Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 103
Circo


Notas iniciais do capítulo

E lá vamos nós para mais um capítulo longo, porém necessário.
Se preparem para passar ódio.
Boa leitura.
PS.: Tem a repetição do momento em que Cavendish atira na Kat, está tudo em itálico. Para quem se lembra, pode até pular, para quem não se lembra, vem agora com a reação de Katerina, vendo o que aconteceu com ela.



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E, depois de muito suspense, o julgamento foi iniciado. Foram escolhidos os jurados para o caso. Eram 11. Só esse ato levou a manhã inteira, vez que a defesa tentava recusar todas as mulheres, e essa foi a primeira derrota para eles, pois a maioria foi feminina. Eram sete mulheres contra quatro homens. Com o recesso para o almoço, esperei que toda a defesa saísse para que eu pudesse acompanhar meu pai e minha avó até o restaurante mais próximo. Não estava necessariamente com fome, porém, eu não sabia até que horas ficaria presa aqui na parte da tarde, então era melhor comer algo.

Achei que minha avó comentaria sobrea presença de Matti, mas nem uma palavra foi falada sobre isso. Nem dela e muito menos de meu pai. O assunto do almoço foi a relutância de Liv em andar com um guarda-costas.

Como o recesso era somente de uma hora, logo voltamos para o Tribunal, Sombra 2 sempre dois passos atrás de mim, e me avisando caso fosse hora de andar mais rápido ou se era melhor esperar um pouco, como no momento em que estávamos próximos às escadas de entrada e ele nos pediu para reduzir o passo e assim evitarmos de subir lado a lado com Dempsey e Eleanor.

A sessão foi reiniciada pontualmente e posso dizer que agora que tudo começaria de verdade. O primeiro ato da tarde foi a leitura da denúncia, depois da defesa prévia que estava no processo, por fim, as provas. E estas foram mostradas em detalhes para os jurados e todos os presentes. Estranhamente, a grande maioria das provas foram aquelas que eu encontrei, ou melhor, o pessoal da Pesquisa do Escritório do Pacífico achou no computador de Cavendish e nos arquivos da empresa.

Os documentos das transferências de ativos da empresa, as contas abertas sem conhecimentos dos titulares.

Acontece que tinha mais coisa, foram mostrados outros dados tirados dos computadores pessoais e do escritório de Cavendish que informavam que os desvios de fundos datavam de muito tempo. Ao que pude ler, vinham de mais de vinte anos.

A NT&S vinha sendo roubada por todo o tempo em que Cavendish foi Vice-Diretor.

Quando o Promotor enfatizou esse ponto, Cavendish fez questão de dizer que ele não sabia desses valores. Falou tão alto, que a juíza o mandou ficar calado ou ele seria retirado da Corte.

Depois de todos estes documentos, passaram para o vídeo que eu gravara. Claro que esta seria a prova cabal, ou pelo menos aquela que traria o maior impacto, pois documentos sempre são tediosos, mas um vídeo? Com detalhes e confissão? Claro que não! E quando a luz da sala diminuiu, para que todos tivessem uma boa visualização do conteúdo que seria transmitido, foi possível sentir a expectativa de todos.

Eu quis virar o rosto, sabia como acontecia. Assim, fitei o teto, enquanto as cenas eram mostradas.

A primeira coisa que se podia escutar do vídeo eram os meus saltos ecoando na salinha silenciosa, depois um barulho de papeis e eletrônicos sendo mexidos.

Minha mente me levou a esse exato momento, quando coloquei o meu celular na janela e liguei o tablet, usando-o como armadilha.

No vídeo, minha respiração ficou ruidosa, demonstrando a minha ansiedade, e logo em seguida há um estrondo, a porta sendo arrombada e escuta-se claramente a voz de Cavendish:

— Olá, Katerina! Mary me falou que estava aqui...

Passos são ouvidos, e a porta é trancada, o som de algo se quebrando ecoa no auditório silencioso, era o momento em que Cavendish quebra a maçaneta, nos trancando dentro da sala.

E, mais uma vez, é ele quem fala:

— Você tem sido uma pedra no meu sapato há muito tempo... Eu sabia que você iria arruinar os meus planos quando te vi correr dentro dessa empresa e dizer que se sentaria na cadeira do CEO um dia. Então eu tive que bolar um plano para me livrar de você... o problema era como?

Enquanto o discurso de Cavendish era ouvido e todos assistiam à cena, minha cabeça começou a doer violentamente. Respirei fundo para controlar a náusea.

E, ao fundo, o vídeo continuava:

Então, seus avós começaram a falar que você tinha talento para dois esportes. Hipismo e patinação... E foi quando eu pensei que estava com sorte, afinal, cavalos são perigosos e você parecia ser um tanto selvagem demais, ao invés de montar cavalos mansos, sempre queria os mais ariscos... foi aí que percebi que para chegar perto de você e da sua paixão por cavalos, eu teria que ir até Cambridgeshire e no Haras dos Spencer. Inviável. Sua mãe nunca foi a minha fã número um e jamais me deixaria ir até lá. Mas eu ia muito à Finlândia, principalmente no inverno, e um belo dia, Matti perguntou para Mina sobre seus treinos de patinação, e ela sem saber, me passou seu cronograma e falou algo bem interessante. Aquela que poderia ser a herdeira da NT&S não tinha um motorista. Ela ia embora para casa a pé depois dos treinos, mesmo sendo tão nova.

E, nesse ponto é possível ouvir a minha primeira reação, a respiração ofegante. O problema era que eu estava tendo as mesmas reações agora. Era como se fosse um deja vú...  e a voz daquele que tentou me matar era o pior dos sons... e não era possível parar a gravação.

Planejei um atropelamento perfeito. Um dia de muita neve e asfalto congelado... e, ninguém falaria nada. Conheço uma ou outra pessoa que não tem o menor problema em matar crianças... SÓ QUE VOCÊ NÃO MORREU!

O som dele batendo em algo me fez pular, e não só eu, foi possível ouvir outras cadeiras se arrastando.

Você ficou toda quebrada, em coma, entre a vida e a morte, mas resistiu e não só resistiu como se curou completamente. E agora o meu problema aumentava, pois você não tinha mais nenhuma distração, nenhum hobby que pudesse te tirar do caminho até a cadeira do CEO. Então eu deixei o “acidente” esfriar, cair no esquecimento, sua família não quis que abrissem uma investigação, mas a Polícia Finlandesa fez o papel dela muito bem, investigou até onde conseguiram, ou tiveram pistas, e quando o carro foi encontrado queimado e no fundo de um lago, na fronteira entre Finlândia e Rússia, a única conclusão possível, foi que um motorista russo, provavelmente bêbado e sem carteira, foi o culpado pelo atropelamento.... aceitei esse resultado e convenci o seu avô a não mexer mais com isso, afinal, para que ficar fazendo a pobre Katerina se lembrar de algo tão doloroso, não é?

Uma pausa no discurso do vídeo, a sala toda em silêncio, exceto por mim, eu não conseguia respirar normalmente, e todos os presentes escutaram o meu ofegar.

Eu precisava sair dessa sala ou iria desmoronar. Ao meu lado, uma das assistentes da acusação colocou um copo de água na minha frente, mas eu não conseguia me mexer. Tudo o que eu queria era que a gravação acabasse logo, para que eu parasse de ver as imagens passando em meu cérebro.

Mas querer não é poder e o vídeo continuou:

Você não me dava nenhuma oportunidade de me ver livre de você, nunca foi rebelde ou uma adolescente que se metia em confusão, até que uma outra paixão de família começou a falar mais alto. O automobilismo. Só que você nunca estava sozinha. Jamais. Sempre tinha o seu avô ou qualquer outra pessoa por perto e eu não queria efeitos colaterais... tinha que ser só você. Assim, comecei a te aturar aqui dentro, você entrou com doze anos e logo todos gostaram da neta do Fundador da empresa... e foi crescendo aqui, até porque merecia. Porém cada vez que te promoviam, eu sabia que o meu empreendimento paralelo estava arriscado. Confesso que você me fez ter a vontade de aposentar mais cedo e sair com o que eu já tinha conseguido, você quase conseguiu isso. Mas aí, você, em um belo dia de início de verão, saiu falando no telefone sobre ir correr em Spa-Francorchamps, alugar um esportivo e dar voltas no seu circuito favorito da Fórmula 1.

— Você sabotou o carro. – Falei junto com a gravação. Era como se eu estivesse vivendo tudo novamente.

Pois é, e mais uma vez, você não morreu. E eu desisti de tentar me ver livre de você. Sabia que você tinha acabado um relacionamento e, coincidentemente, o seu ex era bem parecido com meu sobrinho Lucca... foi a oportunidade perfeita. Eu daria um emprego para ele, que nunca foi muito chegado em trabalhar, mas quando disse que ele poderia se divertir com você, em todos os sentidos, ele gostou. Até porque, vamos ser francos, você não é de se jogar fora. Tudo o que Lucca tinha que fazer era te conquistar, mas eu precisava da aprovação de Matti, e ele, ganancioso como é, não viu problemas em unir as duas famílias, afinal, concentraria quase todas as ações da S/A na mão de poucas pessoas. Bolamos o plano e apresentamos vocês dois. E você, doce Katerina, caiu como um patinho. Claro que eu tive que insistir com Lucca que você valia o esforço, já que você é um tanto tradicional demais, mas ele até que gostou, quando começou a ter todos os benefícios do relacionamento. E tudo parecia que ia bem, de algum modo eu e Matti entramos em consenso que você não deveria assumir a cadeira da Direção, afinal, de casamento quase certo, você deveria deixar que seu marido assumisse a cadeira e você tomaria conta dos seus filhos. O fato de você amar seus sobrinhos e não se importar de tomar conta de bebês foi uma qualidade que eu não esperava, mas que ajudou muito no plano, é claro. E quando você efetivamente aceitou se casar com Lucca, que só fez o pedido porque seria o Diretor da Empresa, eu efetivamente comecei a usar você para meus planos.

E a triste história da minha vida começava a ser contada para todos, eu achei que ficaria envergonhada de ter sido passada para trás, mas ao contrário disso, todo esse discurso, demonstrava que não era só Cavendish que era uma praga, meu avô também. E quando foi mencionado o casamento arranjado, foram ouvidos os “ohs” e alguns “não acredito” “não é possível”.

Minha voz é ouvida novamente, no momento em que eu demonstro já saber da conta bancária no Qatar, para Cavendish continuar o seu plano, caminhando para o ato final.

Sabia que você descobriria, ainda mais quando desmascarou Mancini. Entenda Katerina. Se o casamento tivesse acontecido, você ficaria viva. Eu te deixaria viva e casada e infeliz ao lado do meu sobrinho que te trairia com qualquer mulher que passasse na frente dele, tomando conta de seus filhos e ensinando meu sobrinho-neto a ser um CEO de verdade. Acontece que Lucca foi o vagabundo que ele sempre foi e te deu um pé na bunda. E você se tornou meu problema de novo. Até que Mancini começou a cavar lá em Los Angeles e quase achou os desvios de dinheiro, era hora de mandá-lo embora e colocar alguém lá. Alguém que não suportaria ficar longe da família, alguém com histórico de depressão grave que se mataria de trabalhar, literalmente se mataria...

A risada do desgraçado ao dizer que eu me mataria ecoou na sala, me enojou novamente, e não só a mim, na mesa de acusação, alguns advogados não seguraram a expressão de desgosto e, logo atrás de mim, pude ouvir meu pai trocando o apoio dos pés, e respirando fundo.

 Só que eu não me matei.— Eu falei na gravação. Minha voz estava mais forte do que eu me lembrava, e até tinha um tom de desafio.

Não. Você fez muito pior! Você se apaixonou e arranjou um cão de guarda. Com quase quatro milhões de pessoas em Los Angeles, você tinha que trombar justamente com um que sabe artes marciais, atirar e que virou seu protetor. E olha que eu mantive os olhos em você desde o início, monitorei seus passos, crente que você daria jeito de se acabar por si mesma, mas logo no seu terceiro dia de trabalho, você já estava dando uma carona para o tal do Alexander.

E foi aqui que eu realmente comprei a briga com Cavendish, pois dava para escutar na minha voz que eu defenderia Alex de qualquer um

E você fez o favor de contaminar a cabeça de meu avô contra ele?

Não, seu avô já tinha perdido a fé em você há tempos... ele nunca te perdoou pelo casamento fracassado. Afinal, é fácil culpar uma mulher nesses casos, ainda mais você, que sempre fez tudo para agradar seus pais e avós. Para ele, você o fez perder alguns milhões até o fim da vida, e nós dois sabemos que Matti não gosta de perder dinheiro. Assim, era mais fácil desfazer a sua imagem de santa, que ainda perdurava por aqui. Tentei espalhar a imagem e a história de que você nunca foi a santa que pintou ser, se com uma semana em Los Angeles já estava andando de mãos dadas com um ator. Só que você descobriu toda a armação do casamento e jogou na cara de seu avô. Ele perdeu o apoio da família, do Conselho e você ganhou forças, pois agora, você era realmente a vítima.

E foi nessa parte que me permiti ver o vídeo, e eu juro, não me reconheci ali, era possível ver em meus olhos o medo, eu sabia que algo aconteceria, mas eu estava decidida a lutar, tanto que desafiei meu opositor.

Isso deve ter te enfurecido em níveis inimagináveis, não? Afinal, eu sou a peça que você nunca conseguiu controlar, não é mesmo?

É, você é imprevisível mesmo. Sempre foi. Todas as vezes que eu achei que você iria me deixar em paz, você deu a volta por cima de uma maneira que eu até tenho que admirar. Você é persistente, você é uma guerreira, Katerina. Só que é uma guerreira na guerra errada. Lutando contra o exército errado. E agora você vai pagar por isso. Você foi uma adversária e tanto, tenho que admitir.

No momento em que Cavendish tira a arma de dentro do bolso interno do paletó, escutei meu pai se levantando da cadeira atrás de mim e alguns segundos depois a porta da sala batendo. Ele não tinha que ver ou escutar mais nada.

E a voz de Cavendish continuou.

Só que entenda. Ninguém fica entre mim e meu dinheiro. Nem você. Eu vou inventar uma desculpa para você ter me chamado aqui e para tudo o que vai acontecer. E como prova, vou mostrar os milhões em seu nome. No fim, a Santa Katerina, que sempre se deu bem com o pessoal de baixo, que foi tão humilhada e depois foi a protagonista de um filme de romance hollywoodiano, era a mais culpada de todos.

Eu virei meu rosto para não ver o final. Escutei o barulho dos tiros, meu tablet fora o alvo desses, e o de uma cadeira se arrastado.

Você brigou comigo. Tirou a arma que eu carregava e quando eu tentei por algum juízo na sua cabeça desesperada, a arma disparou e te acertou fatalmente. É assim que você vai morrer. Dessa vez você vai efetivamente morrer, Katerina. E eu vou me aposentar com muito dinheiro.

Eu abaixei a cabeça no tampo da mesa, era difícil de respirar, de acompanhar a cacofonia que vinha da tela e a voz do maldito.

Não tem onde correr. Não aqui. E nem adianta gritar, ninguém vai te escutar. E isso vai ser pela surra que você e seu noivinho deram no meu sobrinho também.

O Som de uma arma disparando é ouvido, assim como a risada de Cavendish, ele, não satisfeito de ter atirado em mim, ainda riu da situação. Se isso não era a comprovação da loucura desse homem, eu não sabia descrever o que ele era.

Mas esse não era o pior. O maior problema era que eu estava sentindo a dor novamente. Como se o tiro tivesse acabado de acontecer. Como se a bala ainda estivesse alojada em mim.

Respirei pesadamente, parecia que meu lado esquerdo parava novamente, pois meu braço ficou dormente, eu não tinha controle sobre a minha mão, parecia um peso morto colado ao meu braço.

 Tive que olhar para meu torso para ter a certeza de que não havia nenhum resquício de sangue ali, que não havia uma enorme mancha vermelha em minha roupa.

Agora é só questão de tempo. Hoje você não sobrevive! — Dizia o maldito na tela, e parecia que ele falava do presente também, pois eu estava começando a duvidar que eu fosse passar ilesa por esse julgamento.

Tudo isso por dinheiro? Você tenta me matar há anos por dinheiro?— Perguntava incrédula no vídeo que eu não conseguia mais ver. Eu conseguia me lembrar dessa cena claramente agora, e sabia qual era a resposta que ele daria, e esperava que suas próximas palavras fossem o prego em seu caixão.

E poder. Com você morta, logo sua família vai exigir que a empresa seja fechada, seu avô não vai querer isso, mas vai ceder em algum ponto e vai vender a participação dele para mim. E a maior empresa de importação e exportação de mercadorias, a Dona do comércio global de transporte em terra, ar e mar, será só minha.

Algumas pessoas ofegaram em seus assentos, e foi possível ouvir dedos voando por teclados... não sabia, mas deveria ter jornalistas aqui dentro. Já até conseguia imaginar as manchetes do dia seguinte! E a história continuava:

Se queria tanto poder, por que não fundou a sua própria empresa? Se virou?

Porque é mais fácil roubar dos outros do que criar o seu próprio negócio.

Levei minha mão ao meu peito, tentando controlar a minha respiração descompassada e a dor lancinante em minha cabeça. Tentei focar em algum ponto da sala e tudo o que vi foram borrões. Isso era um péssimo presságio.

Ao fundo, agora bem ao fundo mesmo, o vídeo continuava, as pessoas reagiam ao que viam.

São essas aqui que se quebraram todas, não são? Que tal isso?

Foi possível escutar o pisão que ele deu em minhas costelas. O som dos ossos quebrando. E, logo em seguida, o som de algo tentando forçar a porta que estava quebrada e o grito enfurecido de Cavendish.

Os momentos que eu não me lembrava de terem acontecido começavam.

Não. Você não pode ter tanta sorte! 

Os sons de tiros, da porta sendo forçada e o grito de ordem de alguém se misturavam, até que um som mais forte foi ouvido, a porta vinha abaixo de uma só vez.

Mesmo não querendo, tentei olhar para a tela, mal enxergava algo, mas achei que deveria ver isso.

Você?! Você conseguiu entrar dentro desse prédio? Alguém já chamou a segurança para te prender, mendigo?— Cavendish falava na direção de Alex que fora o primeiro a entrar na sala, pelo visto fora ele quem derrubou a porta.

Saia da minha frente!— Alex respondeu e logo me achou deitada no chão, a expressão de horror e medo em suas feições descreviam o que a câmera do celular não pegava.

Não, você quem sai...

Ele está aqui, porque eu liberei o acesso dele.— Entrava em cena minha avó, com seu tom de voz autoritário e determinado, assustando Cavendish, que, ao se preocupar com a presença da esposa do CEO, se esqueceu de tomar conta de si, e não percebeu o que Alex fazia, pois meu noivo, completamente fora de si, armou um cruzado de direita, acertando Cavendish com tanta força, que o velho foi chão logo depois de falar o nome da minha avó.

Alex sai da tela, provavelmente se ajoelhando ao meu lado, minha avó passa literalmente por cima de Cavendish e some do foco.

Kat... Kat fala comigo!— É possível escutar Alex falando comigo e logo em seguida eu dou um grito, o que desespera meu noivo que continua: – Não, Kat!! Desculpa, o que... o que ele fez com você?

Assistindo a isso, acabo por levar a minha mão direita em meu lado esquerdo, segurando minhas costelas.

Outras pessoas entram na cena, meu pai e Ian. Eu nunca soubera que Ian tinha entrado na sala, Cavendish começa a voltar a si e soltar vários palavrões dirigidos à Alex e a mim. Ele me chama de nomes que não são nada apropriados para se dizer em juízo e meu pai, simplesmente abaixa e o levanta pela gola da camisa.

Eu só não termino o que Alexander começou, porque quero te ver apodrecendo na prisão, seu desgraçado!

Só para depois empurrá-lo na direção de Ian, que dá outro soco no rosto dele, e depois o carrega, literalmente, pela porta.

A última cena do vídeo são os paramédicos que me socorreram e minha avó que nota o meu celular na janela.

Você conseguiu ter o sangue frio de gravar tudo, KitKat?— É o que ela diz antes de encerrar a gravação e a tela ficar preta.

O silêncio que caiu sobre a sala era tanto que só se ouvia o respirar fundo de alguém, tardiamente descobri que era o meu. Eu ofegava, buscando por ar, ainda achando que não conseguiria respirar direito por conta das costelas quebradas.

Tentei controlar a minha respiração, foi em vão, não tinha como não reagir ao que eu revivi nestes minutos. E, incapaz de continuar naquela sala sem acabar desmoronando de vez, tentei me levantar, só para me lembrar que não podia, pois precisava da autorização da juíza.

Graças aos Céus, Neville e Granger notaram meu estado e pediram um recesso de quinze minutos.

— Concedido. E se a vítima não puder continuar pelo resto do dia de hoje, a sua ausência será mais do que justificável.

A Defesa protestou na hora, dizendo que a minha presença era imprescindível.

A fala da juíza?

— Depois de tudo o que vimos aqui, a defesa ainda insiste nessa tese?

O tribunal entrou em recesso, e eu pude abaixar a minha cabeça no tampo da mesa. Logo escutei a voz de minha avó.

— Ficar com a cabeça baixa não te fará bem, KitKat. Tente levantá-la devagar, respirando fundo.

Demorei um pouco e quando fiquei relativamente estável, caí na besteira de olhar para o outro lado, Matti e Dempsey, assim como alguns advogados da defesa, me olhavam com feições de deboche.

  Devagar saí da sala e fui ao banheiro, minha avó do meu lado sempre. Joguei um pouco de água no meu rosto, tentando limpar o suor pegajoso que estava em minha testa e depois aproveitei a toalha de papel úmida e limpei meu pescoço.

— Isso foi pior do que eu pensava. – Falei desolada.

— Você ainda aguentou muito, minha querida. Eu fechei meus olhos por quase todo o tempo, mas é impossível de não se escutar.

— Pergunto-me o que a defesa vai tentar... não tem como ir contra aquilo!!

— Você sabe que foi gravado sem o consentimento de Cavendish, eles vão tentar fazê-lo ser a vítima.

— Vítima? Quando ele atira em tudo e ainda pisa em mim?

— Pelo que ouvi, vão querer culpar Alex e Ian.

— Os dois deveriam ter batido com mais força... o velho está inteiro. – Murmurei em desgosto e levantei a minha cabeça.

— Melhor?

— Sim. Só preciso de água e algo doce. Para a dor de cabeça só o remédio que tenho em casa.

— Vai para casa, KitKat.

— Não! E dar àqueles urubus a chance de tentarem anular o julgamento só porque eu não pude continuar pelo resto do dia? Jamais. Creio que não deve demorar muito hoje. Começar os interrogatórios é inútil e perda de tempo, porque terão que repetir amanhã.

E foi exatamente isso que aconteceu. Depois que algumas outras provas foram apresentadas, como as manchetes dos jornais do dia que se seguiu à prisão de Cavendish, a sessão foi encerrada, para retornar às 08:00 no dia seguinte, já com a oitiva das testemunhas.

Meu pai estava sentado do lado de fora da sala, em um banco de frente para a porta. E, assim que saí, ele pediu desculpas por não ter conseguido assistir a tudo.

— Queria ter eu essa possibilidade. Teria me poupado uma enxaqueca. – Comentei e deixei que ele me guiasse para fora do prédio, onde o carro já nos esperava.

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Quando, enfim, cheguei em casa, tudo o que eu queria era tomar um remédio para dor de cabeça e depois dormir até o dia seguinte. Eu precisaria estar mais do que inteira para poder encarar o que me esperava nos próximos dias.

Tinha acabado de tomar um banho e estava na cozinha, decidindo se tomaria o remédio tendo ou não comido algo, quando Alex chegou. Ele mal pisou em casa e já foi me chamando.

— Na cozinha. – Disse sem emoção. Agora eu seria obrigada a comer algo, ou meu noivo começaria um discurso de horas sobre como eu não posso pular as refeições ainda mais quando vou tomar um remédio tão forte.

Ele veio até devagar e antes de me perguntar algo, testou o ambiente.

— Tão ruim assim?

— Não é que foi ruim... – Tentei explicar a essência do que estava sentido. – Eu não estava nem um pouco preparada para reviver tudo o que está naquele vídeo.

— Passaram para todos?

— Sim. Tentei ignorar a maior parte, mas parecia que acontecia tudo novamente. Não foi agradável. E ainda pior ao me deparar com os sorrisos dos adversários.

— Além de você sabe quem, mais quem apareceu?

— Pateta 3 e sua namoradinha roubada do irmão e Pateta 1.

— Matti estava lá?

— Sim... ele estava. A presença dele pareceu não incomodar meu pai e minha avó, mas me incomodou bastante. Eu não achava que ele fosse me apoiar, longe disso, mas ele estar presente e do lado da defesa! Para mim foi demais.

— Matti é uma pessoa inteligente e interesseira. – Alex começou. – Ele deve que vai aprontar alguma.

— Como? Ainda mais dentro do tribunal?

— Não sei, Kat. Vindo de quem mandou bater nos próprios bisnetos, espero qualquer coisa.

Fiz uma careta. Alex tinha razão em cada palavra.

— Algo de extraordinário para me contar?

— Não. Esse dia foi mais para leitura do processo. Coisa bem monótona para quem não entende de leis, mas necessária para os trâmites. Amanhã já começam as oitivas. Primeiro as da acusação e depois as da defesa.

— Se é que tem alguém... – Alex falou debochado.

— Pior que é capaz de encontrarem. Sempre existe o vendido que diz que o culpado confesso é boa pessoa.

— Mesmo com aquele vídeo?

— Você viu? – Questionei abismada.

— Sim. Quando a sua avó desligou a câmara e antes de entregar para a polícia, ela salvou uma cópia, para saber o que realmente tinha acontecido. Ela, seu pai, Ian, Dona Diana e eu assistimos tudo.

— Isso explica ainda mais a saída do meu pai da sala de audiência...

— Você deveria ter visto como ele ficou quando assistiu pela primeira vez. Se o Pateta 2 não estivesse em um hospital, algemado, ele teria ido até lá para matá-lo.

— Você deveria ter batido mais forte, um soco foi muito pouco.

— Estava mais preocupado com você do que com ele.

— Não deve ter sido nada fácil para você... – Deixei o restante da frase no ar.

— Não gosto de me sentir impotente diante de uma situação de vida e morte... e, ali, não tinha o que eu pudesse fazer, pois nem tentar te estabilizar eu podia, pois o desgraçado tinha pisado em você. Mas vamos mudar de assunto?

— Claro. – Concordei de bom grado. - Como foi hoje? Confirmaram a redução do tempo de gravação?

— Só vamos saber mais para frente, se o ritmo das gravações continuarem como estão nessa semana, é quase certo. Mas, nunca tenha nada como garantido em um set. – Avisou. – E, hoje, vou precisar dos seus serviços de ajudante de leitora de script. Amanhã vamos gravar uma cena mais longa, e eu quero a sua ajuda com as falas.

— Isso é muito melhor do que ser o seu saco de pancada particular. Ainda não estou 100% bem de ontem. – Fingi uma dor na lombar que eu não tinha e omiti a dor de cabeça que sentia. Seria bom me distrair com algo tão diferente da minha realidade.

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O segundo dia de julgamento começou um tanto mais tranquilo, as testemunhas iniciais, não tinham muito a dizer sobre o que efetivamente tinha acontecido dentro daquela sala, sabiam sobre o caso de fraude, mas esse seria outro processo, que eu não teria que participar, ou, pelo menos, seria apenas uma testemunha, e ficaria muito feliz em afundar Cavendish.

Assim, alguns assessores e secretárias passaram pelo tribunal na parte da manhã. A parte interessante ficou com Sarah Clarkson, que era a secretária de Cavendish:

— Tudo ia bem, até que o casamento não aconteceu e a Senhorita Nieminen foi mandada para Los Angeles. A partir desse momento, começaram a acontecer coisas que nunca tinham acontecido até então. Como relatórios desaparecidos, documentos apareciam na minha mesa com a assinatura alterada e o mais estranho, começaram a chegar cartas de um banco do Qatar.

— Mais alguma coisa, Sra. Clarkson?

— A cada dois dias chegava uma remessa de Los Angeles, e como era o meu trabalho abrir para saber quais documentos eu passaria diretamente para o Sr. Cavendish, abri a caixa. Era vários CD’s. Achei estranha a forma como mandaram os documentos, mas não questionei e abri no meu computador. No final eram gravações das fitas de segurança do Escritório de Los Angeles. E todas elas eram filmagens da Srta. Nieminen. Não perguntei para que serviam, só coloquei na mesa do meu chefe, mas eu achei tudo muito estranho.

— Você, alguma vez, escutou algum assunto que envolvia a Srta. Nieminen?

— Bem... todos comentaram sobre o casamento. Algumas pessoas colocaram a culpa nela, outras riam, dizendo coisas que não repetirei aqui, porque, bem, não eram educadas. Depois, quando ela não apareceu no escritório por mais de quinze dias, teve gente que falou que ela tinha tentado suicídio, que ela era instável psicologicamente, por isso o casamento não aconteceu. E, por muito tempo, essa foi a versão oficial da história, tudo acabou, porque a Srta. Nieminen tinha, depressão, e o Sr. Dempsey não queria esse problema para ele. Mas não era a verdade, pois eu já tinha visto Dempsey com outras mulheres. Culparam a mulher porque era mais fácil. Agora, sobre o que aconteceu no Conselho. Eu não ouvi nada, nem sabia que era possível portar armas dentro do prédio! Pois os seguranças usam armas de choque.

— Então, espalhou-se uma história dentro da empresa de que a Srta. Nieminen era instável psicologicamente?

— Sim. Foi isso que falavam.

— E, alguma vez, Srta. Clarkson, você viu algum indício dessa instabilidade?

— Não. Teve uma época que ela ficou muito magra, mas foi logo depois da cena do casamento, então, era mais do que compreensível. Fora isso, a Srta. Nieminen sempre foi muito polida, educada e sociável dentro do prédio, tanto que havia uma certa disputa interna para saber quem trabalharia com ela, pois ela é mais fácil de lidar do que os demais.

— Você chegou a se candidatar para essa vaga?

— Queria, mas ela não trocou de secretária. Permaneceu sempre com Wendy.

— É normal rotatividade de secretárias?

— Com o Sr. Cavendish e com o Sr. Nieminen sempre foi. A equipe é formada por quatro e poucas conseguiam ficar por mais do que dois, três meses.

— E por qual razão?

Aqui Clarkson deu uma respirada e jogou a bomba.

— Eles não são as pessoas mais fáceis de lidar. Sempre gritando, sempre querendo tudo para ontem. E, além disso, com o Sr. Cavendish ainda tinha os arremessos de pastas em cima das mesas e alguns xingamentos. Não são todos que aguentam isso.

— E você trabalhou com ele por quanto tempo?

— Oito meses, e dizem que isso é um recorde.

Quando o depoimento de Clarkson passou para a defesa, eles tentaram fazer de tudo para desfazer essa imagem de arrogante e prepotente que a secretária tinha plantado, porém, foi impossível, pois todas as vezes que perguntavam ou tentavam justificar o comportamento de seu cliente, a secretária vinha e confirmava que era um comportamento recorrente, todos os dias alguém saía chorando do prédio.

Sem ter como salvar a pele do cliente, a defesa terminou o interrogatório e a sessão foi suspensa para almoço. A acusação estava declarando a manhã como uma vitória parcial, eu não tinha tanta confiança assim, porque basta uma palavra e a opinião de alguém pode mudar.

A parte da tarde já foi destinada a depoimentos mais importantes. E começaram com ninguém menos do que Matti Nieminen.

Apertem os cintos que isso vai ser bem interessante.

Ao invés de observar o homem, que um dia eu chamei de meu avô, se encaminhando para o banco das testemunhas, me concentrei nos jurados e em como eles reagiam à sua presença. A grande maioria não conseguiu esconder a expressão de desgosto.

Matti cruzou o plenário em três passadas e recusou a ajuda do meirinho, se sentando arrogantemente na cadeira, deu uma olhada em toda a sala, tentando intimidar os advogados e os presentes.

Suas primeiras palavras chegaram até mesmo a ser rudes, algo que piorou a impressão de todos com a sua imagem. E continuou assim por todo o seu depoimento.

Foi perguntando sobre a empresa em si, a sua estrutura, até que, depois de desenhado como tudo funcionava, chegaram ao ponto que interessava.

— Então, Sr. Nieminen, cada escritório tem o seu Diretor Executivo, que é subordinado ao Vice Diretor que, por consequência, é subordinado ao CEO.

— Exato. – Foi a resposta monossilábica do Ex. CEO.

— Assim, todas as decisões do Vice, são ratificadas pelo senhor?

— Sim.

— Então, estava ciente do desvio de fundos nos nomes de Alberto Mancini e Katerina Nieminen?

E aqui ele parou, pois essa era a pegadinha de seu depoimento.

— Estamos esperando, Sr. Nieminen, estava ciente ou não?

— Não, não estava. Minha secretária, Mary é quem dividia os relatórios por níveis de importância. Os que ela colocava como de mero expediente interno, eram os que eu não precisava ler com atenção.

— Mary Brandon, a ex secretária da Direção e a mesma pessoa que encaminhou a Srta. Nieminen, sua própria neta, para a sala onde ela quase foi morta?

Matti deu uma leve remexida na cadeira.

— Sim. A própria.

— O senhor está acusando a sua secretária de estar agindo de comum acordo com o Sr. Cavendish para prejudicar a empresa?

E aí estava...

— Eu não tenho... tinha tempo para monitorar o que a minha secretária fazia. Estava ocupando gerenciando a maior multinacional de transportes do mundo. Ela poderia ter feito qualquer coisa.

— Mas estamos falando na tentativa de assassinato da sua neta. Da Senhorita Katerina Nieminen que está sentada bem ali. - Granger apontou para mim. - O senhor tem que ter alguma ideia! Tinha ou não tinha um arranjo entre a Sra. Brandon e o Sr. Cavendish.

— É bem provável.

— Mentiroso. – Soltou Cavendish de onde estava.

É bem provável. Resposta um tanto vaga para quem sempre gostou de dizer que tinha o comando da empresa em rédeas curtas. Teria isso a ver com o fato de que quem realmente trabalhava no prédio de Londres ter sido mandada para longe, o que fez com que perdesse o comando sobre o escritório dessa cidade e, por consequência, da empresa?

Essa era uma pergunta interessante. Se, e somente se, Matti respondesse que sim, ele daria praticamente ganho de causa para a acusação. Agora, se ele respondesse não, a ideia da defesa de que eu era uma louca instável, com tendências à depressão poderia colar.

— Primeiramente, cabe aqui explicar que eu não perdi o controle da minha empresa.

— O senhor era o CEO de uma S/A. Teoricamente, S/A’s não têm um dono único. Pode ter alguém com maioria de cotas, mas não um dono.

Matti ficou possesso com essa interrupção e fuzilou Granger com o olhar.

— Retomando. Eu não perdi o controle da empresa. Isso nunca aconteceu. O que veio ocorrer foi que, por mudanças necessárias, remanejamos alguns funcionários para suprir a necessidade dos demais escritórios. E, para cada vaga, escolhemos aquela pessoa que mais se encaixaria. – Ele terminou, feliz que tenha se mantido em cima do muro.

— Sim. Claro. Mas, o que o senhor diz sobre essa fala do Sr. Cavendish, retirada do vídeo que vimos ontem: “mas eu precisava da aprovação de Matti, e ele, ganancioso como é, não viu problemas em unir as duas famílias, afinal, concentraria quase todas as ações da S/A na mão de poucas pessoas. Bolamos o plano e apresentamos vocês dois. E você, doce Katerina, caiu como um patinho.” E “tudo parecia que ia bem, de algum modo eu e Matti entramos em consenso que você não deveria assumir a cadeira da Direção, afinal, de casamento quase certo, você deveria deixar que seu marido assumisse a cadeira e você tomaria conta dos seus filhos.” E, por fim, esta: “Não, seu avô já tinha perdido a fé em você há tempos... ele nunca te perdoou pelo casamento fracassado. Afinal, é fácil culpar uma mulher nesses casos, ainda mais você, que sempre fez tudo para agradar seus pais e avós. Para ele, você o fez perder alguns milhões até o fim da vida, e nós dois sabemos que Matti não gosta de perder dinheiro.” Estas falas, Sr. Nieminen, mostram que não havia um remanejamento na empresa por “questões de necessidade” dão a entender que houve remanejamento porque alguém descobriu algo importante e por vingança. É isso mesmo ou o senhor gostaria de esclarecer algo?

Aqui a defesa protestou falando que a acusação especulava um resultado. Matti ganhou alguns minutos para pensar no que falaria, porém, a acusação foi mais esperta, e, ao invés de reformular a questão, passou para outro tópico.

— O Senhor estava presente nesta sala quando passamos o vídeo, não estava?

— Sim. – Matti recomeçou com as respostas curtas, mas dava para perceber que ele estava começando a ficar nervoso.

— Foi a primeira vez que viu todo o vídeo?

— Sim.

— Pois bem, dá para notar no vídeo que algumas pessoas chegam para auxiliar a Srta. Nieminen, dentre elas, seu filho, Jarti-Matti Nieminen, seu neto mais velho, Ian Nieminen, sua esposa, a Sra. Mina Nieminen e o noivo de sua neta, Alexander Pierce. O senhor estava no prédio na hora do ocorrido?

— Sim.

— E por que não foi socorrer a sua neta? Porque pessoas que não são funcionárias da empresa chegaram mais rápido para socorrê-la do que o Senhor, que é o avô dela, e estava no prédio?

Essa era uma pergunta que eu me fiz algumas vezes. Onde ele estava que não apareceu em hora nenhuma? Onde ele esteve nos último dois meses?

— Como se vê no vídeo, a Katerina, minha neta, - ele começou, eu fechei a cara para a expressão minha neta e minha avó, que estava sentada atrás de mim, xingou em finlandês, chamando-o de falso. – Estava do outro lado do andar. Os documentos provam que ela encaminhou algumas evidências dos desvios de fundos para a avó e o pai. Pessoas que são Conselheiros Honorários da NT&S. Eu não tinha conhecimento de onde ela estava e nem o que ela estava fazendo ou quem estava com ela.

— Mas mesmo com a chegada das três pessoas já citadas, o Senhor continuou sem saber de nada?

— Como eu disse, foi do outro lado do andar.

— Uma arma foi disparada, não ouviu nada?

— Por acaso tem ideia do tamanho do prédio da NT&S? Tem ideia de quantos funcionários andam pelo andar? Tem ideia da quantidade de pessoas que ficam só por conta da Reunião do Conselho? É uma cacofonia de sons que não se pode distinguir nada.

— Mas foi no recesso do almoço, Sr. Nieminen. Creio que o número de pessoas transitando pelo andar deva ter diminuído exponencialmente.

A cara de quem chupou limão de Matti foi hilária! E eu só não comecei a rir da saia justa onde ele se meteu, porque não podia.

— Eu não escutei nada.

— Certo. Nada. Espero, pelo menos, que tenha ido visitar a sua neta no hospital. E, por falar nela, - novamente apontam para mim. – Como estava o relacionamento profissional e pessoal de vocês nos últimos meses?

E agora viriam as mentiras.

— Katerina sempre foi muito competente no que faz. Conhece a empresa, fez a sua formação acadêmica toda direcionada para que pudesse trabalhar na NT&S. Por isso foi promovida.

— Certo. Então, por suas palavras, ela seria a pessoa mais qualificada da empresa para, no futuro, ocupar a cadeira que te pertencia?

O silêncio na sala era tanto que se um grampo de cabelo caísse, todos escutariam.

— Sim. Ela seria.

— E, mesmo assim, o Senhor e o Réu, armaram um casamento de conveniência, para que ela não assumisse essa cadeira. Mas sim, o marido dela?

A expressão das mulheres do júri eram as de que pegariam em armas para acabar com essa maldita ideia de casamento arranjado.

— Sua resposta, Sr. Nieminen.

— Kat ainda não estava pronta para assumir a cadeira.

— Não foi essa a pergunta que fiz. Perguntei, no futuro, tendo em vista o que o senhor falou, seria ela a pessoa mais indicada à cadeira de CEO?

Matti não tinha saídas. Não mais.

— Se não aparecesse mais ninguém, sim, seria ela.

— Arriscaria dizer que ainda é?

A defesa protestou, mas Matti, já sem chances, respondeu do mesmo jeito.

— Sim, ainda é.

— Mas não era o que você queria. Por quê? Sendo que ela é a sua neta e herdeira?

Matti não respondeu essa. Nem precisava. Estava estampado em seu rosto o motivo.

Eu era uma mulher. E para ele, mulheres não lideravam nada.

Depois desse pequeno golpe, a acusação passou a questionar a amizade de Matti com Cavendish.

— O Senhor confiava no Réu?

— Sim. Somos parceiros de negócios de longa data.

— Nunca achou nada de errado nos documentos que ele te mandava ou nas moções que ele fazia?

— Não.

— Nem desconfiou das suas intenções, quando ele te propôs, e o senhor aceitou, que cassassem a sua neta com o sobrinho dele?

— Seria um bom casamento para a empresa.

Para a empresa? Mas não para os envolvidos.

Sem comentários de Matti sobre isso.

— O casamento que os senhores arranjaram não aconteceu. De quem foi a culpa por isso? E qual foi o maior prejuízo para o senhor?

Antes de responder, Matti olhou na minha direção. Eu sustentei o seu olhar.

— Acha que foi da Srta. Nieminen, a culpa, pelo casamento não ter ocorrido?

— Toda mulher deve se esforçar para manter o casamento.

— Mas ainda se tratava da cerimônia!

— Ela poderia ter ido atrás. – Matti respondeu acidamente.

— Uma humilhação não foi o bastante para a sua família, Sr. Nieminen? Queria mais quantas?

— Negócios são negócios, e se a Katerina amasse a empresa como ela sempre pregou, teria corrido atrás para se casar com uma pessoa que traria lucros para mim e para a família dela.

Eu juro, só não me levantei e bati nele porque não podia. Ao fundo, algumas pessoas se engasgaram com a fala dele.

— Então... os prejuízos foram todos de cunho financeiro? O emocional da sua neta...

— Eu perdi quase cem milhões com esse casamento que não aconteceu. Katerina não faz ideia do prejuízo que ela me causou. Uma pessoa que não entende que nos negócios não entra o sentimento, não merece ser cogitada para a cadeira de líder.

O promotor deixou essa frase ecoar pelas paredes da sala e ser digerida por todos.

— E como o Senhor e o Réu iriam reaver essa diferença?

— Tínhamos nossos meios.

Levantei uma sobrancelha... será que Matti também desviada dinheiro da empresa?

— Tinham? Os dois?

— Ele, os dele. O meu era trabalhar para angariar mais clientes e ter mais serviços.

— Mas essa não é a função da Srta. Nieminen? E o escritório para onde ela foi transferida não foi o que deu o maior lucro no quarto trimestre do último ano?

Outra vez Matti ficou calado, estava começando a ficar muito feio para ele.

— E, a última pergunta. Como o senhor consegue se sentar ao lado da família do Réu, sabendo que quase mataram alguém do seu próprio sangue? A herdeira por direito da empresa que o senhor montou. Como ainda consegue olhar na direção do Réu sabendo disso?

— Todos erram e Katerina está bem. Edward perdeu o lugar dele na empresa, tudo está pago.

Minha avó se levantou na hora. Algumas pessoas protestaram alto contra  frase de Matti. E ele olhava para mim, querendo ver a minha reação. Fiquei imóvel. Pois eu entendi a jogada dele. Eu era a culpada por ele ter perdido o lugar na NT&S. No final das contas, ele e Cavendish queriam se ver livres de mim, e aconteceu exatamente o contrário. Eles saíram e eu fiquei.

— Sem mais perguntas. – Granger falou e quando se sentou do meu lado, apenas comentou. – Você tem o pior avô do mundo. Me surpreende que ele mesmo não tenha tentado matá-la.

A acusação assumiu as perguntas. Focando nas qualidades de Cavendish, em como ele sempre fora um excelente Vice-Diretor. Em como as coisas sempre saíram bem sob o seu comando. Não questionaram a armação do casamento. E sobre o vídeo:

— Senhor Nieminen, sobre o vídeo que a acusação diz ser a prova mais importante, acha que foi adulterado em algum ponto?

— Não sei. Não entendo de edição de vídeos.

— Conhece alguém que pode saber fazê-lo?

— O noivo da Katerina é de Los Angeles, dizem que ele é ator, pode ser que ele conheça alguém.

Eu não acredito que estavam levantando a tese de falsidade do vídeo!! E ainda enfiando Alex nisso!

— Sim, claro. – Disse o advogado de defesa, todo educado. – Tudo é possível, não é mesmo?

— Vindo dessas pessoas que não são da família, sim.

— E quem seria “família” para o senhor?

— Os amigos de longa data. Nestes se pode confiar.

Eu estava querendo arremessar o meu sapato na cara de Matti. E não ia demorar muito para isso acontecer.

E assim encerraram o dia. Com Matti dando o seu testemunho de que confiava em Cavendish, mais do que na própria neta. Onde isso ia parar eu não fazia ideia.

Na saída, minha avó ficou frente a frente com Matti. E eu nunca vira Mina Nieminen tão raivosa na minha vida.

— Você acaba de se enterrar sozinho, Matti. Se um dia houve a fagulha de esperança em mim de que eu pudesse te perdoar pelo que fez com a KitKat, isso não existe mais. Você usou e abusou da sua neta, do trabalho dela e da veneração cega que ela tinha por você. Teve a capacidade de usar seus bisnetos para tentar controlá-la. E agora fica do lado errado da história mais uma vez. Eu só te digo uma coisa, eu te conheço, fui casada com você por anos, fiquei do seu lado em vários momentos, apesar de que você nunca percebeu ou deu valor a isso. Então, eu sei que você está aprontando algo. Você quer voltar ao topo da empresa. Empresa que você só fundou, porque eu te dei o dinheiro. Contudo, saiba que isso não vai acontecer, Matti. Você mentiu sob juramento hoje, sabia de tudo o que estava por acontecer e não impediu. Eu jamais irei te perdoar por ferido meus bisnetos e minha neta. Por mim, você morrerá sozinho e esquecido, naquela casa que você tanto fez questão de ter. Viva com a sua consciência. – Depois, levantou a cabeça e saiu andando elegantemente até o carro que a esperava.

Eu fiquei apática por alguns segundos, até que percebi ao lado de quem estava.

— Você não é tão importante assim, Katerina. Não vale o que acham que vale e não vai se casar com o mendigo de Hollywood. – Matti falou na minha direção.

Minha resposta não foi outra, senão:

— Pelo menos terei minha família do meu lado. Algo que algumas pessoas não têm.

Desci para o carro e o deixei ali.

Como o dia na corte tinha se estendido demais, acabei chegando depois de Alex, que já tinha preparado o jantar e me esperava sentado na sala de TV, batendo os pés de ansiedade.

— Vou precisar de um resumo de hoje, ou tudo foi pior do que eu pensava? – Ele perguntou ao me abraçar.

— Foi o testemunho de Matti hoje. E o desgraçado mentiu o tempo inteiro, escolhendo o lado de Cavendish.

— Eu não deveria ficar surpreso com isso, mas estou. Achei que ele daria o bote e afundaria o Pateta 2 de vez.

— Não. Ele não fez isso.

— Amanhã é a minha vez. Me falaram que é para contar o que sei. E nada além.

— Exato. E se prepare. Capaz que vão tentar acusá-lo de agressão e muito provavelmente vão tentar vender a imagem de golpista. Além de falarem que você editou o vídeo.

— Deixa que façam isso. Eu não ligo, Kat. Só quero a verdade.

— Eu também. E que isso acabe logo, para que possámos voltar para a nossa vida. Que, pensando bem, nunca foi 100% pacífica, né?

— Não. E se fosse nem teria graça. Vem vamos comer, porque você está exausta e eu ainda preciso da minha parceira para treinar as falas comigo.


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Notas finais do capítulo

Outro ponto que vou destacar: o sistema processual inglês é diferente do brasileiro, e um tanto complexo para estudar e colocar no texto. Assim, estou levando em consideração o sistema usado no Brasil, para ser mais fácil para escrever e sair menos besteira.
No mais, semana que vem tem a continuação.
Obrigada a você que leu até aqui.
xoxo



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