Depois de Você escrita por Haru


Capítulo 1
Depois de você




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Depois de Você

— Traz mais um, por favor... — Kin fez um gesto fraco e desengonçado com dois dedos e pediu outro copo de tequila ao barman.

Estava com o rosto deitado no braço, debruçada sobre o balcão de madeira. A seu lado, dezenas de copinhos de vidro caídos, muitos deles ainda cheios de bebida até a metade, mal terminados. Seus cabelos, naturalmente loiros e encaracolados das raízes às pontas, fediam a álcool, seu vestido negro de alças finas com saia rodada também. Sua pele clara fora marcada pelo sol debaixo do qual ela andou para chegar até ali, estava vermelha. O castanho escuro de seus olhos mal apareceu, ela os manteve fechados desde o instante que se sentou.

O sepultamento de Arashi, seu marido, aconteceu há quase duas horas, sob o mais intenso sol que brilhou sobre o reino naquele ano. Muito embora bilhões de pessoas quisessem prestar um último tributo a ele, pois seu sacrifício salvou a Terra da destruição, o funeral foi restrito à família e aos amigos. Kin não estava presente. Seu irmão, sua cunhada e suas amigas bem que tentaram fazê-la ir, apareceram na sua casa pela manhã bem cedo, mas ela pediu um tempo sozinha, prometeu estar lá e não foi. Não tinha fibras para assistir o enterro dele. A pessoa que mais amou na vida.

"Adeus, amigos. Obrigado por tudo. Sejam fortes e nunca desistam", foram as exatas últimas palavras dele. Elas ainda ecoavam pela sua mente, voavam como urubus à espreita de uma carne morta para atacar. Queriam o seu coração, queriam que Kin pensasse sobre elas e trouxesse à consciência um fato que ela ainda não havia aceitado: o que nunca mais veria o amor da vida dela. Elas conseguiram. Ser forte? Nunca desistir?, ironizava em pensamentos os derradeiros pedidos de seu esposo, com quem foi casada só por três anos antes da recente morte dele. Como eu vou ser forte sem você, meu amor?, perguntou a si mesma, como se estivesse cara a cara com ele. Lágrimas desceram de seus olhos. Você é a minha força. Era.

O dia que se conheceram, a idade que tinha quando soube que o amava, a declaração de amor, o primeiro beijo. O pedido de namoro, o de noivado. O casamento. Estava tudo tão vivo em sua memória. Parece até mentira. Uma dor dilacerante consumiu seu coração, o desespero completo a dominou. Estava prestes a gritar quando o barman trouxe o copo que ela pediu. Deitou a cabeça para trás e bebeu tudo num só gole, depois voltou a deitar o rosto no braço.

Estavam no baile de máscaras da festa de aniversário da princesa Minna quando Arashi disse que a amava pela primeira vez. "Eu te amo", ele disse. "Estou apaixonado por você. Aconteça o que acontecer esta noite, nunca se esqueça disso". Ele mesmo, toda virada de ano após começarem a namorar, recordava-a desse dia, depois recitava as mesmíssimas frases que lhe disse naquela noite, sem tirar nem pôr uma letra.

Quebrou o copo com a mão, sentiu o sangue derivado dos cortes escorrer por seus pulsos. Esqueceu-se que estava no meio de uma gravidez e que isso a tornou frágil como uma humana. Por isso não estava lá lutando ao lado dele. Por isso ele morreu. Se estivesse lá, no auge de suas forças, Arashi não teria morrido. Não devia estar bebendo tanto. Na verdade, considerando o trauma emocional de vê-lo morrer sem poder fazer nada e o tanto que bebeu, seria um verdadeiro milagre se seu bebê ainda estivesse vivo ou ele se nascesse sem problema algum.

Eu não pude nem dizer adeus. Perdeu seu melhor amigo, aquele de quem ela não escondia nada, alguém que viu seu melhor e seu pior e mesmo assim escolheu ficar. Apoiou a testa no balcão e deu um murro tão forte nele que todos os copos caíram. Mentiroso, a raiva tomou o lugar da dor em seu coração. Jurou que nunca me deixaria. Maldito. Disse que seria para sempre e se sacrificou, deu a vida por bilhões de desconhecidos. Eu te odeio, praguejava, amaldiçoava em pensamentos o dia que o conheceu. Seu maldito, não devia ter morrido, enfurecida, preparou-se para ficar de pé. Você escolheu a morte.

Fez um movimento tão desajeitado para trás que teria sofrido uma queda violenta da cadeira se Haru, seu irmão, não a tivesse segurado. O ruivo estava de terno, gravata e chegou junto com Yue. Após deixarem o cemitério, a procuraram por horas e só a encontraram porque alguém do bar lhes avisou que ela estava ali.

— Calma, sou eu. É o Haru! — Ele dizia, pois Kin, abraçada a ele, ainda se debatia. Só parou depois de descobrir quem a continha.

— Tequila? É sério? Sabe que não deveria estar bebendo, você está grávida! — Yue gritou com ela. Costumava ser a garota calma e compreensiva do grupo, mas há poucas horas enterrou um de seus melhores amigos e depois caminhou sem descansar, tudo isso em meio a um calor fenomenal, não estava com paciência para nada. — Você vai pra um hospital agora!

Segurou Kin pelo braço com força, atitude que impressionou até Haru. A loira se soltou, lhe deu um empurrão e vociferou contra ela, dizendo coisas das quais se arrependeria para sempre de ter dito:

— Está irritada comigo?! Que cinismo! Deveria estar com raiva de você mesma! Estava lá com ele, nos últimos momentos dele, e não fez nada para detê-lo! É uma fraca, não serve pra nada! Você é uma das principais culpadas-

Yue partiu para cima dela com os olhos congestionados de lágrimas e o coração queimando de fúria, não a deixou terminar de falar. Cadeiras, mesas voaram, pessoas assustadas se levantaram de seus lugares, ninguém sabe o que teria acontecido se Haru não tivesse entrado no meio e a contido.

— Vagabunda! Eu vou te matar, sua desgraçada! Vadia miserável, eu vou acabar com a sua raça! Filha da puta! — Yue esbravejava, histérica, ensandecida, até sua voz estava irreconhecível, deturpada pelo choro e pela força dos gritos. Haru quase não conseguia segurá-la, ela tentava alcançar Kin mesmo detida por ele, lutava para passar por Haru como se do outro lado houvesse um odioso monstro.

— Yue, para! Por favor! Yue! Para! Yue! — Haru bradava, tentando fazê-la recuperar o controle. Estava apavorado, nunca viu a amiga assim. Quando finalmente conseguiu que ela parasse de tentar matar Kin, a abraçou, olhou nos olhos e disse: — Se controla! Isso não é verdade, essa não é a Kin falando!

Yue deitou o rosto no ombro de Haru e chorou compulsivamente, chorou como nunca. Kin tinha razão, não estava com raiva dela — para ser franca, estava com raiva de tudo e de todos, menos de Kin. Se odiava por ter ficado parada olhando Arashi morrer. O amava como se ele realmente fosse o seu irmão e não pôde fazer nada por ele. O perdeu para sempre. Irmão, deu uma série de socos fracos no peito de Haru, recordando-se dos conselhos, das brincadeiras, das festas, das batalhas, das vezes que Arashi a salvou da morte. Quando a salvou de si mesma. "Você é minha irmã", Arashi lhe disse uma vez, enquanto a abraçava. Depois de beijar sua testa, ele completou: "Isso não tem nada a ver com sangue. Você sempre vai ser minha irmãzinha."

Assim que Yue se acalmou, Haru catou a tiara preta do chão, colocou-a nos cabelos azuis claros dela e a beijou na testa. Kin voltou a ser o centro das atenções: desmaiou repentinamente, seu abdômen e seus pulsos sangravam em abundância. Haru a tomou nos braços e, com suas grandes asas douradas, a levou literalmente voando para o pronto-socorro mais próximo.

Vários meses depois...

Por motivos desconhecidos pela medicina, a filha de Kin nasceria no tempo correto e com a mais perfeita saúde. Foi no dia do nascimento, na sala de parto, que as coisas se complicaram de verdade. Ninguém pôde estar com Kin. Já que o pai da criança estava morto, Haru seria aquele a ter permissão para ficar com ela na sala durante o trabalho de parto, mas ele estava fora da Terra há semanas e não retornara ainda, ninguém sabia dizer quando ele voltaria. Kin nunca se sentiu tão sozinha. Nunca realmente esteve tão só. As enfermeiras e a obstetra tentavam lhe dar forças, diziam-na para seguir em frente, mas a loira, tudo o que gritava em resposta, era a mesma coisa.

— Não posso fazer isso sem ele! — Ela avisava, entre os gemidos causados pela dor das contrações. Inclinaram a maca forrada com lençol branco, deitaram-na nela, vestiram-na com um camisolão azul escuro e arreganharam suas pernas. Parto normal. Kin estava naquilo há tantas horas que seus cabelos pingavam de suor, que sua pele, do agradável e macio branco costumeiro, mudou para um vermelho assustador. As dores das contrações a atacaram novamente, dessa vez com o dobro da potência. — Eu quero o meu Arashi, meu marido! Chamem o Arashi, eu não vou fazer isso sem ele!

As profissionais não sabiam mais o que fazer, a retalhadora se recusava a dar luz sem o esposo, que, como já sabiam, estava morto. Nem o irmão dela podia estar ali para pelo menos tentar convencê-la a ir adiante. Em dado momento, se aquietaram e pensaram. Foi quando Shiori, cunhada de Kin, entrou pela porta. Ela andou apressada até a maca de Kin, se ajoelhou e a tomou pela mão, em prantos.

— Vamos lá, Kin! Você precisa fazer isso! — Lhe implorou.

— Não, não dá! Eu não posso fazer isso sem ele! — Kin retrucou. — Isso está errado, era pra ele estar aqui comigo! Não posso fazer isso sozinha!

Shiori retirou a máscara e a touca hospitalar para que ela visse um rosto amigo em sua completude, seus compridos cabelos negros caíram sobre seus ombros.

Você não está sozinha! — Corrigiu a futura mamãe, segurando com mais força a mão dela. Seus olhos azuis claros, idênticos aos de Arashi, foram de encontro aos dela, emanaram uma energia tão positiva que encheu a loira de confiança.

Por alguns breves segundos, Kin viu Arashi em Shiori. Isso lhe deu forças para continuar. Dali para o nascimento da menina foi uma questão de tempo, Shiori não saiu da sala por nada, nem Kin e muito menos as médicas deixariam-na sair. Ficou com a amiga até o fim. O bebê veio ao mundo poucas horas depois, suscitando o primeiro sorriso de Kin e Shiori em meses, trazendo um raio de felicidade que as duas jamais imaginaram que veriam brilhar outra vez. Eu sou tia, a morena segurou e abraçou a chorona recém-nascida enquanto Kin descansava ofegante. Está vendo, irmão?, Shiori alçou um pouco a sobrinha e olhou para cima. Se emocionou. Obrigada, agradeceu, sentindo lágrimas descerem sua face. Nós vamos ficar bem.

A mãe e a tia da pequenina não conseguiam se desgrudar dela, então as enfermeiras as levaram para um quarto onde Kin e ela poderiam descansar e mimar a criança à vontade. Yue e Naomi logo chegaram, trazendo flores, presentes, sorrisos, abraços, felicitações. Durante um tempo pareceu que as coisas tinham voltado a ser como eram antes. Mas não voltaram. Tudo mudou. Depois de encerrar os carinhos nos poucos e rasos tufos de cabelo da bebê nos braços de Kin, Yue pôs as mãos dentro dos bolsos da saia jeans azul clara que vestia e sem querer fez uma pergunta que recordou todas disso:

— E aí, que nome vai dar pra ela, mamãe?

Arashi sempre sonhou com ter uma filha. Uma vez Kin lhe perguntou que nome daria a ela, ele respondeu instantaneamente. De volta ao presente, a loirinha encarou as paredes verdes-água do quarto, ajeitou-se na cama e deu um beijo na testa da bebê. Fitou os olhos cor de mel de Naomi com um sorriso amargo no rosto, ela estava sentada a sua frente. Em seguida olhou para a camiseta branca de Yue, que ficara de pé a seu lado. Por fim, fixou-se nos traços faciais de Shiori. Demorava tanto para falar porque, uma vez que revelasse o nome, não pararia mais de chorar.

 


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