A Maldição da Coisa escrita por PequenaNerd


Capítulo 4
Capítulo 4 - Ben




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Já fazia pouco mais de três meses que eu trabalhava na biblioteca. O salário era razoável, o suficiente para eu pagar minhas contas e poder me dar ao luxo de pedir lanches em aplicativos de vez em quando. Todo dia tinha muito trabalho a ser feito: organizar os livros no sistema digital e nas prateleiras, manter as traças distantes das folhas de papel, tirar a poeira que insistia em se acumular em cima das mesas, fazer o impossível para que os antigos computadores funcionassem da melhor maneira... E eu adorava, pois todo esse trabalho, na maior parte do tempo sem precisar lidar com pessoas, fazia com que eu me esquecesse dos pesadelos constantes que estava tendo.

            Já era rotina eu acordar assustada. Todas as noites eu tinha pesadelos, por vezes com meu pai pedindo socorro, outras com minha mãe me julgando por ter abandonado seu marido, e, ainda, havia as vezes que sonhava com o circo. Era um pesadelo típico de filme de terror, com uma música macabra ao fundo, pessoas distraídas, brinquedos velhos e enferrujados tomando conta de todo o local e a conhecida tenda branca e vermelha no centro de tudo. Sempre que a tenda aparecia em meus sonhos, o terror noturno começava. Na maioria dos pesadelos eu ainda era criança, e chorava muito enquanto alguma força me puxava para dentro da tenda onde ocorria algum espetáculo. Assim que eu sentava na arquibancada, no meio de uma diversidade de pessoas, um medo descomunal tomava conta de mim e eu acordava. Nunca cheguei à parte do sonho em que eu via o que me assustava, mas tinha relação com algo que estava no centro do picadeiro.

            Pensava em procurar uma terapia para discutir isso, afinal, a perda de meu pai tinha sido um grande trauma para mim e seria bom conversar com alguém para descobrir a relação entre os pesadelos e meus medos reais. Mas eu tinha muito medo de as pessoas me verem como uma mulher ainda mais problemática e isso afetar a única coisa que estava me fazendo feliz naquele momento: meu emprego.

            Enquanto devaneava sobre essas preocupações em um dia relativamente tranquilo na biblioteca, fui interrompida por uma voz infantil.

            - Moça, oi. – Uma criança me acenava. – Gostaria de levar esses livros. – Apontou para uma pilha formada por três livros grossos. Li o título do que estava em cima: Assim Falou Zaratustra. Arregalei meus olhos e os voltei ao menino a minha frente. Desde quando as crianças de dez anos se interessavam por livros de filosofia?

            - A retirada de livros é feita ali.- Indiquei onde a Sra. Anna ficava e reparei que ela não estava. Deveria estar resolvendo algum problema. Então, encaminhei o menino para o computador para que eu pudesse dar baixa nos livros. – Você realmente gosta desses assuntos? – Perguntei enquanto anotava o número do primeiro livro no sistema.

            - Sim! Minha mãe é professora, então aprendi a ler com os livros que já tinham em casa. – A naturalidade dele me impressionava.

            - Certo... Isso é estranho. Mas não vou negar que acho interessante um menino da sua idade se importando com leitura. Por mais que sejam desses livros. – Ele riu.

            - Eu gosto muito de filosofia, arquitetura, história... Minha próxima meta é ler todos os livros relacionados a Derry!

            - Depois me fale se gostou. Acho que seria bom se eu também conhecesse um pouco mais sobre essa cidade esquisita. – Terminei de dar baixa nos livros e os empurrei na direção do menino. – Pronto, aqui estão. Faça boa leitura. Aliás, qual o seu nome?

            - Ben Hanscom. – Ele voltou os olhos para o meu crachá. – Até semana que vem, Srta. Nancy.

***

            Durante meu trabalho, muitos rostos foram se tornando conhecidos para mim. O Sr. José, por exemplo. As terças e quintas ele aparecia na biblioteca para ler suas revistas preferidas relacionadas a hipismo e cavalos no geral. A Beth, apelido de Elizabeth, era uma adolescente viciada em jogos, então, todos os sábados, dia em que seu pai usava o computador para trabalho, ela comparecia à biblioteca para jogar. E também tinha Ben Hanscom, o menino estranho que adorava livros enormes e entediantes.

            - Ei, Ben! – O chamei, tirando seu foco das páginas mofadas de um livro sobre construções na Idade Média. – Você não está de férias?

            - Estou sim, Srta. Nancy.

            - Então o que você está fazendo aqui? Olha que dia lindo está lá fora. – Apontei para a janela que enquadrava um céu completamente azul iluminado pela claridade do sol do meio-dia. – Chame seus amigos e vai brincar um pouco.

            - Eu... Prefiro ficar aqui. – O menino sorriu sem graça e abaixou novamente os olhos para a folha de papel.

            - Você tem muitos amigos? – O interrompi novamente, dessa vez sentando-me à mesa logo a sua frente. O vi levantar os olhos e percebi uma expressão levemente entristecida. Tentei contornar a situação. – Sabe, eu vou te contar uma coisa: eu não tenho amigos. Me mudei para a cidade há menos de dois anos e só me ferrei desde então. – Ele riu e logo ficou sério de novo, achando que ficaria brava. – Mas agora que eu estou trabalhando aqui e te vendo todos os dias sentado nessa cadeira... Você não se dá bem com o pessoal daqui também?

            - Não muito. – Ben respondeu depois de ponderar se confiaria em mim para uma conversa. – Eu não gosto das brincadeiras que os meninos fazem comigo, então prefiro ficar na minha.

            - Entendo, essa cidade é difícil mesmo. Eu até já saí na mão com gente daqui. – Falei em tom confidencial.

            - Sério? – O menino elevou a voz, logo percebendo o e abaixando o tom novamente. – Com quem?

            - Greg. Conhece? – Ele assentiu. – Eu o vejo de vez em quando por aqui. Acho que vocês também não são muito próximos, não é?

            - Sim. Ele me ameaça constantemente. Me xinga muito. – O olhar de Ben era de um garotinho amedrontado.

            - Fica tranquilo. Enquanto eu estiver trabalhando aqui, esse menino não vai te encher o saco tão fácil. – Pisquei e recebi um sorriso alegre em troca. Parece que eu tinha feito meu primeiro amigo nessa cidade.


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