Xeque-Mate escrita por Dani, Sannybaeez, Braguinhah


Capítulo 7
Paulo - O mendigo, a galinha e um colchão




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Como semideus, muita coisa havia deixado de me surpreender nessa vida, eu já consegui viver e ver um pouco de tudo.

Já lutei contra gigantes, fúrias, um titã e até mesmo homens peixe-boi sedentos por sangue  — Obrigado por isso Cronos  — tudo isso em um dia só.

Mas nada, absolutamente nada, havia me preparado para aquele momento.

Quando estava sendo quase morto afogado em um colchão d’água por um mendigo montado em um monstro metade dragão e metade… galinha?

Contudo, vamos recapitular um pouco, dar um contexto e deixar a situação  — se possível  — com mais sentido.

Era um dia agradável em São Francisco, os pássaros cantavam felizes, as crianças riam nos parques, e eu havia acabado de sair da prisão…

[...]

 

Meu corpo ainda doía de quase ter morrido na noite passada, não é todo dia que sou quase esmagado até a morte por um gigante seminu.

Ou que sou controlado por dois deuses mimadinhos, ou que descubro que minha irmã estava sendo controlada para deixar com que monstros entrassem no único lugar que chamava de lar ou que sou preso, ou que encontro o Lucas fedendo em um bar.

Muitas emoções para 24h.

Mas enfim, agora eu finalmente estava respirando a liberdade, o ar fresco de São Francisco ao invés do cheiro de bebida vagabunda e urina do novo amigo do meu irmão bebum.

Claro, você pode estar pensando “mas ué, grupo tão grande de semideuses não iria atrair monstros bem rápido?” e você está completamente certo, contudo, uma coisa que não é muito divulgada, é que existe uma forma de semideuses esconderem sua presença de forma temporária. Os campos de morango do acampamento meio sangue são em primeiro lugar nosso disfarce e em segundo nossa forma de renda, mas o que muitos não sabem é que também é um dos motivos para a maioria de nós não morrer assim que pisamos fora da barreira.

Vamos fazer um breve resumo, quem cuida dos morangos são os filhos de Deméter, deusa da agricultura e várias ninfas servas da mesma, consequentemente alguns destes morangos podem ter propriedades, como posso dizer, interessantes.

Se separados e tratados corretamente, é possível fazer um suco desses morangos que consegue esconder por algum tempo o cheiro divino dos semideuses, não dura muito, mas pode ser a chave entre a vida e a morte em momentos delicados.

Sabendo disto, e por viver agora fora da barreira do acampamento, a Bela fazia quase que mensalmente um estoque desse suco e, gentilmente, por conta de seu imenso amor por nós, ela cedeu um pouco do que havia armazenado — Em troca de alguns dracmas de cada um, obviamente.

E falando na Bela, após nos tirar da cadeia e esconder nossos rastros, ela decidiu nos guiar através da imensa cidade, disse que nos levaria para um lugar seguro para descansar, pensar em um plano e entender melhor tudo que havia acontecido.

Enquanto ela nos guiava, eu admirava um pouco daquele lugar. As ruas movimentadas e barulhentas, o ar adocicado dos parques repletos de grupos de pessoas se divertindo e confraternizando, os artistas de rua que esbanjavam talento para ganhar um trocado. Era tudo tão incrível e de uma forma estranha, aconchegante.

Claro, eu já estive fora do acampamento, já morei uma parte da minha vida longe de toda aquela magia e adolescentes cheios de hormônios, mas isso já fazia muito tempo, e eu nunca havia estado em uma cidade como São Francisco.

Tão grande, barulhenta e cheia de gente. Mas eu estava gostando, me lembrava um pouco o chalé de Apolo.

Claro, não temos prédios e parques enormes construídos dentro do chalé — Não por falta de vontade de alguns campistas, eu garanto — Mas o que me causava aquele sentimento de familiaridade, era a inquietude daquele lugar e a arte que emanava de cada esquina. O canto de uma jovem que tocava apenas um violão já velho e surrado, a atuação de uma estátua humana dourada que fazia uma porção de pessoas pararem para tirar foto e olhar, o batuque ritmado e incessante de algumas crianças, o beatbox, a dança.

A arte que Apolo tanto amava, estava em todos os lugares.

[...]

 

Não estávamos andando a muito tempo quando San pediu para que parássemos, ele estava suando e sendo apoiado por Fabrício e Webs, sua respiração estava um pouco descompassada, como um dos poucos do grupo que tinham um pouco mais de vocação para a medicina, fiz uma exame rápido em meu irmão, mas o diagnóstico era óbvio, ele estava cansado e faminto, a luta do dia anterior e todo o controle mental o haviam esgotado.

Compartilhei a informação com os outros, Bela não pareceu muito feliz em fazer uma pausa na caminhada, mas mesmo assim nos levou para uma lanchonete pequena naquela mesma rua.

— Não podemos demorar muito — Ela falou olhando de canto de olho para algo atrás de nós.

— Eu só preciso de um segundo… — San falou com a voz meio fraca, enquanto se sentava.

O lugar era agradável, era um ambiente simples, que lembrava o estilo de lanchonete dos anos  90, com mesas rodeadas por assentos almofadados vermelhos. O lugar inteiro cheirava a panquecas fresquinhas, mesmo que já fosse praticamente hora do almoço, e as garçonetes pareciam impacientes e apressadas a todo momento.

Bela nos mandou sentar e obedecemos, em seguida ela se dirigiu a bancada, chamou uma das atendentes e pareceu sussurrar algo perto do seu ouvido, a mulher olhou para nós e assentiu, e nossa irmã voltou para perto de nós.

Minutos depois um banquete foi colocado à nossa frente, tinha de tudo que  se  pode imaginar, ou pelo menos tudo que se pode imaginar que tenha uma lanchonete que só serve café da manhã e janta.

Ovos mexidos e bacon fritos, uma travessa de frutas cortadas, tigelas de mingau, uma pequena porção de croissants, torradas ainda quentinhas, uma torre de panquecas e mais uma porção de coisas que não consigo descrever agora pois meu estômago pede para que eu cale a boca e coma.

Nós devoramos aquela comida como se não houvesse amanhã, talvez estivéssemos parecendo animais que não se alimentavam a algumas horas? Talvez sim, mas não nos importamos.

Havia pelo menos umas 3 jarras de suco diferentes, Bela havia nos dito que nelas tinham um pouco de néctar para ajudar a nos recuperarmos melhor, e apontou para a balconista que lhe atendeu que piscou para nós, fazendo seu olho brilhar como um caleidoscópio.

Eu podia sentir a energia voltar para meu corpo, enquanto a comida ainda quente tocava na minha língua. Mas devo admitir que não era apenas a comida que estava me ajudando naquele momento.

Olhando para a mesa, pude ver Laís, San, Webs, Fabrício e até mesmo o Lucas, finalmente bem. Havíamos passado por tanta coisa em um período tão curto de tempo, sofrido tanto, chorado tanto, e agora vê-los sorrindo era o melhor remédio que eu poderia pedir.

Laís colocava a conversa em dia com a Bela, soltando pequenas risadas uma vez ou outra, sendo acompanhada pela ruiva que a abraçava protetoramente de lado, ao lado delas Web já com a mão finamente enfaixada conversava com Lucas, que reclamava vez ou outra do absurdo que era não venderem broto de ninfa naquele lugar, aparentemente o soco que um havia dado no outro não impactou na relação deles, o que com certeza foi um alívio, e ao mesmo tempo que o Lucas conversava com o Webs, ele cuidadosamente ajudava o San a se manter recostado no assento amplo e alto, enquanto lhe alimentava na boca com um pouco de mingau e suco.

Aquilo me fez sorrir.

Mas então notei que faltava alguém, talvez por ele ser tão pequeno que não notei quando se levantou. Fabrício não estava no meio de nós, olhei ao redor do estabelecimento e o vi parado em frente a janela ao lado da porta de entrada, os braços soltos ao lado de seu corpo, os ombros parecendo pesar uma tonelada.

Me aproximei do meu irmão, seu olhar parecia perdido, angustiado e tantos outros sentimentos misturados em um angustiante emaranhado de perguntas.

— Sabe Fafá, você sabe que eu te conheço bem o suficiente pra saber quando você não está feliz né? — Comecei a falar, me encostando no vidro na frente de meu irmão, mas mesmo assim não consegui captar seu olhar.

A mente de Fabrício parecia se perder no céu azul do lado de fora, ele estava calmo, calmo até demais, mas seus olhos não mentiam. Eles haviam perdido seu brilho característico, animado, cuidadoso e às vezes egocêntrico, agora parecia haver espaço apenas para dúvidas e dor.

Não consegui evitar suspirar, cansado.

— Lembra quando nos conhecemos? Você e eu? — Sorri com a lembrança — Éramos tão novos, e cabeça duras, tudo era uma competição entre nós, e fomos crescendo assim, chegou um momento que eu nem lembrava mais como chegamos a essa troca de provocações, um sempre tentando ser melhor que o outro, tentando provar coisas que ninguém se importava a não ser nós dois — Não pude evitar abafar uma risada — Era ridículo.

Fabrício sorriu de lado. Mas ainda não havia terminado.

— Mas uma coisa você tem que admitir, você é um cabeça dura, teimoso e irritante.

Fabrício pela primeira vez naquela conversa — Que na verdade estava mais para um monólogo — Levantou seu olhar para mim, parecendo confuso e ligeiramente chocado com o xingamento gratuito que havia recebido, mas apenas levantei o dedo para que ficasse quieto.

— Desde que nos conhecemos, eu te provoco e te irrito, e você faz isso de volta comigo, essa é a nossa relação Fabrício, mas isso não quer dizer que não nos respeitamos ou nos amamos. Sabe por que eu não te provoquei tanto quando o Will te deixou como conselheiro? Por que eu confio cegamente em você.

— Tomou a pior decisão da sua vida.

Uma careta de dor e melancolia tomou conta da face do moreno enquanto sua voz rouca não conseguia esconder o tom levemente embargado, meu irmão tentava esconder toda a dor que sentia desde que deixamos o acampamento. Ele tentava se enganar e enganar a todos, se escondendo atrás de uma falsa autoconfiança e planos elaborados, mas na verdade, ele estava tão perdido quanto nós.

Eu conseguia ler suas expressões, seu comportamento e até mesmo compartilhar um pouco da sua dor. Eu e ele havíamos treinado nossas vidas inteiras para proteger não só nossa própria vida, mas todos aqueles que amamos, e sentir tamanha falha na pele, doía, e como doía.

Mas eu infelizmente não podia tirar a dor dele, e fingir que nada havia acontecido. Não dava pra apagar o senso enorme de responsabilidade que pesava por seus ombros.

O que eu podia fazer, entretanto, era ferir o seu orgulho.

— É, quem sabe né? Por que eu deveria confiar de forma tão imprudente em alguém que adora se fazer de forte e invulnerável, gosta de cuidar de todos e quase nunca deixa que os outros cuidem dele, alguém que é teimoso, orgulhoso e por vezes egocêntrico, mas que também é um líder nato, mesmo que não admita para si mesmo, alguém que está se culpando por tudo que aconteceu mesmo tendo plena consciência que a situação estava fora do seu controle, alguém que mesmo assustado e de luto decidiu mesmo assim sair em uma missão que está diretamente ligada com a causa da sua dor, alguém que mesmo querendo chorar feito uma criancinha não se permitiu nem mesmo uma lágrima por que precisa dar apoio a tantos outros, você está errado Fafá, seria a pior decisão da minha vida não confiar em você.

Depois que terminei de falar o que provavelmente havia sido a mensagem de incentivo mais legal e mais bonita que ele já havia ouvido, Fabrício continuou com a cara fechado, contudo, após alguns poucos segundos ele simplesmente começou a… rir.

Era uma risada leve e calma, mas mesmo assim ele colocou as mãos no rosto, escondendo o que percebi depois, como sendo lágrimas. Fabrício chorava contido, sabendo que se perdesse o controle iria chamar a atenção dos outros e ele não queria isso, mesmo que finalmente houvesse se permitido transbordar a dor que sentia, ele ainda se preocupava em como iria afetar a outros.

Como eu disse, cabeça dura.

Coloquei uma mão em seu ombro o puxando para um abraço apertado. Eu senti suas lágrimas molharem minha camisa, enquanto ele escondia o rosto no meu peito, abafando seu choro. Eu o apertava cada vez mais próximo de mim, como se aquilo fosse o suficiente para tirar sua dor, ou protegê-lo de tudo que ainda estava por vir.

Eu não queria mais ver Fabrício sofrer, eu não queria ver Laís chorar, não suportaria ver o San ser usado como uma peão, o Webs se machucar, a Bela sofrer calada e nem mesmo o Lucas entristecido.

Por um rápido momento eu amaldiçoei nosso pai por ser um deus, e por ter colocado sobre todos nós o peso de ser semideuses. Ser alguém que é marcado desde o primeiro dia de vida, que tem que viver todos os dias como se fosse o último, pois de fato pode ser.

Ser um semideus é penoso e cruel, e pode acabar com você de várias formas, somos obrigados a fugir de uma vida comum desde muito novos, e trocar a madeira lisa de um lápis, pela lâmina fria de uma espada, para ficar em segurança temos que ficar a maior parte do ano no acampamento, e acabamos por não ter o carinho de um pai ou uma mãe.

Viramos assassinos, máquinas de matar, pela simples e urgente necessidade de nos mantermos vivos. A maioria não se permite sonhar em crescer e fazer a faculdade dos sonhos, para encontrar o emprego dos sonhos e viver sua própria vida, pois se chegarmos aos 18 já é motivo de consideração. Claro, há aqueles que conseguem sonhar, e ainda mais importante alcançar uma vida fora do acampamento, Bela era um exemplo vivo disso, o próprio Percy Jackson e Annabeth Chase também são, eles conseguiram continuar vivos e ainda mais incrível, entrar no ensino superior.

Mas a maioria não consegue. Tive que fazer mais mortalhas do que gostaria no meu curto tempo de vida, me despedi de amigos e irmãos, e com cada um deles, uma parte de mim foi junto. Na maioria dos casos eu não podia fazer muito, eles saiam em missões como qualquer semideus, e alguns voltavam e outras não, eu dava o meu melhor como médico para ajudar os que voltavam, às vezes eu conseguia.

Às vezes.

Mas aqui, agora, eu realmente posso fazer algo, eu não sou apenas um espectador, eu sou um guerreiro, eu sou um médico, e vou fazer de tudo ao meu alcance para proteger aqueles que eu mais amo.

 

[...]

 

Depois de momentos emotivos, um bom café da manhã e trocar de camisa — Já que Fafá chorou mais do que eu esperava — Estávamos reavivados para ir pro tal lugar super seguro e secreto que Isabela conhecia.

Continuamos andando pela imensa cidade, virando uma rua aqui, outra ali, e quando eu pensava que havíamos chegado, ela virava em outra rua, por um momento até imaginei se o Lucas havia dado um pouco do seu broto de ninfa para a Bela.

Entretanto, depois de mais alguns minutos de caminhada — Que mais pareceram horas, sinceramente — finalmente chegamos.

Mas antes de falar do lugar, pensem um pouco comigo, quando alguém lhe fala que vai te levar para um esconderijo de semideuses que é super seguro e bem escondido, aposto que muitas coisas podem passar pela sua cabeça. 

Talvez você imagine uma passagem secreta em uma livraria que vai levar para uma sala bem adornada, limpa e com mini sanduíches. Ou quem sabe imagine uma estátua falante que após ouvir o código super secreto abra a passagem para escadas secretas, que levam para um QG bem maneiro.

Algo com uma vibe bem James Bond, Missão impossível ou Panteras.

Imaginem minha decepção quando toda feliz e satisfeita, Isabela parou na frente de uma loja de colchões — De marcar totalmente desconhecida por sinal — onde dois garotos gritavam a plenos pulmões, promoções de 40, 50 e até 60% de desconto em qualquer peça.

Ambos os meninos pareciam jovens, e aparentavam ter a mesma idade, talvez tivessem por volta dos seus 15 anos. Um deles parecia um pouco mais animado, balançava os braços freneticamente tentando chamar a atenção dos transeuntes, mas talvez seu tamanho não ajudasse muito, tinha os cabelos um pouco grandes e penteados para trás. Enquanto o outro garoto, era mais alto e com cabelos também longos, porém ligeiramente cacheados, parecia entediado, ao contrário do colega que se mexia inquieto de um lado para o outro, o mais alto estava parado em uma das extremidades da pequena porta de vidro da loja, segurando um violão que por sua vez estava plugado em uma pequena caixa de som, ele cantava, parecendo envergonhado, o jingle da loja, sua voz grave arrecadava olhares, mas não parecia ser o suficiente para alguém parar.

Se o objetivo da Bela era discrição, ela havia falhado de forma miserável. Mas mesmo assim seguimos para o estabelecimento.

A medida que chegávamos perto, pude analisar melhor aquela rua e as pessoas que a frequentavam. Com partes ainda não pavimentadas, e aspecto abandonado, quase todas as outras lojas, restaurantes e etc, daquele lugar, não estavam em seu melhor estado. Letras garrafais estavam pichadas em mais de uma fachada, símbolos obscenos e dizeres mais obscenos ainda estavam escritos em vários pontos daquele lugar.

As pessoas que por ali transitavam também não tinham o melhor dos aspectos, alguns se vestiam de forma casual, diferindo pouco de tantas outras pessoas que havíamos encontrado em nosso caminho até ali, mas em contrapartida havia uma quantidade maior de maltrapilhos e mendigos rindo e bebendo para lá e pra cá.

E percebi que um deles me encarava.

O homem estava esparramado no chão, usando pelo menos duas calças e dois casacos para se aquecer, sua barba era espessa e aparentemente servia como reservatório de comida pela quantidade de restos e migalhas que a enfeitavam. Ele me encarava com a expressão oscilante, seus olhos não pareciam conseguir focar muito tempo em mim, e logo caiam para a garrafa suja e com um líquido dourado que deixava escorrer pela lateral de sua boca e sujava ainda mais — Se é que isso era possível — suas roupas.

Desviei o olhar e a atenção no momento que ouvi o grunhido abafado de Bela, e quando me virei, vi minha irmã ser abraçada pelos dois jovens da loja.

— Bela! — O mais animado gritou, abraçando-a.

— Oi Mika, calma, você está chamando muita atenção.

E então o outro garoto a abraçou, ele tinha quase a altura de Bela, que esqueci de comentar, tinha por volta de seus quase 2 metros de altura e porte de modelo, talvez se a legislação e o prazer de prender pessoas não gritasse mais alto, ela poderia ter ido facilmente para o mundo dos modelos.

— Bela — O mais alto falou mais controlado, porém perceptivelmente eufórico, soltando-a do abraço para olhá-la — O que está fazendo aqui, por que não avisou que viria? Poderíamos ter feito algo e… — E então ele nos viu.

Um brilho admirado passou pelo seu olhar, seu maxilar caiu e o sorriso se alargou até não poder mais, soltando uma exclamação aos deuses. Ele começou a se aproximar, obviamente ajeitei a roupa, tirei uma sujeirinha aqui e outra ali, com certeza ele deve ter ouvido falar de meus feitos, e de como sou incrível e…

— Você é o Lucas? — Falou eufórico o garoto.

E eu apenas fingi que meu orgulho não havia sido quebrado.

— Sim? — Lucas respondeu.

— Ai meus deuses! — O menino exclamou — Eu ouvi falar de todas as suas aventuras, a Bela me contou todas as vezes que você lutou contra monstros, e quando sozinho você venceu uma horda de zumbis.

— Eu contei das vezes que ele foi preso, você devia ter focado nisso João, nas várias vezes que ele foi preso.

Lucas pigarrerou.

— Então você é um fã?

Bela suspirou pesado, e apenas deu de costas, entrando na loja precária de colchões.

Eu gostaria de dizer que aquele era um dos casos onde a capa do livro engana, e que apenas a fachada era deprimente e assustadora, mas quando entrámos e a primeira barata passou pelo meu pé, eu sabia, bem dentro de mim, que eu jamais confiaria na Bela e nos seus esconderijos novamente.

A loja por dentro era horrível. As paredes descascando, as várias teias de aranha e o pó que cobria o plástico nos quais os colchões em amostra estavam embalados, já me fariam desistir imediatamente de comprar qualquer coisa ali, de entrar ali, ou de fazer qualquer coisa.

Não se via cliente nenhum, na verdade parecíamos ser as primeiras pessoas a entrar ali em muito, mas muito tempo, além disso, claramente os dois únicos funcionários daquele estabelecimento eram aqueles dois adolescentes. Eles nos guiavam para o interior da loja, limpando com as mãos nuas um pouco de sujeira aqui e uma teia de aranha acolá, enquanto Mikha conversava animadamente com Bela sobre algo e o Lucas se mostrava para o João.

Paramos em uma sala pequena no final da loja, que tinha uma janela enorme onde dava para ver todo o resto do lugar, mas que naquele momento estava coberto por uma persiana amarela com alguns pontos brilhantes.

Bela nos explicou que de fato João e Mikha eram os únicos dois funcionários daquele lugar, mas apenas de forma temporária, ambos também eram semideuses filhos de Apolo, ou seja, nossos irmãos, contudo haviam sido reclamados recentemente e Bela os havia encontrado, e por conta de vários imprevistos, sendo um deles o ataque a nossa casa, não haviam  tido a chance de passar algum tempo no acampamento, eles ficavam naquela loja como um disfarce e não eram atacados por conta dos sucos da Bela que mascaram o odor de “recém-nascido” deles.

Preferimos não contar a eles sobre a profecia, terem descoberto que eram semideuses a tão pouco tempo já lhes trazia problema o suficiente, falamos apenas que estávamos em uma missão.

— Isso é tão legal — Mikha falava animado.

Eu quis retrucar, falar como era inocente e talvez burro, mas não o fiz, eu já senti o mesmo entusiasmo, a mesma ansiedade em viver aventuras e até mesmo descobrir se tinha algum poder, não podia culpá-lo por ver e imaginar apenas a parte bonita e divertida da coisa toda.

Então apenas sorri.

— Espere até ter o seu primeiro treinamento de combate — Sorri ameaçador — Vou garantir de ser a pessoa a dar a primeira lição.

Fabrício e Bela me recriminaram com seus olhares julgadores, mas eu apenas ri.

— Mas então — Eu continuei, dando um gole do café, ou chá, não tinha muita certeza, mas era quente e suprime a vontade de cuspir aquilo — Esse é o esconderijo secreto Bela? — Falei não escondendo o tom ácido.

Bela riu, colocando sua xícara em cima do balcão, levantou se dirigindo até o quadro de avisos que continha apenas um número de telefone e um papel colorido com letras grandes sobre uma promoção relâmpago, minha irmã empurrou alguns alfinetes que não estavam prendendo nada, e de repente o quadro tremeu, afundou e Bela o empurrou levemente para o lado.

Do outro lado, pela pequena brecha que ela havia mostrado, era possível ver uma parede de concreto cinza, uma luz fraca e um cheiro úmido, ela empurrou mais para o lado, para abrir a passagem por completo, mas nesse momento escutamos o tilintar de sinos da porta ecoar pelo lugar vazio, Bela vacilou, olhou para nós e fechou a passagem.

Mikha pulou da cadeira.

— Clientes!

Mas antes que ele pudesse sair da pequena sala onde estávamos reunidos, ouvimos um outro som, um que fez meus ossos gelarem e um suor frio descer por minha testa, a tensão havia se instaurado no recinto, eu olhava para meus irmãos, que compartilhavam o mesmo pavor que o meu em seus olhares

Ouvimos o cacarejar de uma galinha.

— Mikha! — Chamei, tentando controlar o pavor na voz — Não vai lá.

Ele me olhou confuso.

— Como assim? — Ele riu — Deve ser só um doido com uma galinha.

Aquilo havia soado normal demais, tenho medo do tipo de pessoas que frequenta esse lugar, mas enfim, esse não é o ponto, me levantei e fui até meu mais novo irmãozinho, e tentei o puxar pelo braço antes que saísse pela porta, mas já era tarde demais. Ele já estava do lado de fora.

Seu sorriso reluzente se desfazia em uma cara de terror e medo, e quando mais uma vez o cacarejo soou pela loja, vi Mikha voar para trás, batendo violentamente as costas na parede e se contorcendo de dor após o susto.

— Droga…

Aqui meus queridos leitores é quando voltamos para o início desse conto fatídico, e vou ser breve no que aconteceu daqui por diante.

Após Mikha ser violentamente jogado, obviamente todos nos levantamos com armas em punho, menos João que correu para ajudar nosso irmão.

Bela puxou sua pulseira de contas por seu braço dando a impressão que ela se romperia, mas o que aconteceu foi a sua transformação em um arco dourado e reluzente, com uma flecha igualmente brilhante.

À nossa frente, uma figura enorme se projetava e um cheiro horrível atingia nossos narizes. Um monstro enorme, metade dragão e metade galinha se colocava entre nós e a saída, ele era tão grande e corpulento que sua cabeça enorme batia no teto alto arrancando alguns pedaços de gesso, a cabeça de galo cacarejava ameaçadoramente como se estivesse sedento por carne de semideus, ou talvez ela só pensasse que éramos caroços de milho com pernas, não sei o que se passa na cabeça de um basilisco tá.

— Tirei a sorte grande Uma voz cansada e risonha falou por trás do monstro 8 semideuses de uma vez só.

— Haha Lucas riu alto Estamos em 9, idiota.

Droga Lucas.

— Não tô nem aí — O homem misterioso gritou O que importa é que vou reduzir vocês a zero, pra cima deles Penosa.

E então a galinha dragão avançou, e falo com segurança quando digo que não morremos por um triz.

A criatura era grande e destruía boa parte do lugar quando se mexia, mas ainda assim era rápida em suas investidas, nós desviávamos como podíamos, Bela tinha certa vantagem por atacar de longe, ele lançava flecha atrás de flecha no monstro, mas parecia não surtir efeito, suas escamas grossas pareciam indestrutíveis.

Corríamos de um lado para o outro, tínhamos que nos proteger não só das garras afiadas e enormes do basilisco, mas também de pedaços do prédio que choviam sempre que ela se mexia.

E então Webs atacou com sua lança, acertando na asa do monstro que gritou irritado, mas não machucado, Webs quase foi acertado pela fúria cega daquela coisa. Em seguida quem tentou arriscar foi o Lucas, mas ele nem mesmo conseguiu chegar perto, desviou de uma investida do rabo mas não viu quando o mesmo rabo voltou o fazendo ser jogado de cara com o chão, desmaiando ali mesmo, tendo que ser rapidamente resgatado por Laís que estava no canto ajudando San a se esconder ainda fraco.

O monstro avançava feroz, enquanto a risada esganiçada de alguém em suas costas vez ou outra lhe dava instruções, eu me escondi, esperando uma abertura, uma mínima chance, e então eu vi.

Em um momento, enquanto me escondia ao lado de uma cama de colchão d’água, o basilisco ficou de costas para mim e pude ver, a figura de um homem de longos cabelos brancos e desgrenhados, de roupas sujas e grossas se mostrava, e a barba prateada com pontos claros, me fizeram perceber imediatamente que aquele era o mesmo mendigo que estava do lado de fora da loja, nos observando, estudando.

Vigiando.

Então eu ataquei, avancei, pulando nos colchões para pegar impulso e fazendo uma acrobacia linda no ar, e quando minha espada estava a ponto de acertar aquele homem pelas costas, ele se virou e sorriu, e quando dei por mim estava em cima do colchão d’água, sendo apertado por uma pata grande de galinha.

Ela pressionava meu peito como se não fosse nada, e não importa o que eu fizesse não conseguia me desvencilhar, as pontas afiadas da garra furaram o colchão e podia sentir a água correr pela superfície molhando minha roupa inteira. Ele me afundava mais e mais, enquanto meus irmãos o atacavam incessantemente, a água já havia subido bastante no pequeno buraco que ele me prendia, e eu estava me afogando.

A água turvava minha visão e invadia minhas narinas quando tentava respirar, minha garganta ardia, meu pulmão estava doendo e meu corpo começava a amolecer pelo cansaço de lutar contra água e contra o peso do enorme pé de galinha/dragão.

Eu conseguia escutar os gritos dos meus irmãos, eles me chamavam, imploravam que eu lutasse, que eu ficasse com eles. Mas o cansaço estava se apoderando de mim, que maneira ridícula de morrer e perder uma luta, não eu não iria aceitar aquilo, de forma alguma. Por muito tempo eu não pude fazer nada, eu estive de mãos atadas.

Mas dessa vez era diferente. Eu sou um filho de Apolo, o seu herdeiro, e um herdeiro da luz não foge.

 

[...]

Em uma luz tremeluzente de uma fogueira, jovens estavam reunidos, seus olhares caídos e expressões melancólicas definiram bem o clima que se apoderou do pequeno lugar.

Seus corpos repletos de machucados, não pareciam se incomodar com a dor das feridas, o que lhes incomodava era aquele pano.

O que lhes pesava como se fosse o peso do céu inteiro, era aquele pedaço de tecido amarelo com o símbolo de um sol grego.

Aquela mortalha que queimava devagar, sendo quase acariciada pelas labaredas da grande fogueira, era o que realmente machucava cada um deles.


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