza de como deveria reagir, entretanto, era algo que não tinha problemas em acreditar depois da experiência que foi a entrevista daquela vez. Por um lado, era gratificante saber que eles levavam os vilões a sério; pelo outro, era simplesmente estranho demais descobrir o nível de detalhes a que eles se atentavam.

— Meu querido Yuuri é realmente especial, conseguindo lembrar de tudo tão bem mesmo depois de tanto tempo! — Victor disse enquanto se agarrava ao outro homem, segurando o braço de Katsudon e apoiando sua cabeça na dele.

Yurio sentiu vontade de vomitar.

— Estou feliz que vocês… — Yurio começou, mas parou tão logo percebeu o que estava prestes a dizer. Engoliu as palavras antes que elas pudessem ver a luz do dia. — Na verdade, esquece. Não estou nem um pouco feliz por vocês. Podem parar de ser nojentos por um minuto? Obrigado.

Victor fez beicinho e o fitou com grandes e brilhantes olhos azuis.

— Eu estava pensando... Já que finalmente estamos tendo a conversa... okay, talvez não a conversa, mas com certeza uma conversa... por que não te dar também a resposta daquela pergunta da outra vez?

Yurio franziu o rosto, confuso, e perguntou: 

— Qual?

— Lembra quando você disse que era errado eu e Katsudon sermos próximos já que éramos nêmesis?

Yurio definitivamente se lembrava de ter dito algo do tipo, porém, não foi com essas palavras e disso ele tinha certeza.

— Tenho certeza de que fui um pouco mais rude do que isso, mas prossiga.

— Achei que tivesse decidido deixá-lo encontrar a resposta sozinho — falou Katsudon, intrometendo-se.

— Mudei de ideia — explicou Victor, o sorriso em seu rosto não deixando aberturas para contestações.

Yurio se perguntava se a razão de Victor ter voltado atrás em suas palavras era porque estava temeroso que mais acidentes pudessem acontecer num futuro não muito distante por causa das atitudes mal-pensadas do seu aprendiz. Tentou não se sentir abalado, ou pelo menos não deixar transparecer as emoções em seu rosto, mas não tinha certeza de quão bem havia conseguido fazer isso.

— E então? — Yurio perguntou, incentivando Victor a responder a pergunta que ele mesmo havia trazido à tona.

Verdade fosse dita, Yurio estava sim um tanto quanto curioso a respeito do que Victor tinha a dizer, especialmente considerando como as coisas estavam agora. Se nem mesmo a revelação de que Yuuri — o namorado — e Katsudon — o nêmesis — eram a mesma pessoa havia conseguido impactar sua resposta, ou sequer levado Victor a reconsiderar a natureza do relacionamento deles, então talvez fosse realmente algo que valesse a pena anotar em um canto da mente para futuras considerações.

— Katsudon e eu...

Victor começou, mas se interrompeu logo a seguir, as palavras morrendo dentro de sua boca assim que seu olhar repousou no homem ao seu lado. Seu namorado o observava com atenção, com olhos castanhos evidentemente pacientes e calmos; olhos que o encaravam por detrás de óculos de armações grossas, uma faísca familiar cintilando dentro da íris, algo que ele agora podia ver mais do que claramente.

Com um sorriso pendurado nos lábios e um tom rosado cobrindo a totalidade do seu rosto, indo até as orelhas, Victor decidiu começar de novo sua explicação.

Yuuri e eu...

Com um suspiro, Victor se interrompeu mais uma vez, desta vez porque havia tomado uma decisão.

Victor trouxe as mãos deles à vista, mostrando-as ainda entrelaçadas, e as pousou sobre a mesa, basicamente dizendo ao Yurio para que aceitasse logo aquilo que estava vendo com seus próprios olhos. Aparentemente, Katsudon também foi pego de surpresa pelo gesto; o porco estava corando tanto que parecia estar ardendo em febre. Yurio se perguntava se ele morreria de hipertermia.

— A razão de sermos tão próximos é justamente porque somos nêmesis — Victor explicou. Yurio não podia realmente dizer que havia entendido o que seu mentor queria dizer, mas já que ninguém lhe perguntou nada, seguiu quieto.

— A razão de conseguirmos ser tanto nêmesis quanto amigos, além de… namorados, é porque há confiança e respeito no nosso relacionamento — acrescentou Katsudon, tomando ciência do ponto de interrogação pairando sobre a cabeça do garoto.

Mais uma vez, Yurio se recusava a agradecê-lo. Além disso, seguia bastante confuso quanto ao que eles estavam tentando lhe dizer.

— Ainda não sei se entendi o que vocês querem dizer — admitiu, enfim.

— Resumindo — começou Victor, — nêmesis e inimigos são coisas diferentes. Um inimigo é apenas alguém que trabalha oposto a você, um agente qualquer que não significa lá grande coisa. Um nêmesis, por outro lado, é outra história.

Victor olhou na direção de Katsudon e pressionou brevemente sua mão. Katsudon sorriu e Victor o imitou. Yurio desejava desesperadamente que eles parassem de flertar na frente dele; a falta de noção dos dois estava saindo do controle.

— E então? O que é um nêmesis afinal? — Yurio perguntou, esperando que isso servisse para findar o contato visual dos dois e que bastasse para trazer aqueles dois tolos apaixonados de volta ao planeta Terra.

— Um nêmesis é especial. Ele vai te ouvir e compreender, ou pelo menos tentar. Vai te levar a sério, mesmo quando ninguém mais o fizer. Mas, acima de tudo, é alguém que vai estar disposto a te encontrar no meio do caminho.

— Encontrar... no meio do caminho?

— É uma questão de respeito e compromisso — explicou Katsudon, tentando outra abordagem.

— Você vai sentir uma ligação, uma conexão, e imediatamente vai se ver com a certeza de tê-lo encontrado. Você vai desejar que seja essa pessoa. É assim que você sabe que o encontrou — disse Victor.

Com um sorriso, Victor estendeu uma mão na direção de Yurio, que por sua vez observou a aproximação em meio a uma nervosa incerteza. Quando ela finalmente pousou em sua cabeça, bagunçando os fios de cabelo loiros até eles se verem em uma completa bagunça, Yurio se permitiu relaxar.

— Espero que conheça o seu logo — acrescentou Victor. — O seu próprio nêmesis.

Perante aquelas palavras, Yurio sentiu um calor invadir seu peito e fazer morada em seu coração. Seu lábio inferior tremeu, mas apenas por uma fração de segundo; que foi quanto tempo Yurio demorou para recuperar o controle de suas emoções. Por mais que se sentisse tocado, emotivo, era orgulhoso demais para se permitir transparecer, principalmente na frente dos outros — ainda mais diante daqueles dois idiotas.

Mas de uma coisa ele tinha certeza e era capaz de admitir, ao menos para si mesmo: não se arrependia de ter ido atrás de Victor, mesmo que as coisas não tivessem acontecido como imaginava.

Neste exato momento, estava muito feliz.

 

—--

 

Ao que as cortinas despencaram, anunciando o fim do drama do Yurio, Yuuri percebeu que era hora dele partir. Mentor e aprendiz ainda tinham muito o que conversar, e um pouco de privacidade seria necessária para que eles conseguissem realmente falar tudo que dizem a dizer. Já havia se envolvido demais — bem mais do que pretendia,inicialmente — e agora o melhor que podia fazer era pegar suas coisas e voltar para casa, voltar para a família amorosa que aguardava ansiosamente o seu retorno; seu telefone estava vibrando sem parar em seu bolso já fazia meia hora, e até agora não tinha conseguido responder a nenhuma das mensagens.

A preocupação deles era válida, considerando tudo o que aconteceu hoje mais cedo e a destruição que se alastrou pelo centro da cidade, e o fato de Yuuri não ter entrado em contato com nenhum deles nas últimas três horas certamente só serviu para piorar ainda mais as coisas. Não tinha dúvidas de que uma bela bronca o esperava quando chegasse em casa.

Sem perder mais tempo, caminhou em direção à dupla que conversava no meio da sala de estar.

Segurando o braço do Victor, Yuuri se pôs na ponta dos pés e se aproximou do namorado — de seu nêmesis —, dando uma bitoca em sua bochecha. Victor se virou para ele, confuso a princípio, e então sorriu tão calorosamente que Yuuri pensou por um momento que iria derreter ali mesmo. Braços rodearam suas costas quando Victor lhe deu um beijo genuíno, lábios contra lábios.

Yurio rosnou para eles, Yuuri riu no meio do beijo e Victor se afastou.

— Estou indo pra casa. Vou deixar vocês dois conversarem à vontade.

— Boa viagem — Yurio respondeu de imediato, sorrindo por entre os dentes e acenando, incentivando-o a partir.

— Yurio! — Victor repreendeu, olhando com desagrado o adolescente cabeça-dura.

O garoto jogou as mãos para o alto e se virou, dando aos adultos um pouco de privacidade para se despedirem em paz.

Eles observaram o jovem se afastar e se atirar no sofá. Logo, ele já havia concentrado sua atenção no celular, o qual tirou do bolso com uma destreza primorosa, ignorando completamente o ambiente ao redor como se tivesse acabado de entrar em um mundo só dele. Só então Victor se voltou de novo para Yuuri.

— Desculpe por isso — ele se desculpou por seu aprendiz, cuja honestidade na maioria das vezes pouco podia fazer perante sua teimosia. — Na verdade, acho que ele gosta bastante de você. Só é orgulhoso demais para admitir.

Yuuri balançou a cabeça, lenta e pacientemente, um sorriso delicado desenhado em seus lábios.

— Ele é uma criança. — E essa foi toda a explicação necessária.

— Tem mesmo que ir? — Victor perguntou, puxando Yuuri para mais perto até que não houvesse mais espaço entre eles, seus peitos colados um ao outro.

O homem fez bico, olhando para ele com grandes olhos azuis, fazendo tudo que podia para convencer o namorado a ficar mais um pouco.

— Fique pro jantar — sugeriu.

Yuuri pousou as mãos no rosto do Victor e traçou o contorno do seu queixo com a ponta dos dedos. Victor ficou bastante confuso de início, mas, mesmo assim, não se moveu, deixando que seu parceiro fizesse o que bem entendesse.

O rosto de Victor era fino e pontudo, e sua pele macia ao toque. Era quente, morno como o mar ao final de um dia de verão. Yuuri permitiu que suas mãos continuassem a explorá-lo, subindo, passando pelas bochechas rosadas do homem e deixando que seguissem cada vez mais para cima. Victor estremeceu ao que dedos acariciaram os lóbulos de suas orelhas, algo que Yuuri ficou por demais satisfeito ao perceber.

Yuuri correu a língua pelos lábios, de repente os sentindo bastante secos. Suas mãos subiram ainda mais, até que alcançassem a parte de trás da cabeça de Victor, e seus dedos então imediatamente mergulharam nos sedosos fios de cabelo prateado, agarrando e acariciando. Yuuri puxou seu rosto para mais perto e os lábios deles se chocaram, intenso e gentil, excitado e apaixonado. Ele suspirou em meio ao beijo, sentindo o peito leve.

Quando se separaram, Yuuri pousou as mãos no peito de Victor e deu um passo para trás.

— Minha mãe está preocupada. Muita coisa aconteceu hoje.

Essa não era a resposta que Victor desejava ouvir, mas ele se viu anuindo a cabeça de qualquer forma. Não havia muito mais que pudesse fazer.

— Deixa eu te acompanhar até lá embaixo, pelo menos — Victor disse e não havia razão para Yuuri recusar.

Com um sorriso, Yuuri acenou que sim com a cabeça e eles caminharam em direção à porta, mas não sem antes fazer uma breve parada junto ao sofá.

— Até mais — Yurio disse, sem desviar por um momento os olhos do celular.

O garoto parecia estar se sentindo tímido, recusando-se a olhar para eles como se não confiasse em si mesmo para manter as emoções longe do rosto. Yuuri se perguntava se isso poderia ser considerado um pequeno progresso no relacionamento deles — esperava que sim.

Indo em direção aos elevadores, Victor e Yuuri seguiram ao andar térreo. Quando pisaram fora do prédio, um suspiro profundo e audível se prendeu na garganta de Victor tão logo seus olhos se depararam com a destruição deixada para trás pelas ações inconseqüentes do Yurio.

Havia rachaduras por toda parte, tanto cobrindo o concreto duro do piso quanto correndo pelas laterais dos prédios, algumas profundas e largas o bastante para acomodar um animal de pequeno porte. Alguns postes também caíram por causa da trepidação, e havia cacos de vidro cobrindo a frente das lojas, um tapete de estilhaços cintilantes nascidos de janelas quebradas.

Victor não tinha palavras para descrever o que estava sentindo. Yuuri olhou para ele, preocupado.

— Me pergunto quanto isso vai custar — Victor murmurou para si mesmo e esfregou o rosto em lamento. — Espero ter o suficiente guardado... E também tenho que ver quantos se feriram.

Victor suspirou profundamente, cansado. Yuuri sentiu pena dele.

— Deixa que eu vejo os feridos. A SOAP não deve ter problemas em conseguir esse tipo de informação. Só preciso falar com Celestino — Yuuri disse, esperando que isso aliviasse, pelo menos um pouco, o peso que seu namorado estava sendo obrigado a carregar.

Yuuri sabia que não tinha muito o que podia fazer para ajudar, já que fazer Victor se sentir melhor seria quase impossível, e livrá-lo das responsabilidades pelo que havia acontecido seria mais improvável ainda. A culpa recairia sobre ele, e somente nele, e isso certamente impactaria a forma como as pessoas reagiam à sua presença em espaços públicos. Yuuri só rezava para que as coisas não mudassem muito. Victor amava esta cidade e seu povo, e certamente ficaria arrasado se as pessoas começassem a desprezá-lo.

Por mais que erros pudessem sempre acontecer, por acidente, nem todos eram capazes de perdoar tão facilmente.

— Obrigado — Victor respondeu e apanhou a mão de Yuuri, entrelaçando seus dedos aos dele, em busca por uma fonte de conforto. — Espero que ninguém tenha ficado gravemente ferido.

— Também. Yurio é tão jovem... Não deveria ter que carregar um peso desses na consciência.

— Não devia, mas se algo de fato aconteceu, então ele vai — Victor disse e a seriedade em sua voz pegou Yuuri de surpresa. — Ele tem que ver o que fez. Ações trazem consequências e ele não pode simplesmente ignorá-las.

Yuuri foi forçado a concordar.

Por mais que Yurio não tivesse a intenção de causar toda essa destruição, era, ainda assim, por causa de suas ações impensadas que a cidade se via agora completamente devastada. Entretanto, uma parte dele sabia que Victor não estava falando de seu aprendiz; não somente dele, pelo menos. Victor ainda se via como o maior culpado pela catástrofe que se abateu sobre a cidade, e não conseguia se perdoar por ter sido tão descuidado e desatento para com Yurio.

Yuuri desejava que Victor não fosse tão duro consigo mesmo, mas, ao mesmo tempo, sua atitude era um sinal claro, um reflexo, de sua maturidade e senso de responsabilidade. Yurio estava sob sua tutela, logo Victor, como seu mentor, posicionava-se ao lado do adolescente independentemente das circunstâncias — nos bons momentos e também nos ruins. E isso só fez com que Yuuri admirasse seu nêmesis ainda mais.

Ainda assim, a ideia de se despedirem sabendo que não tinha ajudado em nada não lhe agradava. Desejava pelo menos desviar sua atenção um pouco, distraí-lo da destruição ao redor deles.

Segurando seu braço, Yuuri atraiu a atenção de Victor de volta para si mesmo.

— Podemos conversar?

— Claro — Victor respondeu, prontamente. — O que foi?

— Só queria ter certeza de que estamos bem. — A confusão com a qual se deparou foi o que levou Yuuri a explicar mais a fundo suas palavras. — O lance do Katsudon-Yuuri.

Ah — os olhos de Victor se arregalaram conforme as peças começaram a se encaixar, a situação começando a fazer mais sentido. Aparentemente, não tinha imaginado que fossem voltar a esse assunto tão cedo. — Sim, estamos bem. Totalmente bem. Cem por cento bem.

Victor sorriu, levantando os dois polegares para cima, e Yuuri se viu retribuindo o sorriso. Entretanto, o clima seguiu um tanto pesado. Yuuri levou uma mão ao peito e, após se mostrar pensativo por alguns instantes, suspirou de forma resoluta.

— É só que… — Yuuri começou, e Victor pareceu surpreso que ainda houvesse algo o incomodando a respeito desse assunto. — Se não for problema pra você... Eu queria que as coisas continuassem como antes.

— Sim, eu também gostaria disso. Não quero terminar. Eu te amo demais para isso — Victor respondeu de imediato.

— Esse… Esse é exatamente o ponto. Não estou te pedindo para as coisas continuarem iguais como Yuuri, mas sim como Katsudon, como seu nêmesis.

A boca de Victor se abriu e assim permaneceu. Yuuri olhou para baixo por um momento, e a interrupção do contato visual que vinham mantendo há algum tempo foi o que o fez perceber o quão nervoso ele estava realmente se sentindo. Suas palmas estavam suadas, demais para seu gosto.

Yuuri não achava que estava pedindo nada de tão estranho ou impossível, tudo que queria era manter as vidas pessoais e profissionais separadas, só isso. Estava plenamente ciente de que as coisas não seriam mais as mesmas — nem mesmo um milagre faria isso ser possível — mas desejava que ainda pudessem manter ambas as faces de suas interações vivas.

Yuuri gostava — amava — de ser o namorado do Victor, mas ser seu nêmesis também significava muito para ele.

Mudança era inevitável, mas se pudessem continuar sendo ao menos uma sombra do que foram no passado, como vilão e agente, como arqui-inimigos, então Yuuri seria capaz de se sentir confiante, seguro, de que nada havia sido perdido por causa da revelação.

Felizmente, Victor pareceu enxergar e entender as entrelinhas do pedido de Yuuri.

— Parece justo. Não posso perder meu nêmesis depois de esperar tanto tempo para conhecê-lo.

Victor chocou seu ombro contra o de Yuuri; amigável, provocativo, familiar. O suspiro que escapou dos lábios de Yuuri estava recheado de alívio e paz. Seus nervos haviam sido pacificados. O peso em seu estômago sumiu, as borboletas finalmente deixando a prisão de seu corpo e voando para longe. Estava feliz deles terem conseguido firmar este acordo.

— Oh, mais uma coisa... Não querendo usar isso de desculpa para te manter aqui mais tempo, mas fazendo exatamente isso…. Tem algo que eu queria te perguntar — Victor disse, as palavras saindo tão rapidamente de sua boca que Yuuri não sabia dizer como elas não haviam atropelado umas as outras.

— O quê?

— Acha que eu daria um bom modelo? — Victor perguntou, inclinando de leve a cabeça e perguntando em tom inocente, como se ele não fosse o homem mais bonito do universo.

Entrando em mais detalhes, Victor contou sobre sua pequena aventura do outro dia, quando invadiu a sede da SOAP. Falou sobre Josh, o homem que conheceu na recepção do prédio, sobre o tour pelo “Ringue de Gelo”, e da breve sessão de fotos que foi convidado a participar logo em seguida. Foi divertido, Victor lhe disse, e Yuuri conseguia ver a veracidade de sua fala no brilho dos seus olhos.

— Estava pensando em aceitar a oferta que me fizeram. Sabe, como uma espécie de trabalho de meio período. Se tudo bem por você.

— Amor, não tenho o direito de te impedir — Yuuri disse, erguendo uma sobrancelha e esperando que Victor ligasse os pontos sozinho.

Como Yuuri poderia sequer cogitar contrariar Victor em seu desejo de seguir a carreira de modelo, quando ser agente era seu trabalho secundário? Seria hipócrita de sua parte tentar impedi-lo, e Victor tinha todo o direito do mundo de fazer o que quisessem com seu tempo livre.

— Além disso, eu não me importaria de ver seu rosto impresso em tudo que é canto, decorando cada um dos outdoors da cidade — Yuuri acrescentou, com um sorriso astuto.

Victor sorriu, feliz e ansioso por dar sequência em seu plano, mal podendo esperar para ligar para Josh. Ele brilhava como o Sol, e parecia feliz como uma criança no primeiro dia de férias.

Então, ele coçou a nuca, de repente um pouco cabisbaixo.

— Só espero que eles não tenham mudado de ideia depois do que aconteceu hoje.

Ambos olharam ao redor, observando as marcas deixadas para trás pelo caos que reinou na cidade mais cedo, e o silêncio que tomou conta do ambiente era pesado. É... Talvez essa fosse uma fonte de dificuldade, no momento. Porém, ainda assim, Yuuri sabia que as coisas dariam certo no final. Não tinha dúvidas.

— Não se preocupe. Tenho certeza de que, assim como eu, eles vão perceber a pessoa incrível que você é. 

Depois de um último beijo, eles seguiram cada qual seu caminho.

 

—--

 

Yuuri já estava caminhando há mais ou menos dez minutos quando uma silhueta familiar chamou sua atenção. Ela se encontrava sentada em um dos muitos bancos de um parque, que lhe era tão familiar quanto o próprio jovem. 

As expressões do jovem eram calmas e sérias, e ele tinha os olhos voltados para a vastidão do céu, que já começava a ser pincelado por tons mais escuros de azul. Ele parecia despreocupado, relaxado, mas Yuuri sabia que era apenas uma fachada. A verdade é que ele estava observando, aguardando, sua ansiedade facilmente percebida pelos olhos bem treinados de Yuuri.

Yuuri sequer pensou duas vezes antes de seguir em direção ao parque.

— Oi — disse quando chegou perto o bastante para que sua presença fosse reconhecida. — Deu tudo certo com aquela senhora? — Yuuri acrescentou, caso o jovem não conseguisse se lembrar do último encontro dos dois, mas não parecia ser o caso

— Dois homens vieram e a levaram embora. Disseram que iam levá-la para um lugar seguro — respondeu o jovem, sua voz profunda e sutil.

— Dois homens? Como eles eram? 

— Estavam vestidos em ternos pretos e ambos eram muito barulhentos, mas de formas diferentes.

"Provavelmente o J.J. e o Emil…", Yuuri pensou consigo mesmo, e teve que se conter para não rir daquela descrição inesperada, mas precisa.

Apesar de ter dito aos seus calouros para ajudarem na cidade após encontrá-los na Torre de São Petersburgo, a verdade é que não tinha tanta certeza de que iriam seguir suas ordens. Era bom saber que, de fato, fizeram o que lhes foi pedido. Por mais que fossem boas pessoas, assim como ótimos agentes, ainda eram jovens; além de que, os dois podiam ser bem imprevisíveis às vezes.

— E por que não foi com eles? — Yuuri perguntou, tentando voltar aos trilhos. Se permitisse que seus pensamentos vagassem livremente, seus pés não se veriam de volta ao chão tão cedo e a atmosfera no parque certamente ficaria estranha depois de um tempo por causa de um silêncio que Yuuri seria incapaz de evitar.

O jovem não respondeu de imediato, e sua aparente relutância logo se revelou ser, na verdade, ignorância. Por alguns instantes, ele se limitou a considerar as razões de sua permanência no local, aparentemente somente agora se questionando do motivo de ter feito isso. Ele precisou de quase um minuto inteiro para encomtrar as palavras certas, e só então se viu preparado para pôr fim àquele mistério para o qual, até um minuto atrás, nem mesmo ele sabia a resposta.

— Fiquei pensando se não poderia ajudar um pouco mais. Talvez houvesse mais pessoas perdidas, precisando de ajuda — disse, honestidade evidente nas expressões de seu rosto.

O queixo de Yuuri caiu. Quando percebeu, já estava sorrindo.

Teria sido algo do tipo que Celestino sentiu quando o conheceu três anos atrás?

Agora entendia porque seu superior foi incapaz de se conter. Assim como Celestino naquele dia, não havia chances de Yuuri deixar aquele garoto escapar por entre seus dedos. Ele era como uma estrela solitária, opaca mas reconfortante, dona de esplendor peculiar.

Yuuri se sentou ao lado do jovem, sem sequer se dar ao trabalho de perguntar antes se havia problema. Quando se acomodou no banco, o garoto pareceu surpreso, mas nem tanto; mais do que qualquer outra coisa, ele parecia estar curioso sobre o que Yuuri poderia querer com ele.

Sem desperdiçar mais um segundo sequer, Yuuri se virou na direção do garoto, palavras já na ponta da boca.

— Pode me dizer seu nome?

Yuuri tinha certeza de que sua voz havia soado mais animada do que seria considerado adequado, e que certamente o jovem estava agora suspeitando de suas intenções por causa disso. Porém, não havia nada que Yuuri pudesse fazer a respeito de sua empolgação, ou das expressões radiantes que tomaram conta de seu rosto. Não conseguia evitar, não neste momento. Não quando uma joia preciosa se encontrava bem diante de seus olhos, só esperando para ser apanhada e polida.

Felizmente, o garoto não deu muita importância ao seu comportamento bizarro, não vendo problema também em lhe dar uma resposta.

— Meu nome é Otabek Altin.


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Notas finais do capítulo

Olá a todos!
Enfim chegamos ao último capítulo e ao tão esperado reveal! Agora só falta um epílogo curtinho para chegarmos ao fim desta jornada, que vou ver se consigo postar amanhã, se não ao longo da semana! ^^
Decidi postar o capítulo um dia antes porque queria desejar a todos um Feliz Ano Novo! Que 2022 seja um ano maravilhoso, mágico e repleto de novidades (notícias de Ice Adolescence cof cof).
Deste capítulo, o grande ensinamento que tive foi: crianças, não escrevam capítulos de 70 páginas! Eu definitivamente não recomendo rs Por causa do tamanho, não tive como revisar a fundo então, se acharem algum erro, sintam-se livres para avisar (ficaria inclusive bastante agradecida).
É isso~ Comentem se puderem, me deixaria bastante feliz!
Que todos tenham um ótimo começo de ano!
Até breve!



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