Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 5
Capítulo V




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Eles passam a trocar mensagens de Whatsapp o tempo todo – depois de acordar e antes de dormir, enquanto comem, vão ao supermercado, pagam as contas e trabalham. A qualquer hora do dia, Marcos pergunta o que ela está fazendo e, às vezes, Ana responde-lhe com fotos: da máquina de lavar cheia de roupas, das pernas estendidas e cruzadas ao longo do sofá e o gato sobre elas, de um livro aberto, de legumes picados em uma tábua sobre a pia da cozinha, de uma xícara de café pela metade, de uma arara de roupas em uma loja, da fila de pessoas entre ela e um caixa eletrônico, da vista de uma janela do ônibus, de um programa de edição de imagens aberto na tela do computador do trabalho. Quando é Marcos quem responde, ele pensa que, o que quer que esteja fazendo, nunca é tão interessante quanto aqueles pedaços do dia dela.

Apesar disso, estar junto virtualmente não é o mesmo que estar junto em carne e osso, e Marcos continua ansiando por vê-la. A oportunidade acaba surgindo na semana seguinte, quando, no meio do expediente, Schäfer espia para fora de sua sala com uma pasta de papéis na mão. Marcos procura não fazer contato visual com o superior. Já tem trabalho suficiente para o resto da semana e não precisa de nenhuma incumbência extra. Contudo, muda rapidamente de ideia ao descobrir do que se trata.

— Preciso que alguém leve esse relatório ao coordenador de comunicação. – Schäfer está dizendo. – É um saco, mas o cara pediu uma cópia impressa.

O superior já está olhando para o jovem aprendiz a quem costuma infernizar com qualquer pedido, inclusive de café, e o garoto começa a afastar a cadeira giratória da mesa onde está trabalhando, uma expressão de enfado no rosto, quando Marcos se adianta e se oferece para a demanda. Antes que alguém possa dizer qualquer coisa, ele levanta-se, apanha o relatório da mão de Schäfer – que o cumprimenta com um “bom garoto” – e apressa-se em deixar o setor.

Enquanto atravessa o corredor em direção aos elevadores, o crachá de funcionário balançando pendurado ao pescoço, Marcos se pergunta o que deve dizer à Ana ao encontrá-la. “Oi, me pediram pra vir entregar esses papéis” ou “Tudo bem contigo? Só vim entregar esse relatório” ou “Tu pode passar esse relatório pro teu superior? Parece que o Schäfer anda com preguiça até de caminhar e acabou sobrando pra mim”. Então se dá conta de que pode nem mesmo conseguir falar diretamente com ela e a ideia arrefece seu ânimo.

Dá uma olhada na papelada no curto espaço de tempo em que o elevador demora para subir dois andares – um informativo de crescimento econômico e de geração de empregos, provavelmente destinado a conteúdo de publicidade – e ajeita a gola da camisa. Quando as portas se abrem, Marcos recorda-se de que esteve ali apenas uma ou duas vezes em todo o seu tempo de empresa e, na medida em que avança pelo corredor, passando pela sala da recepção e pelo laboratório de impressão, sente uma ponta de nervosismo se agitando no peito.

Sabe que o escritório da equipe de comunicação fica no fundo do corredor e pigarreia baixinho ao se aproximar da porta entreaberta. Está tomando coragem para bater, mas então repara que há alguém por trás das persianas logo ao lado, alguém que ele conhece, e resolve bater de leve no vidro com os nós dos dedos. Sentada ao computador, Ana abre uma fenda nas persianas e espia através do vidro. E sorri, meio incrédula, ao vê-lo do lado de fora. Ela tem os cabelos presos num coque frouxo e veste um blazer leve.

Marcos sussurra um “vem cá” que ela lê pelo movimento de seus lábios.

— O que foi? – Ana pergunta quando vai até ele, fechando a porta atrás de si.

— Relatório. – ele entrega-lhe a pasta. – Para o teu chefe.

— Certo... – ela passa rapidamente os olhos pelos papéis. – Estão te usando como garoto de recados hoje?

— Parece que sim. – Marcos dá de ombros. – Como está o trabalho aí?

— Tranquilo. Na medida do possível.

— Bom. – ele confere as horas no relógio de pulso, e então diz: – Se estivesse muito ocupada, me sentiria um pouco culpado por te chamar pra tomar um café no primeiro andar.

Ana abraça a pasta contra o peito e reprime um sorriso. Apenas seus olhos gracejam num brilho morno enquanto sustenta o olhar de Marcos. Um café é sempre uma boa ideia, ela concorda, mas antes prefere entregar o relatório ao seu superior, e ele avisa que vai esperá-la junto às máquinas de café.

***

O primeiro andar do Grupo Kreis, além de comportar o espaço do refeitório, possui uma ampla sala de descanso com poltronas elegantes, jornais e revistas disponíveis para leitura e máquinas de snacks e de café. As janelas envidraçadas no fundo da sala dão para o estacionamento logo atrás do prédio. Mais além, em áreas que recém começam a ser ocupadas, avistam-se loteamentos em construção. Marcos pensa que, em dois ou três anos, aquele bairro será um dos mais caros da cidade, com condomínios fechados de luxo onde vão morar famílias com dinheiro suficiente para não precisarem se misturar ao restante da sociedade. Suas crianças não precisarão sair para estudar, pois haverá ali institutos educacionais para alunos seletos, e suas empregadas domésticas farão as compras através de aplicativos de entrega. A limpeza e a felicidade reinarão no interior de seus muros, bem como gramados verdejantes e bem aparados.

Enquanto Marcos reflete sobre aquela vida perfeita e, portanto, hipócrita, Ana chega. Ele se serve de um café expresso e ela opta por um cappuccino. Bebem de pé junto a uma bancada e, vez ou outra, ela come uma das bolinhas de chocolate do pacote de Bib’s que pegou da máquina de snacks. Marcos regala-se em silêncio ao observá-la tirar as bolinhas da embalagem com as pontas dos dedos em movimentos delicados e colocá-las na boca.

— Preciso confessar uma coisa. – ela começa.

— Imagino que não seja nada criminoso.

— Não... – Ana morde o canto de um lábio. – Sabe a Jana?

— Sei. – ele ergue as sobrancelhas, curioso para saber onde ela quer chegar.

— Ela apostou que nessa semana, por algum motivo, tu apareceria no nosso setor.

Marcos franze o cenho diante daquela informação. Ele se dá conta de que aquilo significa que Ana comentou sobre ele – na verdade, sobre eles – com a colega de trabalho e que as duas andaram confabulando a respeito. Imagina-as cochichando sobre suas atitudes e possíveis intenções, sobre as vezes em que ele e Ana encontraram-se e sobre as conversas que tiveram até então. Quase pode vê-las avaliando seus movimentos do ponto de vista feminino e achando graça de sua atrapalhação e não pode evitar sentir-se atraiçoado.

Ele não gosta de que Ana tenha compartilhado com outra pessoa o que deveria ser apenas dos dois. É como se ela tivesse conspurcado algo que, na perspectiva dele, era único e precioso. Agora tem a impressão de que Ana e a amiga fazem algum tipo de jogo em que ele é a peça principal e se pergunta se as duas ficaram trocando risinhos quando, momentos antes, ele saiu do setor de comunicação. Não cogitou a possibilidade de que Ana, em sua graciosidade e retraimento, pudesse prestar-se àquele tipo de coisa e a ideia o aborrece.

Ela percebe que ele tem a expressão carregada e desvia o olhar para a xícara entre as mãos.

— Tu ficou chateado?

— Por que tu contou pra ela sobre a gente?

— E qual é o problema?

Marcos bebe mais um gole do café já frio e solta o ar pelo nariz de um modo irritado, mas contido. Não sabe por que diabos as mulheres precisam contar tudo umas às outras feito alcoviteiras e pensa que se trata de um costume bastante estúpido. Seu lado lógico, contudo, sabe que não pode culpá-la porque, na verdade, Ana não fez nada de errado. Não vê problema em que as outras pessoas fiquem sabendo que eles conversam e que estão saindo juntos. Porém, seu lado passional insiste em querer mantê-la só para si – um sentimento egoísta que não faz sentido, Marcos tem consciência, mas sobre o qual não tem muito domínio.

Ele então volta a encará-la e percebe que, ao mesmo tempo em que se encontra confusa, Ana está magoada.

— Não tem problema nenhum. – Marcos acaba dizendo. – Eu entendi errado.

— Entendeu errado? – há uma sombra de ofensa no semblante dela que ele não queria ver outra vez. – O que tu acha que está acontecendo aqui?

— Eu não sei.

— Não sabe. – silêncio. – Ótimo.

Ana deixa a xícara sobre a bancada, bem como o pacote de Bib’s ainda pela metade, e afasta-se sem voltar a olhar na sua direção. A porta de vidro range baixinho quando ela passa e então retorna lentamente à posição habitual com um clique solitário. Fitando o que ela deixou para trás e experimentando a amargura daquela partida, Marcos sente o rosto arder como se o tivessem esbofeteado.

***

De volta à sua mesa de trabalho e contando os minutos para poder ir embora, Marcos supõe que, no setor de comunicação, duas mulheres devem ter passado a tarde o insultando com os piores argumentos e tem a impressão de que suas orelhas estão quentes. Em certa medida, julga que elas estão certas – ele é mesmo um cretino, um boçal, um cara que, por ter decidido não dividir seus sentimentos com os outros, espera que ninguém mais o faça. Mas também lhe parece que, afinal, a reação de Ana foi um tanto exagerada e que talvez ela seja do tipo de pessoa sensível que se ofende facilmente.

Exasperado, não percebe a força excessiva com a qual está batendo os dedos sobre o teclado enquanto preenche um formulário, até que Suzana, na mesa ao lado, empurra a cadeira para trás a fim de observá-lo.

— Está tudo bem, querido?

Suzana é um bocado mais velha. Casada e com dois filhos, possuidora daquele tom invariavelmente maternal que caracteriza algumas mulheres, ela hoje veste um terninho azul claro – sempre lamenta não poder usar suas roupas de estampas floridas no ambiente corporativo – e tem os cabelos loiros presos por um passador. Há em seu rosto uma ternura preocupada que, por um momento, desarma as defesas de Marcos.

Acalentado por aquele olhar, tudo o que ele deseja é abrir-se com Suzana, contar-lhe sobre seus problemas e sobre sua incapacidade de lidar com eles. Quer falar-lhe francamente sobre Ana, uma mulher incrível, linda em seus silêncios, em seu modo reservado de sorrir, mas a quem ele magoou por razões tão mesquinhas que tem vergonha de lembrar. Quer dizer-lhe o quanto tem se sentido mais vivo desde que a conheceu, e como a possibilidade de não poder mais estar com ela o atormenta. Quer revelar-lhe que, desde o começo, fez tudo errado, mas que agora é tarde demais para reparar uma sequência inextricável de falhas que pode colocar tudo abaixo. Quer permitir que Suzana o leia como um livro aberto até encontrar as soluções para os seus dilemas e mostrar-lhe como consertar as coisas.

Mas mente que sim, que está tudo bem, e assente com um meio sorriso, sentindo-se um pouco ridículo por ter deixado transparecer aos colegas de trabalho o seu lamentável estado de espírito. Ninguém ali pode ajudá-lo porque só Marcos conhece a profundidade do buraco escuro que ele mesmo cavou. Sabe que, mais cedo ou mais tarde, terá que conversar com Ana – a ideia de que ela possa nunca mais querer olhar para ele é quase insuportável –, porém, ainda não sabe como abordá-la e não quer piorar a situação. Pensa que talvez seja melhor esperar até que os ânimos esfriem e, ao sair do trabalho naquele dia, entra no carro e vai direto para casa.

***

À noite, porém, não consegue dormir porque os pensamentos agitam-se num redemoinho dentro de sua mente e ele sente uma saudade lancinante de Ana, de conversar por mensagens com ela, de desejar-lhe boa noite. Vira-se de um lado para o outro na cama até que joga a coberta para um canto e desiste de tentar pegar no sono. Descalço, vai até a cozinha e, iluminado pela luz da geladeira, bebe longos goles de água. Marcos tem a impressão de que a água gelada apaga fogueiras no interior de seu corpo.

Então abre a porta de vidro da sacada, que desliza para o lado e silenciosamente sobre os trilhos, e inspira profundamente o ar da noite. Ali, as noites do início de outubro ainda são frias e ele sente os pelos dos braços se eriçando. Debruçado sobre o parapeito, observa o céu limpo, uma escuridão pontilhada de estrelas, e gosta de como o bairro fica silencioso àquela hora. Ocasionalmente, escuta-se apenas o voejar abafado das asas de um morcego e o cricrilar dos insetos mais abaixo. Dentre os homens, animais racionais, mas incompreensíveis, parece-lhe que somente ele está desperto, perseguido por uma angústia da qual não consegue se livrar.

Vem-lhe à mente, súbita feito uma bordoada, a memória da voz dela. “O que tu acha que está acontecendo aqui?” O tom ressentido, algo entre a raiva e a mágoa. O olhar dolorido de quem recebe o golpe de onde menos espera. Marcos passa a mão pelos cabelos muito curtos e pensa, irritado, que não vai continuar se lamentando em silêncio feito um fracassado. Ele precisa fazer alguma coisa, dar um jeito naquela bagunça. Precisa ter uma resposta para a pergunta dela.

Mas o ímpeto de esclarecer a situação esmorece quando, ao pegar o celular para mandar-lhe uma mensagem, percebe que é muito tarde. A madrugada de quinta-feira já se insinua e Marcos compreende que Ana deve estar dormindo. Por fim, insone e incapaz de permanecer sozinho em casa, ele pega as chaves do carro e sai para o escuro lá fora.

***

Nas sombras do carro estacionado diante do prédio de Ana, Marcos observa a janela do apartamento dela. As cortinas estão cerradas e não há qualquer sinal de movimento do lado de dentro. As luzes estão apagadas, como já era de se esperar. O visor no painel do carro indica que são 02h13min da madrugada e Marcos se pergunta, decepcionado consigo mesmo, por que está ali. No fundo, ele sabe que só quis sentir-se mais próximo dela, mesmo que fosse daquele modo.

Tira um maço de cigarros amassado do porta-luvas do carro e acende um. A fumaça do cigarro e o sabor amargo da nicotina, depois da primeira longa tragada, embalam-no em uma falsa tranquilidade. Marcos fecha os olhos e recosta a cabeça no encosto do banco, sentindo-se leve e pesado ao mesmo tempo. Volutas de fumaça sobem até o forro do teto do carro e então escapam lentamente para a rua quando ele baixa o vidro ao seu lado. Marcos se dá conta de que havia passado vários dias sem colocar um maldito cigarro na boca e sorri, achando-se imensamente estúpido naquele momento. Um idiota intoxicando-se por conta de um coração partido e de uma mulher. Nada original.

Pensa que seria ótimo se agora as luzes do apartamento de Ana se acendessem e ele recebesse uma mensagem dela no celular, dizendo que aquilo tudo tinha sido uma bobagem e que eles deveriam se ver, que ela também não tinha conseguido dormir porque não parava de pensar no mesmo que ele. Mas a tela do celular continua escura sobre o banco ao lado e Ana provavelmente está sonhando com qualquer coisa aleatória, o gato amarelo dormindo enroscado aos seus pés.

Ele bate as cinzas do cigarro para fora do carro e o leva aos lábios outra vez, enchendo os pulmões daquela fumaça cancerígena. Então imagina qual seria o motivo pelo qual os seres humanos inventam porcarias como aquelas que só servem para matá-los. Interessante, murmura, observando o cigarro queimando entre os dedos. Talvez os homens possuam uma espécie de instinto de destruição, uma atração irresistível à sujeira e à degradação, uma tendência natural a colocarem-se voluntariamente nas situações mais imorais possíveis. E por quê? Marcos supõe que precisem provar constantemente da própria desgraça e que isso, afinal, signifique sua humanidade.

Talvez ele esteja ali pelo mesmo motivo, pelo prazer de constatar sua perversão. Observando uma garota às escondidas enquanto ela dorme, elaborando estratagemas, espreitando em silêncio pelo momento mais adequado de contar-lhe outra mentira a fim de fazê-la entender que precisa perdoá-lo e amá-lo. Sendo um canalha completo. A ideia faz seus olhos arderem e um nó se formar no meio da garganta. Não é assim que ele quer fazer as coisas. Então atira o cigarro pela janela, esfrega o rosto com raiva de si mesmo e gira a chave na ignição.

E dirige de volta para casa.


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