Sob a Máscara escrita por Irene Adler


Capítulo 7
Capítulo 7




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Quando eu era criança, ouvi dizer que o Bowery era um bairro assombrado. Alguns diziam que o demônio passava por lá todas as noites. Já havia esquecido a maior parte das histórias, mas no momento em que arrombava a fechadura da porta dos fundos do apartamento de Harold Coleman, perguntei-me se o enfermeiro pensaria que o demônio escolheu sua casa quando percebesse que mais alguém estava lá.

Cheguei ao local de manhã bem cedo, antes do horário que ele costumava voltar do trabalho. Tive tempo de vasculhar todo todos os quatro cômodos do pequeno apartamento e escolher uma faca da cozinha para esperá-lo.

No instante em que vi o relógio da sala bater 8:40, tive uma ideia para tornar minha recepção mais interessante.

Abri totalmente a janela do quarto dos fundos deixando que o vento frio entrasse. A janela começou a bater e fui para detrás do móvel da cozinha.

Já estava cansada de ficar em pé quando enfim ouvi o som da porta sendo aberta, e, conforme esperado, o homem foi até o quarto para fechar a janela. Mal passou pela soleira da porta até sentir a faca em suas costas.

— Bom dia, Sr. Coleman, o fantasma do Bowery veio te visitar. – Falei.

— Quem é você?

— Sei que vai se lembrar de mim. Agora não vá fazer a besteira de gritar, certo? Feche a janela e sente-se na cama pra conversarmos.

Ele fez como mandei e seus olhos castanhos se fixaram no símbolo do naipe de espadas em meu peito depois de se sentar.

— Ouvi dizer que estava com o Batman, pensei que tivesse mudado de lado. – Foi ele a quebrar o silêncio.

— Não tenho nenhum lado além do meu. E você foi o escolhido para me ajudar.

— Sempre disseram que o fantasma do Bowery era um homem.

— Pois então hoje é seu dia de sorte. Vai poder contar a todos que é uma mulher. - Eu disse sorrindo. – Nosso trato é o seguinte: vai me ajudar no que eu precisar e em troca te deixo viver. Parece ótimo, não é?

Ele encarou-me com os olhos arregalados sem dizer palavra. Girei a faca nas mãos e suspirei.

— Preciso que me diga se está de acordo antes de continuarmos.

— E – estou. – Ele gaguejou.

— Vai ser um prazer fazer negócio com o senhor. Com certeza já deve imaginar o motivo que me trouxe até aqui. É enfermeiro no Arkham sempre no turno da noite, correto?

— Sim. – Dessa vez ele respondeu de pronto.

— Quero fazer uma visita a alguém.

— Vai soltar ele? – Senti um certo tom de desespero na voz de Harold. – É isso que quer fazer?

— Eu disse “visita", não foi? Só quero conversar. E não lembro de ter perguntado sua opinião sobre os meus objetivos. Suponho que o jeito mais fácil de entrar seja me passando por funcionária, e tive uma ótima ideia quanto a isso. Na semana passada você jantou com uma colega de trabalho num restaurante perto daqui, como é mesmo o nome dela? Katherine...? – Finge uma expressão pensativa. – Katherine Bloom, não é?

Sim, era, eu vi o crachá dela em cima da mesa.

— Ela não tem nada a ver com isso.

— Ah talvez tenha. Ela não me pareceu tão interessada em você, mas vai convidá-la pra jantar de novo semana que vem e dessa vão num restaurante novo na Rua Treze. E você vai  se oferecer pra pagar. Ela mora aqui perto, vai aceitar um jantar de graça antes do expediente.

— Como sabe de tudo isso?

— Depois de comer, vão tomar um café, como da outra vez. – Continuei a falar ignorando a pergunta dele. – E então vai colocar isso no copo dela. – Tirei um pequeno frasco do cinto. – Em pouco menos de dez minutos ela vai dormir, não recomendo que demorem a sair do restaurante.

— E sugere que eu a largue desacordada na rua? – Harold falou com indignação.

Eu ainda não era assim tão sem coração.

— É claro que não. Sabe por que escolhi a Rua Treze? Em frente ao restaurante em que vão jantar tem uma loja pra alugar. A porta vai estar aberta e é lá que vamos deixar a Katherine. Depois pode contar a ela que a Dama de Espadas invadiu seu apartamento. Vou pegar o jaleco e a identificação dela e entrar no Arkham. Vou ter algum problema com os guardas?

— Provavelmente não. Os funcionários costumam entrar pelos fundos, temos uma identificação por cartão magnético. Mas vai precisar ficar até o final do turno se não quiser chamar atenção.

— Já vamos chegar lá. Em qual ala o Coringa está?

— Na ala 15, é a de segurança máxima. Mas eu não vou até lá e nem a Katherine. – Ele falou rápido.

— Em hipótese nenhuma?

— Só se dois ou mais enfermeiros que trabalhem lá faltarem no mesmo dia, daí vão precisar de ajuda.

Ótimo, mais uma complicação.

— Três deles vão faltar. O que acontece nesse caso? – Perguntei.

— O enfermeiro chefe da ala vai pedir ajuda pra fazer a primeira ronda e dar os remédios pros pacientes antes dos médicos chegarem, mas ninguém vai querer ir. Quando você se oferecer, ele vai te entregar as chaves das celas dos presos pra quem vai dar os remédios. E não demore muito, tem sempre guardas no corredor.

— Imaginava que a segurança seria toda automatizada.

— E era até alguns anos atrás. A identificação de todos os funcionários era feita por biometria, mas houve uma rebelião e vários enfermeiros e médicos perderam os dedos. Depois substituíram por cartões magnéticos e decidiram deixar a ala de segurança máxima completamente analógica.

A calma com que ele contou isso me impressionou, um homem que já não se assustava mais com o horror. Será que todos os funcionários do Arkham eram desse jeito? Quanto tempo demorava até ficarem assim?

Quanto tempo eu demorei para ficar assim?

— Agora, Sr. Coleman, duas últimas coisas antes de eu ir embora; quem são os enfermeiros que conhece que trabalham na ala 15 e qual é o procedimento a ser seguido caso acionem o alarme de incêndio?

Que Bruce nunca me ouvisse dizer em voz alta, mas eu senti falta disso.

(...)

Depois de passar em frente ao restaurante da Rua Treze e ver que Harold e a tal Katherine estavam mesmo lá, atravessei a rua e entrei na loja fechada cuja fechadura havia arrombado algumas horas antes. A vitrine estava coberta com papel pardo e coloquei a máscara antes de sentar no chão empoeirado para esperá-los chegarem.

Olhando para a escuridão, quase pensei em reavaliar o que estava prestes a fazer, mas afastei essa ideia mentalizando que no dia seguinte o caso já estaria resolvido e eu conseguiria fazer Bruce entender que eu estava certa. Provaria ao Batman que sou capaz.

Meu namorado já estava avisado de que eu cuidaria do filho de Helena depois do trabalho, porque ela e o marido iriam jantar e depois tirariam o restante da noite para os dois. Um pequeno favor para uma velha amiga, Bruce concordou sem questionar.

Nesse momento, outros quatro enfermeiros da ala de segurança máxima estavam adormecidos e ficariam assim pelas próximas doze horas. Um a mais para garantir que eu ajudaria com a primeira ronda.

Estava desembaraçando uma das pontas do cabelo da peruca quando a porta finalmente se abriu para dar lugar a Harold com uma Katherine desmaiada encostada em seu ombro.

Ajudei-o a entrar e fechei a porta. Observei-o colocar a mulher no chão com cuidado.

— Espero que não tenha chamado muita atenção pra chegar com ela até aqui.

— Não, ela desmaiou quando já estávamos na porta.

— Ótimo. Pode ir embora agora. Se precisar de mais alguma coisa encontro você.

Harold apenas assentiu sem dizer nada antes de sair.

Tirei a máscara e olhei para a enfermeira no chão por alguns segundos, sem conseguir distinguir tantos detalhes no escuro. O cabelo dela era da mesma cor da peruca da Dama de Espadas, só um pouco mais longo. Não era o disfarce perfeito, mas iria servir.

Liguei a lanterna do celular e procurei na bolsa dela tudo que precisava; o jaleco, o crachá, o cartão magnético e peguei os óculos de grau também. Não consegui evitar pensar que em outros tempos teria levado a carteira dela junto. Que grande evolução eu tive, de uma ladra comum para alguém cujos crimes somados poderiam render uma vida na prisão.

Peguei uma foto 3x4 minha e coloquei- a por dentro do crachá, no lugar onde antes estava o rosto da enfermeira. Tirei do bolso da calça um bilhete escrito com letras recortadas de jornal, como os que Coringa me deixava e coloquei na mão esquerda de Katherine. Quando acordasse no dia seguinte ela poderia ler a mensagem: “Obrigada por ajudar a Dama de Espadas, fique em silêncio e não irei atrás de você. “.

(...)

Conforme Harold havia dito, o guarda do portão dos fundos não me dirigiu o olhar por mais de dois segundos antes de eu usar o cartão magnético para entrar, mais preocupado em observar a tela do celular.

Dois enfermeiros caminhavam à minha frente e segui-os até entrar no hospital. Bati o ponto e fiz meu melhor para copiar a assinatura que Katherine Bloom tinha feito nos dias anteriores.

Mas ao invés de ir para a ala 7, onde a enfermeira trabalhava, rumei para a ala de número 15. Precisava me assegurar de que seria a escolhida para fazer a primeira ronda.

Andar por aqueles corredores brancos ouvindo os gritos ocasionais dos pacientes já era o bastante para me convencer de que tudo isso tinha sido uma péssima ideia e de que existia uma possibilidade, ainda que ínfima, de que eu não deixaria o Arkham nunca mais. Lembrei das palavras de Coringa na noite na qual nos vimos pela última vez, quando disse que nós três deveríamos dividir a mesma cela acolchoada.

Assim que pus os pés no corredor que dava acesso à ala de segurança máxima, avistei dois guardas e o da direita me dirigiu a palavra.

— Você não é enfermeira dessa ala, o que faz aqui?

— Não, eu trabalho na ala 14, mas estamos sem sedativo e me pediram pra vir buscar aqui.

Eles se entreolharam.

— Fala com o Hernandez na primeira sala à esquerda. – Disse o outro.

— Obrigada.

Fui até a sala e bati na porta para ser respondida por uma voz mal humorada.

— Pode entrar.

— Com licença, desculpe incomodar, mas é que trabalho na ala 14 e estamos sem sedativo por lá. – Falei depois de entrar e fechar a porta atrás de mim.

— Achei que tinham vindo me avisar que mais alguém tinha faltado. – O enfermeiro suspirou. – Como foi que deixaram acabar o sedativo? – Ele abriu um armário e tirou duas caixas de remédio.

— Não sei, senhor, eu só estou fazendo o que me pediram.

— Eu sei, não é culpa sua. Há quanto tempo trabalha no Arkham, senhorita... – Ele olhou para o meu crachá rapidamente. – Bloom?

— Faz quase um ano, senhor.

— E nunca tinha vindo até aqui?

— Não, senhor.

— Não me surpreende, tudo mundo foge daqui. – Ele soltou uma risada seca. – Mas hoje não é seu dia de sorte e vou ter que te pedir pra ficar mais um pouco porque quatro pessoas faltaram e preciso de ajuda.

Se ele soubesse que nunca é meu dia de sorte.

— Tudo bem, eu posso ajudar. – Respondi.

— Vai dar os remédios de alguns presos. As portas não são automatizadas, vou te dar as chaves.

Hernandez pegou um molhe de chaves no bolso interno do jaleco, tirou oito delas do chaveiro e deixou em cima da mesa ao lado de uma bandeja com vários copos de plástico com três comprimidos cada.

— Pegue uma chave de cada vez, não leve todas juntas. Vai dar os remédios dos pacientes das oito celas do final do corredor e depois pode pegar o seu sedativo e ir embora. Esvazie os bolsos e deixe qualquer objeto cortante aqui, e não se esqueça de pegar uma lanterna no armário pra conferir se eles engoliram os comprimidos. Se demorar mais que 10 minutos um fos guardas vai até lá. Ah, e fique tranquila, todos esses pacientes têm se comportado bem ultimamente.

— Sim, senhor.

Agora só podia torcer para que a cela de Coringa fosse uma das oito no final do corredor. Escolhi a primeira chave que Hernandez havia colocado na mesa, cujo número era 0801 e peguei um dos copos da bandeja.

— Senhorita Bloom. – O enfermeiro falou quando já estava quase saindo.

— O que?

— Esqueceu da lanterna.

— Desculpe, senhor. - Voltei-me para a direção dele que tinha acabado de abrir o armário.

Peguei a pequena lanterna das mãos dele e coloquei no bolso do jaleco.

— Obrigada. – Falei antes de sair.

Andei até a porta 0801 e vi a pequena placa com as palavras “identidade desconhecida" e soube que tirei a sorte grande mesmo antes de olhar pelo quadrado de vidro.

Destranquei a cela e fechei a porta atrás de mim. Vi meu antigo parceiro de crimes depois de três anos e pela primeira vez ele estava sem maquiagem e sem o cabelo verde. Estava sentado na cama encostada à parede dos fundos, o rosto tinha uma palidez cadavérica e olheirad fundas. O cabelo natural dele era de um tom castanho escuro e havia um corte quase cicatrizado acima da sobrancelha esquerda.

— Olá, querida, quanto tempo.

— Trouxe seu remédio.

— Sabia que sentiria saudades. – Coringa sorriu. – Ele é certinho demais pra você, não é?

— Só temos dez minutos, não é sobre ele que vim falar.

— Deixe-me adivinhar, é sobre nós dois? Quer me tirar daqui para voltarmos à antiga glória juntos? Porque sei que não está feliz com ele. – A afirmação veio em tom de deboche. – Se estivesse, não viria até aqui.

— Eu sei o que está fazendo. É por isso que vim conversar.

— Estou nessr hospício faz um tempo, querida, não tenho ideia do que está falando.

— Ah tem sim. Cinco assassinatos ao longo dos últimos seis meses, todos referenciando algum antigo adversário do Batman, soa familiar? Tenho certeza de que tem sua mão nessa história.

— Parece mesmo muito criativo, tem certeza de que não foi você? – O palhaço fingiu uma expressão confusa. – Eu sou só um paciente tentando melhorar, não estou envolvido com esse tipo de coisa, pode perguntar aos médicos. Meu progresso é notável, até concordaram em me deixar sem a camisa de força.

Suspirei e fechei os olhos por dois segundos. Foi um erro vir aqui.

— Sei que tem alguma coisa a ver com isso, sei que fez tudo pra me desestabilizar, pra desestabilizar o Batman. Queria que viessemos te ver pra desvendar o enigma, então aqui estou.

— Por que acha que tudo na minha vida gira em torno de vocês dois? Eu tinha uma vida antes do Batman e da Dama de Espadas, sabia? – Ele se levantou da cama.

— Não, não tinha. Bruce nunca viria te ver, mas sinta-se vitorioso por conseguir minha atenção, estou esperando a próxima parte do enigma.

— O que te faz pensar que ele não viria? – Coringa deu três passos e estava agora próximo de mim. – E por que tem tanta certeza que sou a única pessoa a querer te prejudicar? Acha que ninguém guarda qualquer rancor da Dama de Espadas?

— Ninguém que saiba a minha identidade.

No instante em que terminei de falar, as luzes se apagaram e eu soubr exatamente o que Coringa diria e o que aconteceria a seguir.

— Acho que temos companhia.

Não demorou para que ouvíssemos os gritos que supus serem dos guardas do corredor seguidos do mais completo silêncio. A porta da cela se abriu com um estrondo e a silhueta escura com orelhas de morcego se tornou visível. A risada de Coringa cortou o ar e Batman fechou a porta.

— Batsy, que surpresa! Estava conversando com sua garota sobre como ela sente a minha falta, não imaginei que iríamos todos nos reunir hoje. E você não contou a ela que veio me ver?

Batman veio mesmo vê-lo?

— O que faz aqui? – A voz do morcego soou mais raivosa do que de costume enquanto ele me segurava pelo braço e me empurrava contra a parede, fazendo com que o copo com os remédios caísse no chão. – Eu confiei em você.

— Por que não me conta primeiro? Parece que veio fazer uma visita antes de eu ter a ideia.

— Longe de mim querer atrapalhar a discussão, é um prazer revê-los, mas não contou a ela sobre seu aniversário, Batsy?

— Veio ver esse palhaço na noite do seu aniversário e me deixou sozinha? – Perguntei ao tentar me soltar, mas ele passou a segurar meus dois pulsos acima da cabeça. – O que vai fazer, me dar um soco?

— Sempre ouvi dizer que é assim que ela gosta.

A frase de Coringa foi o suficiente para fazer Batman me soltar e ir na direção dele. Vi-o derrubar o palhaço que não ofereceu resistência alguma e desferir-lhe três socos no rosto.

— Sempre disse que nós três éramos parecidos, vocês dois tiveram a mesma ideia de me visitar para solucionar o enigma. – Ele falou entre gargalhadas antes de receber mais um soco e rir ainda mais alto. – Só que eu não posso ajudar, sou inocente dessa vez. Mas você vai desvendar isso, querida, pense sobre tudo que te aconteceu, sobre o quanto um segredo pesa. Nem todos conseguem sustentá-lo tão bem assim, algumas pessoas sucumbem e tentam descontar em quem elas acreditam serem os responsáveis.

E foi então que eu entendi.

— Vamos embora agora. – A voz grave do morcego falou em minha direção.


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Notas finais do capítulo

Sei que estou um pouquinho atrasada dessa vez, mas é que voltei às aulas na faculdade e esse me deu um pouco de trabalho.
O próximo já deve ser o último (digo "deve" porque talvez divida em dois se for ficar muito longo), então adoraria saber o que acharam desse.



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