O Tormento dos Anjos escrita por Danilo Alex
"Milhares de criaturas espirituais caminham invisíveis sobre a Terra, tanto quando dormimos, como quando estamos acordados."
(Milton)
A primeira coisa que Ehlon viu quando alcançou o terraço do edifício, foi um jovem de cabelos anelados, relativamente longos, sentado à beira do precipício, balançando as pernas sobre o vácuo. O garoto deveria aparentar por volta de dezessete anos e seu olhar era triste. Sob o céu tingido de violeta pelo crepúsculo, ele olhava para baixo, observando o trânsito dos mortais, cinquenta andares abaixo dali. Estavam tão alto que, vistos de cima, os carros pareciam de brinquedo e as pessoas assemelhavam-se a formigas. Apesar da altura, podia-se perceber uma aglomeração de curiosos na calçada.
Ao lado do rapaz cabisbaixo havia uma criatura que, a despeito de sua semelhança com um humano, tinha olhos rubros como sangue, bem como emanava uma aura ardente e malévola. Dirigindo-se então a essa figura sombria, Ehlon foi taxativo:
— Já conseguiu o que queria, Abrahor. Agora dê o fora daqui. Pare de perturbar Ayael. Ele merece um pouco de paz nesse momento.
Abrahor argumentou com voz cavernosa:
— É meu direito ficar e me vangloriar.
Ehlon pousou de modo sugestivo a mão sobre o cabo da espada brilhante e estupenda que trazia na cintura:
— Não haverá um terceiro aviso. Vá enquanto ainda pode.
Emitindo um grunhido frustrado, mesmo contrariada a terrível entidade obedeceu, desvanecendo-se no ar imediatamente. Em seu lugar restou apenas o cheiro desagradável de enxofre.
Percebendo que estavam sozinhos, Ehlon aproximou-se do moço de expressão abatida. Sem dizer nada, sentou-se ao seu lado na beira do terraço, encarando também o abismo. Permaneceram um instante assim, absortos, observando o tráfego humano lá embaixo. Viram as luzes vermelhas piscando alternadamente e ouviram a sirene de uma ambulância que se aproximava velozmente do local da aglomeração, dispersando as pessoas ante sua passagem.
O garoto triste, que se chamava Ayael, consciente da presença do amigo, comentou em um sussurro:
— Os paramédicos já não podem fazer mais nada. Ele obviamente não sobreviveu à queda. Abrahor veio aqui zombar de mim, dizendo que havia acabado de levar a alma.
— Sinto muito, irmão. – balbuciou Ehlon, pesaroso.
Mais alguns segundos de silêncio constrangedor.
Finalmente Ehlon explicou de modo solene:
— Fui mandado para acompanhá-lo de volta.
Ayael se voltou para ele, e então Ehlon notou pela primeira vez que os olhos do outro anjo, de cor púrpura como o crepúsculo, derramavam lágrimas de luto.
— Não sei se quero voltar.
—Você precisa, irmão.
— Ehlon, não posso encarar o Criador depois disso. Eu falhei.
— Ele não te culpa pelo acontecido, e sofre com a perda dessa alma tanto quanto você.
— Gostaria de saber o sentido disso tudo. Ele poderia tornar as coisas diferentes se quisesse... – falou Ayael, sentido, enxugando as lágrimas que não paravam de correr.
— São as regras, Ayael. Você sabe. Livre-arbítrio.
Ehlon era solidário à dor do amigo. Sabia que Ayael, até então guardião de um dos filhos de Deus, carregaria para sempre o fardo de não encontrar seu protegido no Paraíso. Imaginava que, para um anjo, não haveria sofrimento ou tristeza maior.
Por isso, apertando o ombro do companheiro de forma encorajadora, Ehlon completou:
— Você foi um bom mensageiro. Fez tudo o que estava ao seu alcance. Sempre o inspirou com a vontade divina, o protegeu quando ele solicitou ajuda, procurou incansavelmente mostrar-lhe o caminho da luz. Mas a decisão final é deles, meu irmão. Enquanto a humanidade não aprender a usar com sabedoria seu direito de escolha, estará à deriva no caos, prisioneira das consequências daquilo que decidir. Fazemos nossa parte. Eles têm que aprender a fazer a deles.
Ayael assentiu antes de dizer:
— Até o último instante eu orei para que ele se arrependesse.
— Eu também. — confessou Ehlon — Não devemos, porém, perder nossa fé nos homens. Se Deus ainda acredita neles, nós também devemos acreditar.
Passando os braços ao redor do ombro de Ayael, delicadamente disse:
— Temos de ir agora. Nosso Pai nos aguarda.
Ayael concordou. Assim, abraçados fraternalmente, os dois anjos desfraldaram suas belas asas e alçaram voo, majestosos, retornando para seu Lar Celestial.
Cinquenta andares abaixo, a multidão se dispersou quando a ambulância partiu levando consigo o corpo de um humano que, para o bem ou para o mal, fizera uso de seu maior direito inato: o Livre-arbítrio
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