Instrumentos Mortais - versão Percy Jackson escrita por EvelynPrior17


Capítulo 4
Ravener




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A noite havia se tornado ainda mais quente, e correr para casa soava como nadar o mais rápido possível em sopa fervente. Na esquina de seu quarteirão, Annabeth ficou presa por um sinal vermelho para pedestres. Ela saltitou impacientemente enquanto o tráfego de carros passava em um borrão de faróis. Tentou ligar para casa outra vez, mas Percy não havia mentido; o telefone dele não era um telefone. Pelo menos não parecia com nenhum telefone que Annie já tivesse visto. Os botões do sensor não tinham números; só alguns daqueles símbolos estranhos, e não havia tela.

Correndo pela rua em direção à casa, ela viu que as janelas do segundo andar estavam acesas, o que, em geral, significava que a mãe estava em casa. Tudo bem, ela disse a si mesma. Está tudo bem. Mas o estômago embrulhou assim que ela pisou na entrada. A luz do teto havia queimado, e o saguão estava escuro. As sombras pareciam cheias de movimentos secretos. Tremendo, ela começou a subir.

— Aonde você pensa que vai? — disse uma voz.

Annabeth girou. 

— O que...

Ela parou no meio da frase. Seus olhos estavam se ajustando à pouca luz, e ela podia enxergar o formato de uma poltrona grande,  na frente da porta fechada da casa de Calipso. A jovem mulher estava encaixada nela, como uma boneca em tamanho real. Com a falta de luz, Annabeth só pôde ver o formato fino do rosto da mulher, o leque branco em sua mão, o buraco escuro da boca enquanto ela falava.

— Sua mãe — disse Calipso – está fazendo um barulho horroroso ali em cima. O que ela está fazendo? Arrastando móveis?

— Acho que não...

— E a luz da escada queimou, você percebeu? – Calipso passou o leque no braço da cadeira. – Será que sua mãe pode pedir para o namorado dela trocar?

— Fred não é...

— A claraboia também precisa ser lavada. Está imunda. Não é à toa que está tudo preto ali dentro. 

Fred NÃO é o zelador, Annabeth queria dizer, mas não o fez. Isso era típico da vizinha. Calipso tinha vinte e dois anos e adorava mandar nos outros como se fossem seus empregados. Quando ela conseguisse que Fred viesse trocar uma lâmpada, pediria para ele fazer centenas de outras coisas — carregar as compras, consertar o chuveiro. Uma vez ela o fizera cortar um sofá ao meio com um machado para que ela conseguisse retirá -lo do apartamento sem revomer a porta das dobradiças. 

Annie suspirou.

— Vou pedir.

— É bom mesmo. — Calipso fechou o leque com um rápido movimento de pulso.

A sensação de Annabeth de que alguma coisa estava errada só aumentou ao chegar à porta do apartamento. Estava destrancada, entreaberta, deixando vazar um feixe de luz no chão. Com um sentimento ruim crescente de pânico, ela empurrou a porta.

Dentro do apartamento, as luzes estavam acesas, todas as lâmpadas, tudo completamente claro. O brilho agrediu seus olhos.

As chaves e a bolsa verde oliva da mãe estavam na prateleira moldada de metal ao lado da porta, onde ela sempre as deixava.

— Mãe? — gritou Annabeth. — Mãe, estou em casa.

Não houve resposta. Ela foi até a sala. Ambas as janelas estavam abertas, metros de cortinas brancas e leves esvoaçavam com a brisa como fantasmas inquietos. Só quando o vento parou e as cortinas sossegaram Annie conseguiu ver que as almofadas tinham sido arrancadas do sofá e espalhadas pela sala. Algumas estavam completamente rasgadas, com os forros de algodão transbordando para o chão. As estantes de livros haviam sido derrubadas, e o conteúdo, disperso. O banco do piano estava caído de lado, aberto como uma ferida, os amados livros de música de Atena, cuspidos para fora.

Ainda mais aterrorizantes eram as pinturas. Todas elas haviam sido cortadas da moldura e rasgadas em tiras, que estavam espalhadas pelo chão. O trabalho deveria ter sido feito com uma faca — lona de tela era quase impossível rasgar simplesmente usando as mãos. As molduras vazias pareciam ossos limpos. Annabeth sentiu um berro subindo pelo peito.

— Mãe! — ela gritou. — Cadê vocêMamãe!

Ela não chamava Atena de "mamãe" desde os 8 anos. 

Com o coração disparado, ela correu para a cozinha. Estava vazia, as portas dos armários abertas, um vidro de molho de pimenta quebrado estava derrubando um líquido vermelho e no linóleo. Os joelhos de Annabeth pareciam gelatina. Ela sabia que deveria correr para fora do apartamento, arrumar um telefone e chamar a polícia. Mas tudo isso parecia muito distante — primeiro ela precisava encontrar a mãe,  precisava saber que ela estava bem. E se tivessem entrado ladrões e Atena tivesse reagido...?

Que espécie de ladrão não levaria a carteira, a televisão, o aparelho de DVD ou os laptops caros?

Ela estava à porta do quarto da mãe agora. Por um instante, parecia que pelo menos esse cômodo permacera intocado. A colcha de corujas feita à mão de Atena estava cuidadosamente dobrada. O rosto de Annabeth sorria para ela mesma do alto da mesa de cabeceira, 5 anos, sorriso banguela, e cabelos cor de ouro derretido. Um choro se formou no peito de Annabeth. Mãe, ela chorou por dentro, o que aconteceu com você?

O silêncio respondeu. Não, não o silêncio — um barulho ecoou no apartamento, arrepiando os pelos da nuca de Annabeth. Como alguma coisa sendo derrubada —, um objeto pesado atingindo o chão com uma batida forte. A batida foi seguida por um barulho arrastado e vinha em direção ao quarto. Com o estômago contraindo de pavor, Annie se levantou e virou-se de costas lentamente.

Por um instante, ela pensou que a entrada estava vazia, e sentiu uma onda de alívio. Em seguida olhou para baixo.

Estava agachada no chão, uma criatura longa e escamada com um conjunto de olhos pretos vazios no centro do crânio. Alguma coisa entre um cruzamento de jacaré com centopeia, com um focinho grosso e liso e uma cauda peluda que balançava perigosamente de um lado para o outro. Pernas múltiplas se ajeitavam sob o corpo enquanto este se preparava para saltar.

Um berro partiu da garganta de Annabeth. Ela cambaleou para trás, escorregou e caiu, bem na hora em que a criatura atacou-a. Ela rolou para o lado, e não foi atingida por poucos centímetros, deslizando pelo chão de madeira, suas garras escavando estrias profundas no piso. Um rosnado baixo partiu da garganta da criatura.

Ela se levantou de qualquer jeito e saiu correndo para o corredor, mas a coisa era rápida demais para ela. Pulou mais uma vez, aterrisando exatamente acima da porta, onde ficou pendurada como uma aranha maligna gigante, encarando-a com um conjunto de olhos. A mandíbula se abria lentamente, exibindo uma fileira de dentes afiados dos quais pingava saliva esverdeada. Uma longa língua preta tremeluzia enquanto murmurava e sibilava. Para seu verdadeiro horror, Annabeth percebeu que os ruídos que emitia eram palavras.

— Menina – sibilou — Carne.Sangue.Comer,ah,comer.

Começou a deslizar lentamente pela parede. Uma parte de Annabeth havia ultrapassado o terror e chegado a um estado de paralisação congelada. A coisa estava de pé agora, arrastando-se em direção a ela. Chegando para trás, ela pegou um porta-retrato na escrivaninha ao lado dela — ela, a mãe e Fred em Coney Island, prestes a entrar nos carrinhos bate-bate — e atirou contra o monstro.

A foto atingiu o centro da criatura e depois caiu no chão,  com o barulho de vidro quebrando. O bicho não pareceu notar. Veio em direção a ela, com os pedaços de vidro quebrado sob os pés. 

— Ossosquebrarsugar a medulabeber as veias...

Annabeth bateu com as costas na parede. Não tinha mais para onde recuar. Ela sentiu um movimento no quadril e quase saltou para fora da própria pele. O bolso. Colocando a mão dentro dele, retirou o objeto de plástico que pegara de Percy. O Sensor estava tremendo, como um telefone celular programado para vibrar. O material duro chegava a machucar a palma da mão dela de tão quente. Ela fechou a mão em torno do Sensor enquanto a criatura saltou.

O bicho se lançou violentamente contra ela, derrubando-a no chão, e sua cabeça e ombros bateram no chão. Ela girou para o lado, mas a coisa era pesada demais. Estava em cima dela, um peso opressivo e viscoso que fazia com que ela quisesse vomitar.

— Comercomer — gemia. — Mas não é permitido engolirsaborear.

O hálito quente no rosto de Annabeth tinha cheiro de sangue. Ela não conseguia respirar. Parecia que suas costelas iam quebrar. Ela estava com o braço preso entre o próprio corpo e o do monstro, o Sensor cavando a palma da mão. Ela girou, tentado libertar a mão. 

— Felipe nunca vai ficar sabendoEle não falou nada sobre nenhuma garotaFelipe não ficará irado. — Sua boca sem lábios se movimentava e, enquanto as mandíbulas abriam lentamente, uma onda de mau hálito vinha quente em seu rosto. 

Annabeth libertou a mão. Com um grito, ela bateu na criatura, querendo esmagá-la, cegá-la. Ela já tinha quase esquecido do Sensor. Enquanto a criatura tentava atacá-la no rosto, com a boca amplamente aberta, ela enfiou o Sensor entre os dentes do monstro e sentiu uma saliva quente e ácida no pulso, e gotas fervente pingarem na pele exposta do rosto e da garganta de Annie. Como se estivesse distante dali, podia se ouvir gritando.

Parecendo quase surpresa, a criatura recuou, com o Sensor alojado entre dois dentes. Rugiu, um barulho espesso e raivoso, e jogou a cabeça para trás.  Annie a viu engolir, percebeu o movimento da garganta. Sou a próxima, ela pensou, em pânico.  Sou...

De repente, a criatura começou a estremecer. Com espasmos incontroláveis, se afastou de Annabeth e rolou sobre as próprias costas, múltiplas pernas chutando o ar. Líquido preto vazou da boca do monstro.

Quase sem fôlego, Annabeth rolou e começou a se afastar da coisa também. Ela já havia praticamente alcançado a porta quando ouviu algo assobiar pelo ar próximo à sua cabeça.  Ela tentou desviar, mas era tarde demais. Um objeto bateu forte na parte de trás da cabeça,  e ela sucumbiu, entregue à escuridão. 

 

 

A luz agrediu as pálpebras de Annabeth, azul, branca e vermelha. Havia um barulho agudo e de lamentação, subindo de tom como o grito de uma criança aterrorizada. Annie engasgou-se e abriu os olhos.

Ela estava deitada sobre o gramado frio e úmido. O céu noturno ondulava-se acima, o brilho metálico das estrelas ofuscado pelas luzes da cidade. Percy estava ajoelhado a seu lado, as algemas prateadas nos pulsos dele emitiam faíscas de luz enquanto ele rasgava o pedaço de tecido que segurava.

— Não se mexa.

Os lamentos ameaçavam cortar as orelhas dela ao meio. Annabeth girou a cabeça para o lado, desobedientemente, e foi recompensada com uma pontada aguda de dor nas costas. Ela estava deitada sobre uma grama atrás da roseira cuidadosamente cultivada de Atena. A vegetação escondia parcialmente a vista da rua, onde um carro de polícia, com a sirene azul e branca piscando, estava parado no meio-fio, com a sirene tocando. Um pequeno grupo de vizinhos já havia se aglomerado, encarando enquanto a porta do carro se abria e dois policiais de uniforme azul emergiam.

polícia. Ela tentou sentar, e não conseguiu, os dedos tremiam na terra úmida. 

— Eu disse para não se mexer — sibilou Percy. — Aquele demônio Ravener te acertou na nuca. Ele já estava semimorto, então não provocou um dano grave, mas temos que levá-la ao Instituto. Fique parada.

— Aquela coisa,  o monstro, ele falava. – Annabeth se mexia incontrolavelmente.

— Você já ouviu um demônio falar antes. – As mãos de Percy eram delicadas enquanto ele colocava a tira de pano sob o pescoço de Annie e amarrava. Estava embebido com alguma coisa que parecia cera, como o material de jardinagem que Atena utilizava para manter macias as mãos que abusavam de tinta e de aguarrás.

— O demônio no Pandemônio parecia uma pessoa.

— Era um demônio Espectro. Capaz de mudar a forma. Raveners são daquele jeito mesmo. Nada atraentes, mas são burros demais para se importar com isso.

— Ele dizia que ia me comer.

— Mas não comeu. Você o matou. — Percy concluiu o curativo e sentou-se.

Para alívio de Annabeth, a dor na nuca havia passado. Ela conseguiu sentar.

— A polícia está aqui — A voz dela soou como o coaxar de um sapo. — Nós deveríamos...

— Não há nada que possam fazer. Alguém deve ter ouvido os seus gritos e os chamou. Aposto que não são policiais de verdade. Os demônios têm uma maneira de esconder os próprios rastros.

— Minha mãe  — Annabeth disse, forçando as palavras através da garganta inchada.

— Há veneno de Ravener passando por suas veias neste exato instante. Você vai morrer dentro de uma hora se não vier comigo. — Ele se levantou e esticou a mão para ela. Ela aceitou e ele a levantou com um puxão. — Vamos.

O mundo estremeceu. Percy pôs a mão nas costas dela, segurando-a firme. Ele cheirava a sujeira, sangue, maresia e metal.

— Você consegue andar?

— Acho que sim. — Ela olhou através dos arbustos densos. Conseguia ver a polícia se aproximando. Um dos oficiais, uma mulher loura e magra, trazia uma lanterna em uma das mãos. Ao levantá-la, Annie viu que a mão não tinha carne, era uma mão esquelética afiada nas pontas dos dedos. — A mão dela...

— Eu disse que poderiam ser demônios — Percy olhou para o fundo da casa. — Temos que sair daqui. Dá para ir pelo beco?

Annabeth balançou a cabeça.

— É sem saída. Não tem como... — As palavras dela se dissolveram numa tosse. Ela levantou a mão para cobrir a boca. Voltou vermelha. Ela gemeu.

Ele agarrou o pulso de Annabeth, girando-o para que a parte branca e vulnerável do antebraço ficasse nua sob a luz da lua. Traços de veias azuladas mapeavam o interior da pele da menina, trazendo sangue envenenado para seu coração e seu cérebro. Annabeth sentiu os joelhos curvarem. Havia algo na mão de Percy, algo afiado e prateado. Ela tentou libertar a própria mão, mas o punho dele era forte demais: ela sentiu uma picada forte na pele. Quando ele a soltou, ela viu um símbolo preto tatuado, como aqueles que cobriam a pele dele, logo abaixo da dobra do próprio pulso. Parecia um aglomerado de círculos sobrepostos.

— O quê exatamente isso faz?

— Vai esconder. — Ele disse. – Temporariamente. — Ele colocou de volta no cinto a coisa que Annie pensara que era uma faca. Era um cilindro longo e luminoso, da grossura de um dedo indicador, e afunilado na ponta. — Minha Estela – ele disse.

Annabeth não perguntou o que era aquilo. Ela estava ocupada tentando não cair. O chão estava pesando seus joelhos.

— Percy — ela disse, e caiu sobre ele. Ele a segurou, como se estivesse acostumado a segurar garotas desmaiando, como se fizesse isso todos os dias. E talvez fosse esse o caso. Ele a tomou nos braços, dizendo alguma coisa em seu ouvido que soava como Pacto. Annabeth esticou a cabeça para trás para olhar para ele, mas só viu as estrelas espalhadas no céu acima. Depois a base de tudo caiu, e mesmo os braços de Percy não bastavam para impedir que ela caísse.


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