Corte de sol e estrelas escrita por mandy


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Oiê. Completamente fora da minha zona de conforto, escrevi (depois de uma maratona incessante de ACOTAR) uma fic do meu mais novo casal conforto: Emerie e Morrigan. Espreo que gostem!



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As fêmeas illyrianas nunca iam a festas. Precavidas, mesmo as que viviam ao redor do Acampamento e se aventuravam no treinamento antiquado que só permitia a presença delas depois de uma quantidade excessiva de tarefas domésticas, preferiam não se aventurar nos perigos da presença de machos bêbados com moral inquestionável apenas em campo de batalha. Havia aquelas que não tinham escolhas. Sem um provedor de sustento, com o ideal de liberdade castrado por um povo primitivo, aventuravam-se, não por prazer, mas por obrigação; recebiam um lucro parco em prol da sobrevivência. Mas a maioria delas não iam a festas em Illyria.

Emerie não ia a festas em Illyria.

Mas estava em Velaris naquela noite. Os sons pareciam penetrar em sua pele e alcançarem os músculos, dançando dentro deles. A luz das estrelas parecia invadir a taberna de poucas janelas, habitando entre os copos de bebida, os corpos em movimento, as vozes elétricas. O próprio corpo habituava-se ao lugar, aos poucos lhe dando a sensação de pertencer àquelas paredes e a mesa parecia uma antiga relíquia de família, daquelas que se tem apreço. Família, naquele momento, não era um conceito que incluía o pai morto, o homem que Emerie se orgulhava de não sentir saudades. Incluía a mãe e o ideal protetor que o progenitor havia apagado cedo demais de sua vida. E suas amigas.

Valquírias.

Gwyn estava sentada à sua direita, no centro da mesa arredondada. Tinha os olhos vidrados nos movimentos dos demais, que dançavam e conversavam ao redor. Os ombros dela, outrora encolhidos, tinham um leve balançar que acompanhava a música. Nestha, na outra ponta, estava sentada no colo de Cassian. Mantinha a habitual neutralidade na face, aquela máscara de carne e osso que mantinha recluso o seu enorme coração, esta mesma que as duas outras tinham aprendido a decifrar. Emerie podia jurar que os pensamentos dela estavam entregues à música naquela hora.

Como uma confirmação do que havia imaginado, os olhos de Nes encontraram os seus. Num momento estava de pé, um sorriso pintado nos lábios, aquele que somente oferecia à família - a elas! - e ao parceiro. Ergueu a mão num convite.

— Ah, não… — Emmie negou com a cabeça, sentindo-se por um momento fora de órbita.  Havia bebido mais do que o planejado — Eu não danço.

Afinal, não ia a festas.

— Você dança na arena de treinamento — Nestha tinha o argumento na ponta da língua.

— Está sugerindo que saque uma espada no meio do salão?

— Não aceito menos que uma estrela de oito pontas — e o sorriso da amiga aumentou em meio ao som espirituoso de suas palavras — Vamos. Eu guio você. Guio vocês duas — e olhou para Gwyn que, logo, se encolheu na cadeira.

Gwyn começava a experimentar o mundo só agora, depois do que lhe acontecera em Sangravah. Primeiro, o treino fora da biblioteca, no terraço da Casa da Cidade. Depois, à noite, junto das duas amigas na mesma casa, mas tudo isso ainda era um ambiente seguro para a Sacerdotisa. O maior passo fora o Acampamento Illyriano, no Rito de Sangue. Mas a escolha daquele passo fora arrancada dela, como tantas outras coisas. Não a taberna. Gwyn tomava as próprias decisões agora e, mesmo uma como aquela, uma dança, coisa tão pequena, era uma decisão dela. As amigas sabiam. Entendiam.

Dançar no meio de desconhecidos, ter mínimo contato corporal com estranhos, mesmo que acidentalmente….

Emerie e Nestha entendiam.

Cassian também entendia.

Tentou sorrir de forma descontraída, sacudindo uma das mãos na direção da pista de dança:

— Vão vocês. Eu fico aqui — fazendo companhia para Gwyn, eram as palavras não ditas e Nestha quase o beijou por isso.

Mas voltou a mão insistente à Emerie.

O que pensariam aqueles feéricos que viviam seus dias em liberdade para trabalharem com o que queriam, rir e andar pelas ruas e… dançar? O que diriam ao ver Emerie em seus passos torpes, em sua existência miserável?

Mas os olhos de Nestha…

Já tinha visto a amiga dançar. Nestha era a música, era o chão em que pisava, as paredes que vibravam. O brilho das próprias estrelas. Cassian estava ali. Ela poderia dançar com o parceiro, mas estava chamando à ela, os olhos vibrando cores…

Suspirou uma vez então, levantando-se enfim. Terminou a cerveja em seu copo, sentindo-se um pouco fora do eixo. Nestha não bebia mais e Gwyn era contida. Cassian era o único que a acompanhava, mas Emmie tinha a impressão de que ele não havia bebido metade do que estava acostumado, seja em consideração à Nestha ou qualquer outro motivo.

Estava devaneando.

Acompanhou a grã-feérica para o centro da taberna, a música animada tomando seus corpos. Imitou quando Nestha juntou a saia do vestido com uma das mãos, amontoando a sua própria com a esquerda e deixando que a amiga tomasse a mão direita, guiando-a.

Nes provavelmente se continha. Guiava os primeiros passos de uma forma mais lenta, certificando-se que Emerie houvesse entendido minimamente e então, entrava em sintonia com a música. Ela brilhava, mesmo que Emmie soubesse que não estava dando trinta por cento de si. Os olhares logo recaíram sobre elas e a illyriana ficou contente por dois motivos: porque a música era a casa de Nestha; e porque tamanha beleza e habilidade ofuscavam a ela própria, como se Nestha dançasse sozinha no salão.

Longe da melancolia que a ideia sugeria, Emerie deixou-se levar. Deixou-se guiar pela irmã da Grã-Senhora de Velaris, dançando como se sempre o houvesse feito, sentindo passar por entre os dedos, braços, corpo inteiro, aquele poder que nada tinha a ver com magia. Poderia deixar-se guiar pela amiga por horas, sem se importar.

Dançaram duas, três músicas seguidas, até que Cassian se aproximasse. Os olhos rapidamente correram para a mesa em que antes estava sentada; para Gwyn.

Junto delas estava o Encantador de Sombras. Tentou observar, dali, as expressões da Sacerdotisa. Ao lado de Azriel sempre estavam mais suaves… Questionou-se se deveria se aproximar. Se não estava atrapalhando alguma coisa. Se aquelas ideias torpes não eram em consequência das bebidas. Mas ficou onde estava.

Por um momento, apenas parada. Nestha dançava com Cassian e, novamente, todas as atenções estavam nela, no casal esteticamente bonito que eles formavam, que queimava por baixo das estrelas.

E então, viu que o corpo se movimentava sozinho. Primeiro os quadris que balançavam em ondas, de um lado para o outro. Emerie precisou fechar os olhos para prosseguir, deixando que a música, como se brotasse do chão, subisse por suas pernas e coxas, que continuasse a mover seus quadris e lhe propiciasse um frio na barriga. Incomum, mas bom. Os braços da illyriana logo acompanhavam o ritmo leve do som, se movendo nas laterais do corpo até que estivessem erguidos acima da cabeça. Os pés guiaram-na para um giro lento, diferente daqueles que Nestha instruía, sem toda a classe da grã-feérica. Girou uma, duas vezes, sentindo que mais do que a música, o álcool também fazia efeito em seu corpo.

Quando parou estava um pouco tonta. Precisou respirar fundo antes de abrir os olhos.

Somente para perder todo o ar diante do que se revelava a sua frente.

Delineando todo o corpo perfeito, o vestido vermelho de Morrigan ia até os calcanhares, revelando a coxa sinuosa através de uma abertura arranjada no tecido. Somente as linhas prateadas que costuravam aquele vestido deveriam valer mais do que todas as roupas que Emerie tinha no armário, e era o suficiente para colocar a illyriana em seu lugar.

Audaciosa, no entanto, ela ergueu os olhos. E o chão desapareceu debaixo de seus pés.

Mor, a prima do Grão-Senhor, era a criatura mais linda que já vira na face da terra, como se desenhada pela própria Mãe. Os cabelos dourados tinham um dos lados trançados no couro da cabeça, as tranças adornadas por fios pratas até que, por trás da orelha pontuda, caíssem em ondas perfeitas, mechas que iam até os seios. Os olhos combinavam com aquele brilho de sol matinal.

O sol em meio à noite estrelada.

Os lábios da grã-feérica, pintados com um vermelho vivo, elevou-se num dos lados. Emerie poderia estar embriagada, mas não era alucinação. Os olhos cor de sol recaíam sobre si.

Como se para confirmar a ela, à illyriana pobre de vestido surrado, que os cabelos negros de uma única trança que, apesar de penteados cuidadosamente, não chegavam aos pés da graça da outra, Mor agarrou as barras do vestido alinhado e se curvou para frente. Reverenciando.

Um convite para a dança.

Emerie sentiu o coração disparar. Não seria hipócrita e atribuiria o rubor de seu rosto ao álcool, a beleza de Mor realmente a deixava em transe.

Não ousou olhar para os lados, esperar qualquer aprovação. Não queria olhar para o rosto de Gwyn e Azriel, e aquele envolvimento que se desenrolava de forma tão natural que, diante do turbilhão de pensamentos que se formavam em sua cabeça, a fariam recuar; ou para os rostos de Nestha e Cassian, para ser lembrada do antigo caso com illyriano e a grã-feérica no passado. Nes não havia lhe contado muito, mas sabia de uma coisa e outra. Só que agora Nestha estava com Cassian; e Azriel, que por um tempo pareceu a Emerie fascinado pela mulher a sua frente, estava confortável com Gwyn. Não quis pensar naquele passado que não havia presenciado.

Apenas segurou as barras do próprio vestido e retribuiu a reverência de forma mais profunda, como se reverenciasse a sua própria Grã-Senhora. E, ao som da harpa suave, ambas se aproximaram, os dedos se juntando no momento em que o arranhar do cello reverberou em na parede, em seus corpos…

Tocar a mão de Morrigan era como tocar o próprio sol. Aquecia, confortava. Queimava. Lembrou-se de uma lenda antiga do povo para além da - agora inexistente - muralha, do filho de um homem que, diante da liberdade nunca antes experimentada, voou demais para perto do sol, queimou-se e caiu. Emerie não hesitaria em destruir-se por ela. Por Morrigan.

E destruir-se pareceu um ato infinitamente pequeno quando a illyriana encontrou os olhos da grã-feérica. Sentiu-se sugada para eles, para aquele mar de águas douradas, completamente drenada de suas forças. Precisou se concentrar para simplesmente executar a ação de dançar.

Mor guiou seus passos pelo chão da taberna com maestria. Não era melhor que Nestha, mas era intimamente mas emocionante. Não queria que Mor tirasse os olhos dela, mesmo quando isso significasse à Emerie maior concentração no balanço dos corpos. Não queria se concentrar em mais nada que não ela.

Dançar com ela era equivalente a um voo, aquele movimento íntimo e doloroso do bater de asas contra o vento que Emerie achou que nunca mais em sua vida poderia sentir, e lá estava… como se Morrigan a houvesse concertado. Não tinha noção do quanto os olhos brilhavam diante dos dela, como se aquela dança significasse liberdade, resiliência, força. Tudo porque Mor sorria para ela e a carregava em passos lentos.

E dançaram uma outra vez como se não existisse mais ninguém ao redor. Era Emerie, Morrigan e a música. E, mais adiante, aquele desejo latente no peito da Valquíria, que parecia pulsar também no peito da outra e novamente Emmie tinha a certeza de que não tinha a ver com o álcool. A respiração de Mor em seu rosto era cálida, tão convidativa que Emerie fez questão de conter a sua própria para sentir a alheia.

E o cheiro…

Emerie não entendia ao certo, mas sentia latente o meio entre as pernas. Da mesma forma que sentia quando lia aqueles romances compartilhados com Nestha e Gwyn.

Mas então a segunda música acabou, e veio a terceira.

E a quarta.

Ela não se importou com as pernas que doíam. Como num treinamento de luta, era uma dor que queria para si. Mas o relógio já marcava às tantas da madrugada, e a taberna parecia mais vazia agora. E Emerie tinha mais ciência dos olhares sobre elas, mesmo quando tentava desviar os pensamentos.

Os olhos de Mor, no entanto, pareciam desfocados. Até que, pela primeira vez na noite, a mulher os desviou.

Como um punhal que atravessa seu peito e drena o seu sangue, Emerie se sentiu vazia. Era treinada como guerreira, pronta para qualquer desafio em campo então, com ímpeto engenhoso, ousou meter uma de suas pernas para o meio das de Morrigan, expondo a coxa que o rasgo de seu vestido vermelho deixava a mostra.

— Olhe para mim — Emmie não reconhecia o som baixo da própria voz.

Sentiu o tremor da pele alheia e voltou a prender a respiração.

Mas Mor não olhou. Acomodou o corpo junto ao de Emerie e a illyriana sentiu seus lábios se arrastarem em sua pele. Mesmo sobre as vestes, o corpo de Emerie estremeceu igualmente e ela quis morar naquele toque. Quis estendê-lo para a eternidade, envolvê-la em seus braços e abraçar mesmo aquela parte hesitante dela, iluminá-la mesmo que a própria luz não passasse de uma faísca.

— Não posso… — e a voz baixa de Morrigan ressoou em sua pele.

Algo em Emmie se rompeu.

Burra.

Burra, burra…

Claro que não podia. Porque Emerie e Morrigan eram de mundos diferentes. Mor, a Rainha da Cidade Escavada - aqueles porcos tinham mesmo que se curvar aos pés dela - e Emmie, uma guerreira pobre, com asas e alma dilaceradas. Duas mulheres de mundos diferentes.

Mulheres…

Como se lendo seus pensamentos, Mor finalmente ergueu os olhos, reverberando aquele pensamento em sua íris, em seu grito mudo. Emerie pode observar as sombras de um passado conturbado enegrecendo o sol nos olhos dela.

Duas mulheres.

Se ela, somente uma, teve as asas podadas, amarradas e propositalmente negligenciadas… Se ela, e somente ela, tinha de ouvir a família humilhá-la pela simples ação de tornar-se autossuficiente, independente…

Podia entender.

Mas isso não significava que doía menos.

Morrigan se afastou, o calor de seu corpo sendo substituído por um frio cortante. Os olhos novamente estavam distantes, atentos à movimentação. Cassian, Nestha, Azriel, Gwyn… Todos estavam ali. Viu sua garganta oscilar.

E então, com um movimento que pareceu mais lento do que realmente era, Mor voltou a reverenciar. Seus olhos se fixaram nos dela por um último momento, um último segundo que Emerie se agarrou como quem se agarra à própria vida.

Mas acabou.

Recomposta, sorriu de canto, o sol voltando a queimar em seus olhos. Aquela última faísca. E foi embora. Sozinha no meio da taberna, enquanto a grã-feérica se afastava, Emmie tomou uma lufada de ar e engoliu o vazio.


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Notas finais do capítulo

E então? O que acharam?



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