Serpente escrita por MademoiselleChociay


Capítulo 3
Lua cheia em noite fria




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Um solavanco me acordou. Doze horas depois, finalmente pousava em solo brasileiro. Se parti com o sol nascendo, agora observava ele se pôr. 

Senhores passageiros, permaneçam sentados e com os cintos de segurança afivelados até a parada completa da aeronave. Obedeci, embora metade do avião já estivesse de pé. Não tinha pressa. Nada me esperava com urgência. 

O caminho de táxi foi silencioso, como se o educado motorista lesse em minha face que não queria conversar. Tocava MPB numa rádio, baixinho. Da janela, aos poucos reconhecia as pequenas e ainda surpreendentemente arborizadas ruas do Bairro das Pitangueiras. Apontei ao motorista:

—- Pode estacionar frente àquele portão branco, s’il vous plaît.¹ 

Tive ajuda do respeitoso anônimo para deixar as malas na calçada, deixei uma gorjeta muito mais pelo silêncio que pelo serviço. E encarei, soturna, os altos muros da Mansão Chociay antes de finalmente abrir os portões. 

Havia o caminho de pedras, que eu enfrentaria sozinha. Como os gritos de todo o Limoeiro, que assisti do alto do salto de minhas botas e enfrentei com um riso sardônico e minha melhor soberba: era o troféu por derrotar a dona da rua atacando onde mais dói -- no coração.

Très bien². 

Malas deixadas ainda na entrada. Deixaria para arrumar depois. Subi as escadas até meu antigo quarto -- aquele quarto, onde tudo começou. Me atirei à cama empoeirada, jurando que ainda havia um resquício de cheiro, de lembrança.

“Tem celteza que seu pai não vai chegar?”, ele havia perguntado, trocando as letras como em todos os momentos de nervosismo. 

Oui. Non se preocupe”, sussurrei, fechando a porta atrás de mim. Sem esperar qualquer outra afirmativa, eu desabotoava minha blusa para o olhar ansioso de Cebola. Ele não esperou até que eu terminasse; me ergueu pela cintura e assim me levou à cama. E, extasiado, eu podia perceber o quanto ele se perdia mais a cada peça de roupa que se deixava -- e o quanto queria se perder mais, também. Porque eu podia facilmente usar de todos os meus artifícios: meu corpo, meus toques, meu olhar profundo prendendo o seu. E eu faria tipo cobra, o envenenaria pouco a pouco; tal ópio, eu seria a droga que ele procuraria primeiro para relaxar, depois por abstinência, e por último por não saber mais viver sem mim. 

“Não devíamos ter feito isso”, sentado na beira da cama, ele balançava a cabeça e sussurrava consigo mesmo. 

“Foi ruim?”, me fiz de desentendida, puxando o lençol para me cobrir. 

“Não se faz de sonsa. Eu namolo e você sabe”. Cebola evitava me encarar. A culpa devia doer, eu imaginava por não a sentir. 

“Não parrecia preocupado com isso até há pouco”. Fingi não me importar. Deixei o lençol, me pus de pé, acendi um cigarro na sacada. A noite estava linda, a lua brilhava sobre minha pele, a brisa fresca me arrepiava. Era uma boa sensação. De costas, ouvi Cebola suspirar. O sutil barulho de passos no chão de madeira indicava sua aproximação.

Très bien, chéri. Pode voltar parra a namorrada, fingir que non existo, pode continuar brincando de casinha e ninar o coelho de pelúcia dela”. Traguei o cigarro, soltando a fumaça devagar. “Mas seu corpo non vai esquecer, e você vai querrer voltar a este quarto. Você vai lembrar de moi, Cebola…”.

E um arrepio subiu pela linha da minha coluna. Era sua mão, quente, vindo tocar outra vez em minha cintura. Um suspiro, outro toque, eu não poderia admitir mas me sentia perdida também. Traguei o cigarro como se não ligasse para os silenciosos e já de antemão arrependidos beijos em meu pescoço -- pois eu tinha medo de sentir tanto quanto ele, sim, e tinha medo de também ter gostado, medo de me apaixonar e ainda ter que encará-lo voltar para a Mônica no dia seguinte. 

Eu tinha medo de estar sozinha. E esse medo voltava agora, olhando para o lado vazio da cama como quando acordei de manhã e ele não estava mais lá. Talvez minha cena em Paris, minha tentativa de fuga, talvez tudo isso fosse só uma vingança por aqueles minutos dos quais tanto desdenhei. Talvez eu quisesse deixar em Cebola aquela mesma angústia. Talvez eu quisesse fingir que minha própria angústia nunca existiu. 

Tomei o cuidado de secar minhas lágrimas antes de cochilar.

 

 


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Notas finais do capítulo


1 - s'il vous plaît - por favor
2 - Très bien - Tudo bem
3 - moi - mim



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