Em todas as canções de Natal escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Em todas as canções de Natal




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Sempre tive minhas questões internas sobre a real definição da minha existência, uma vez que é lógico supor que se realizo ações como andar, comer e falar, não estou exatamente morto, mas também não é como se eu fosse particularmente vivo, não é mesmo? Enfim, questões não resolvidas com meu vampirismo a parte, o fato é que cultivo uma lista seleta de coisas capazes de me encherem dessa energia comumente denominada “vida”, fazendo com que eu me sinta completo, mesmo que apenas por alguns minutos. Elas são:

1) Executar perfeitamente um feitiço, do jeito que fui ensinado quando pequeno por minha mãe. Sentindo um poder muito antigo pinicando sob a pele, acendendo um fósforo dentro do coração e então, depois, soprando a chama;

Falando em fogo...

2) Ser capaz de conjurar uma flama na palma das mãos. Especialmente porque essa é uma das únicas heranças dos Pitch que não me enchem de melancolia, e sim de orgulho;

3) Notar, discretamente e com satisfação, o quanto Mordelia tem se tornado boa em copiar minha clássica expressão ao levantar apenas uma das sobrancelhas. Essa criança não tem nem 8 anos e já é uma ameaça completa;

4) Tocar violino e permitir que as canções transbordem todos os pensamentos que não posso pôr em palavras, todas as emoções que não deveria sentir e, muito menos, demonstrar.

(A verdade é que se eu fosse ser absolutamente sincero, haveria um quinto item nessa lista: “estar incorrigivelmente idiotamente desesperadamente apaixonado por Simon Snow”, mas como não considero essa uma prática lá muito saudável, nem sequer evitável, prefiro ignorar).

(Como se eu fosse capaz de ignorar qualquer coisa relacionada a Simon Snow).

Enfim, isso seria absolutamente fantástico se o imbecil do meu colega de quarto não fosse capaz de destruir tudo.

(Só para que fique claro, o tal idiota em questão é justamente o cara por quem tenho uma queda abissal, porque eu sou uma causa perdida e, aparentemente, tenho que rever minhas estratégias para expressar afetividade, já que até na minha cabeça não poupo xingamentos dirigidos a ele. O que posso dizer... amor e ódio andam juntos, não?)

Estou me enredando numa digressão muito complexa, por isso deixe-me retornar ao ponto fundamental da minha reclamação. Não é novidade que o mero respirar do querido herói do mundo da magia é capaz de mexer com a minha cabeça, mas a questão é que meu sofrimento da vez começou na terça-feira.

Quero dizer... Dezembro chegou, então é claro que Watford se transformaria magicamente num paraíso natalino, porque, honestamente, quem não ama o Natal? (E não estou sendo sarcástico aqui. Esse é, de fato, meu feriado favorito. Ou pelo menos era). Enfeites foram pendurados nos corredores dos dormitórios, luzinhas foram estendidas de modo a iluminar as prateleiras da biblioteca e o refeitório agora tem um pinheiro enorme no canto esquerdo do salão. É deslumbrante, sinceramente, de modo que não posso ser exatamente culpado por ter me deixado levar por esse clima do final de ano.

Antes de detalhar exatamente o que aconteceu, acho válido ressaltar que não é apenas na prática do violino que as canções estão presentes em minha vida. Eu ouço música todos os dias, praticamente toda hora que posso, e tenho playlists específicas para uma infinidade de coisas, uma mania que adquiri há uns dois verões. Ao contrário do que muitos alegam, o som costuma me inspirar e ajudar na concentração, ao invés de me atrapalhar.

Dito isso, preciso ainda destacar que aquela terça-feira em especial estava sendo um dia absolutamente tranquilo. As aulas do dia já haviam transcorrido sem maiores problemas, eu havia recebido um elogio do Minotauro por minha redação e a escola inteira estava linda e festiva para onde quer que a vista alcançasse. É claro, portanto, que no fim da tarde, sentado confortavelmente em minha escrivaninha, eu acabei relaxando enquanto fazia a lição de casa e murmurei despreocupadamente a letra de uma canção de Natal.

Quero dizer, quem pode me culpar? Sou apenas um ser humano vampiro comum.

Jingle bells, jingle bells. Jingle all the way...

Era uma música inocente, por Crowley! Mas é claro que meu amado arqui-inimigo com síndrome de protagonista tinha que fazer com que absolutamente tudo na minha vida revolva ao redor dele.

Dashing through the snow...

Me lembro que mal havia cantarolado o início da segunda estrofe quando ele me interrompeu, soando confuso e levemente desconfiado:

— O quê?

Não é possível. Que tipo de conspiração eu poderia estar tirando de uma canção natalina?! Sinceramente...

— Como assim “o quê”, Snow? Eu tô quieto no meu canto, qual sua acusação da vez?

— Ué, foi você que me chamou do nada...

— Eu não te cha... – A ficha do que tinha acabado de acontecer caiu no meio do que provavelmente seria minha réplica mal-educada e eu nunca fui tão grato por minha inabilidade de corar – Ah... Esquece, eu não estava te chamando.

Mas que maravilha. Nem nas músicas de final de ano eu terei paz agora...

Me virei rapidamente para encarar meu caderno e a resposta inacabada da questão 6, mas meus esforços para lhe dar as costas foram ignorados e ele prosseguiu o interrogatório. Seria pedir demais que Simon apenas deixasse o assunto pra lá, certo?

— Mas eu ouvi você falar “Snow”. Posso ser lerdo, mas não sou surdo, Baz.

Você não faz nem ideia, meu amor.

Engoli minha mortificação, resolvendo que o melhor seria explicar a situação de uma vez, usando de todo meu autocontrole para não parecer sequer remotamente afetado por aquela conversa e emendei um:

— Eu não estava falando de você. Era da neve de verdade. Na música.

Depois dessa eu soube que jamais poderia criticar a eloquência do herdeiro do Mago como costumava, porque que porra de frase foi essa que escapou da minha boca?! Distraindo-me de meu desejo de cavar um buraco para me enfiar, o cenho do Escolhido se franziu instantaneamente e subitamente tudo que eu queria era poder desfazer sua confusão depositando beijos em cada centímetro de seu rosto.

— Que música?

Jingle bells. — Recordo proferir rapidamente e em voz baixa, meio envergonhado por lhe mostrar esse lado mais... vulnerável. Quero dizer, um vilão certamente não deveria gastar seu tempo livre cantarolando melodias alegres, certo?

Simon pareceu hesitar por um instante e então sua expressão se transformou em algo que não fui capaz de ler ao certo.

— Não... não sei se conheço essa.

Algo em mim se derreteu por completo, pensando na infinidade de coisas simples que foram negadas àquele garoto maravilhoso parado diante de mim, na plenitude de seus cachos acobreados e olhos absolutamente azuis. Queria poder abraça-lo, protegê-lo, recompensá-lo de algum modo por todas as experiências boas que ele não teve e, embriagado nesse sentimento, não pensei duas vezes antes de abrir a boca novamente:

— Não é possível, Snow. Você certamente já deve ter ouvido em algum lugar. Sabe, jingle bells, jingle bells, jingle all the way. Oh, what fun it is to ride in a one horse...

Foi no meio da minha cantoria tímida e desajeitada que percebi seus lábios se curvando suavemente para cima, um brilho divertido em seu olhar. Interrompi o verso na hora.

— Okay, okay, eu assumo. Conheço sim essa música... só queria ver como você iria reagir e, quem sabe, te ouvir cantar.

Não soube exatamente o que fazer diante daquela confissão e, como ainda me sentia meio bobo por ter caído em seu truque, fechei a cara e retornei para minha tarefa de Elocução.

(Em retrospecto, me recordo que, apesar de tudo, não consegui me forçar a dar uma resposta malcriada e iniciar outra briga).

Cinco minutos depois, entretanto, foi a vez de Simon quebrar o silêncio de nosso quarto:

— Sabe... você tem uma voz bonita, Baz.

Snow disse aquilo como se não fosse nada, voltando sua atenção rapidamente para um joguinho bobo qualquer sendo reproduzido na tela de seu celular antigo.

Ele proferiu essa frase como se não fosse algo absolutamente capaz de mudar minha vida, ocupar cada um dos meus pensamentos e me deixar acordado por toda a noite.

Me lembro de pensar: Santo pozinho mágico, eu amo o Natal!

Mas isso foi na terça-feira.

Agora ofereço meu parecer oficial: Eu odeio o Natal.

Odeio, odeio, odeio.

Desprezo com todas as minhas forças.

E o pior de tudo é que não odeio nem um pouquinho, o que é uma dinâmica muito similar à minha paixão por Simon, o que torna ainda mais difícil lidar com a raiva que vem borbulhando em meu interior nos últimos dias. O pior é que a responsabilidade dessa situação nem sequer pode ser adereçada diretamente a alguém porque a culpa é da porra do clima!

Isso, e do ser abençoado que resolveu que a palavra “neve” seria um bom sobrenome.

Somado a cada um dos malditos compositores que parecem ter entrado em um acordo que toda música natalina precisa conter “snow” em sua letra para algum tipo deturpado de validação, ou sei lá e a inconveniência que foi justamente Simon apontar essa coincidência para mim, dentre todas as pessoas.

E totalmente minha, por estar constantemente ouvindo minha playlist de Natal, como um imbecil.

Acho que você já deve ter notado que gosto de listas, mas aqui vai mais uma, intitulada: “Canções de natal capazes de deixar Baz Pitch miserável”. Você pode já ter se deparado com o conteúdo dela sob a alcunha de “Christmas (Deluxe Special Edition)”. Sim, o álbum do Michael Bublé.

Claramente eu apreciaria uma interpretação mais homoerótica de Santa Baby, mas no geral são ótimas músicas. Costumava ser meu CD temático favorito, mas agora está arruinado para mim.

(Não que isso me impeça de seguir ouvindo as músicas ininterruptamente).

Tudo é Simon Snow e eu juro que meu coração se parte a cada vez que coloco o álbum para tocar no aleatório. Porque os versos agora tem o gosto agridoce de um amor não correspondido e, ainda que o Escolhido despreze todo o resto do meu ser, ele gosta da minha voz.

O processo de notar o quanto eu estava absolutamente fodido teve início logo no dia seguinte daquele primeiro episódio. Eu tinha acabado de voltar das catacumbas e, por algum milagre performado pelo misericordioso Merlin, meu colega de quarto já estava profundamente adormecido, poupando-me da possibilidade de acusações desconfortáveis sobre eu ter drenado algum aluno inocente do primeiro ano. Meu objetivo era apenas checar as horas rapidamente e verificar se meu despertador estava ativado, mas num segundo me vi alcançando meus fones de ouvido e abrindo o aplicativo de ouvir músicas.

 

I don't want a lot for Christmas

There is just one thing I need

I don't care about the presents

Underneath the Christmas tree

 

No instante que apertei o play e ouvi os primeiros acordes, soube que era um erro, mas não pude me impedir. Senti como se a madrugada me induzisse mais vulnerabilidade e eu precisava me permitir a indulgência de admirar Simon em seu sono, ou iria enlouquecer.

 

I just want you for my own

More than you could ever know

Make my wish come true

All I want for Christmas

Is you, yeah

 

O maior problema da cantoria ecoando nos meus ouvidos era que ela soava muito próxima dos meus sentimentos reais. Desde o desespero sufocante que foi o 5º ano – por Crowley, talvez mesmo desde aquele cumprimento constrangedor logo após o Cadinho nos unir – meu maior desejo, mais do que qualquer coisa, sempre foi tê-lo pra mim.

Isso foi real quando eu quis desesperadamente que não passasse de um engano, quando me contentei com socos e narizes quebrados desde que significasse ele por perto e segue real agora, no sentir que observá-lo a distância nunca será suficiente, ainda que seja tudo que me resta.

 

Oh, I won't ask for much this Christmas

I won't even wish for snow

And I'm just gonna keep on waiting

Underneath the mistletoe

 

De fato, não mais me atrevo a pedir por Snow nem em minha fantasias mais loucas, e o verso seguinte também não está enganado. Tenho mesmo esperado indefinidamente por um sonho impossível, não?

Que seja. Segui nessa toada até aqui e não tenho planos de parar agora.

 

'Cause I just want you here tonight

Holding on to me so tight

What more can I do?

Oh, baby, all I want for Christmas is you

 

Uma lágrima solitária escorreu dos meus olhos naquela noite, em meio ao breu de nosso quarto no alto da Torre dos Mímicos, enquanto contemplava sua figura repousando pacifica a poucos passos de distância e, ainda assim, tão longe...

Tal qual cantado por Michael, minhas mãos estão atadas e não há nada que eu possa fazer.

Pois é, seu pesadelo completo. Tudo que quero de Natal é você...

 

●○⸙○●

 

Dois dias depois, tivemos uma aula vaga e, mesmo devendo saber melhor, me vi colocando os fones de ouvido para me acompanhar em minha caminhada em direção à biblioteca, onde eu planejava passar o restante do período estudando alguns feitiços.

 

It's beginning to look a lot like Christmas

Ev'rywhere you go

There's a tree in the grand hotel, one in the park as well

The sturdy kind that doesn't mind the snow

 

O fantasma de um sorriso ameaçava tomar-me os lábios, pois, de fato, me via rodeado por lembretes das festividades em qualquer lugar onde fosse e aquelas palavras trouxeram à tona a lembrança do pinheiro imponente, imenso, repousando imponente no salão de jantar. O modo como seus galhos vêm mantendo uma coloração verde viva dia após dia, parecendo não se importar com o tempo ou o clima.

Gostaria de ser capaz de me manter firme e impassível diante das intempéries em minha vida tal como ele, mas não consigo exatamente não me importar com a neve, não é mesmo? Ainda mais quando no meu caso ela é tão quente, sedutora e convidativa. Ah, por causa dele, como me soa atrativo queimar...

Minha resistência tem limite.

 

It's beginning to look a lot like Christmas

Soon the bells will start

And the thing that will make them ring is the carol that you sing

Right within your heart

 

Pois é, logo os sinos vão badalar, mas sei que a canção que irão incitar bem dentro do meu coração será menos alegre do que eu gostaria, porque por pior que seja conviver diariamente com Simon, é muito pior passar os dias mergulhado em sua ausência.

 

●○⸙○●

 

Have a holly jolly christmas

It's the best time of the year

Well i don't know if there'll be snow

But have a cup of cheer

 

Não me orgulho em admitir que o ciclo prosseguiu e, a cada vez que cedia ao impulso de clicar naquela playlist, minha mortificação crescia. A citação em  Holly Jolly Christmas é tão breve que deveria ter passado despercebida e White Christmas apresenta apenas uma inocente descrição de cenário, a qual deveria ser inofensiva, mas a mera menção de neve me deixou com as bochechas coradas durante os primeiros minutos do segundo período de aulas, e tal feito não foi oriundo do frio.

(Péssimo timing para ter me alimentado recentemente).

Mas, uma vez que meu cérebro se enredou na imagem mental de um Snow gargalhando alegremente enquanto desce de trenó escorregando em uma colina coberta pela nevasca, não sou capaz de impedir minha paixão inconveniente de achá-lo absolutamente adorável.

 

I'm dreaming of a white Christmas

Just like the ones I used to know

Where the tree tops glisten

And children listen

To hear sleigh bells in the snow

 

Estou considerando as possibilidades de ter sofrido uma concussão no último jogo da temporada quando, ao escutar Have yourself a merry little christmas, – que nem sequer tem a palavra “snow”, o que deveria ser uma bênção – é “gay” que me faz soltar uma risadinha no meio do grande gramado.

Uma risadinha, por Morgana!

Eu sou patético. E perturbado.

(Pergunte pra qualquer um).

 

Have yourself a merry little christmas

Make the yule-tide gay

From now on

Our troubles will be miles away

 

●○⸙○●

 

(Christmas)

The snow's coming down

(Christmas)

I'm watching it fall

(Christmas)

Lots of people around

(Christmas)

Baby please come home

 

No dia que efetivamente nevou em Watford, me peguei entre o choro e o riso.

Porque ter finalmente o objeto de minha fixação materializado me dava uma desculpa para justificar os meus pensamentos, mas igualmente tornava impossível ignorar sua presença ininterrupta.

Para piorar, o Mago resolveu que era uma ótima oportunidade para mandar Simon sozinho em mais uma de suas estúpidas missões suicidas. Aquele bastardo...

Tudo que me restou, então, foi observar os portões da escola da janela do meu quarto, vendo a neve cair até tarde da noite, quando o peso em minhas pálpebras se fez demais para aguentar.

Em minha mente ecoava uma única súplica: Querido, por favor, venha pra casa.

 

●○⸙○●

 

Sleigh bells ring, are you listening

In the lane, snow is glistening

A beautiful sight

We're happy tonight

Walking in a winter wonderland

 

(Quando ele retornou mais tarde – a salvo, sem nenhum arranhão – foi como se sinos tocassem e eu finalmente pudesse repousar em paz, rendido em minha vigília. Uma visão encantadora de inverno.)

 

●○⸙○●

 

I'll have a blue christmas without you

I'll be so blue just thinking about you

Decorations of red on a green christmas tree

Won't be the same dear, if you're not here with me

 

Cada dia riscado no calendário era um agravante para meu tormento. Um passo mais perto do fim das provas e do recesso que tiraria Simon da minha vista por duas semanas inteiras.

Claramente meu humor não estava dos melhores e o pior de tudo era conhecer a realidade com a qual me depararia como a palma da minha mão, o mesmo contexto dos anos anteriores: uma madrasta carinhosa tentando seu máximo para que eu me sinta incluído, um pai silencioso que provavelmente se sente tão perdido quanto eu sobre como lidar com tudo isso, irmãos pequenos que não fazem ideia do que está acontecendo, eu e meu Natal triste.

Acompanhado, mas sozinho.

Melancólico, porque estarei sem a companhia da pessoa responsável por iluminar meus dias sem nem saber...

 

And when those blue snowflakes are falling

That's when those blue memories start calling

You'll be doing alright with your christmas of white

And i'll have a blue, blue christmas

 

O pior de tudo é não poder evitar me sentir assim ano após ano, nem o sentimento de vazio que me domina na sequência quando me dou conta de que ele nem sequer deve lembrar de mim por um segundo e, se o fizer, deve ser tomado de alívio por não ter de lidar com seu inimigo sarcástico e mal-humorado.

Chegando no portão da mansão da minha família sei que terei os pés afundados na neve e a mente soterrada em memórias tristes que se recusam a me abandonar e Snow estará vivendo sua vida tranquilamente, num inocente e feliz Natal.

 

I'll be home for Christmas

You can count on me

Please have snow and mistletoe

And presents by the tree

 

(Se ao menos uma vez eu pudesse permitir que as minhas barreiras caíssem, ficando em Watford para lhe fazer companhia ou convidando-o para fugir comigo. Qualquer lugar serviria, já que estar em casa seria estar em sua presença.)

(Uma ideia perigosa e atrativa onde um olhar mais demorado levaria ao riso despreocupado, um copo aconchegante de gemada e um encontrar de lábios embaixo do visco.)

 

Christmas eve will find you

Where the love light gleams

I'll be home for Christmas

If only in my dreams

 

É, apenas nos meus sonhos...

 

●○⸙○●

 

Depois desse último episódio de autocomiseração decidi que o melhor seria aguentar os últimos dias antes do recesso sem ouvir uma música natalina sequer. Tenho recorrido de Chopin à Billie Eilish e, embora meus sentimentos sigam os mesmos, de fato a situação está um pouco mais fácil de lidar.

Pelo menos estava, até agora.

Acabo de chegar do treino do futebol – o qual me recuso a faltar, ainda que o campo esteja congelando— apenas para me deparar com Simon com a cabeça enfiada entre os travesseiros.

— O que... – Ainda parado no batente da porta começo a questionar, mas sou interrompido por um som que pode muito bem ser classificado como entre um grunhido e um soluço e minha preocupação é elevada às alturas.

— Por favor, Baz. Agora não. – Sua voz sai abafada e meu coração se quebra um pouquinho mais.

— Eu não ia falar nada, Snow. Juro. Só perguntar se há algo errado. – Sem saber bem o porquê, acrescento uma última confissão em voz baixa – Tô cansado disso tudo...

De brigar. De não dizer o que sinto de verdade. De te ter tão perto e, ainda assim, tão impossivelmente longe.

Se me ouviu, Snow não dá nenhum sinal e, como temo ter feito estrago suficiente para a noite toda, vou direto para o banheiro, trancando a porta com um feitiço desleixado.

Tomo um banho quente pelo tempo necessário para que as portas do box fiquem embaçadas pelo vapor e, quando retorno para o quarto, Simon está sentado em sua cama de um modo que não mais me impede de ver seus olhos vermelhos de choro e, talvez por ter assimilado meu último comentário e decidido me dar um voto de confiança ou apenas por estar tão cansado quanto eu, se oferece absolutamente vulnerável para mim de um modo que não o via desde nossos primeiros anos em Watford.

O clima que toma a nosso quarto é frágil, quase tão diáfano quanto a fumaça liberada pelo chuveiro há poucos minutos, e, num instante, decido abrir mão de quaisquer comportamentos inapropriados e sorrisos pretenciosos que exibiria normalmente, porque não estou disposto a estragar o que quer que parece estar se apresentando aqui.

É precioso.

Sutil.

E se Simon precisa de alguém e decidiu recorrer a mim, eu o darei exatamente o que ele desejar.

(É tudo o que sempre quis.)

— Você provavelmente vai achar idiota, porque não é nada sério, mas eu tô chateado porque vou ficar sozinho de novo no Natal. Quero dizer, seria estranho ir com a família da Aggie já que não estamos mais juntos e a mãe da Penny não é exatamente minha maior fã... – Não faço ideia da expressão que exibo no momento, mas não deve ser nada muito alarmante, porque não o desencoraja e ele continua falando – Acho que o espírito festivo me abandonou por um momento, só isso. Sei que não é grande coisa e eu deveria ficar feliz que pelo menos posso ficar em Watford e não ir para um orfanato como nos verões, mas...

Ele continua tagarelando, mas minha mente está presa em algo que ele acabou de falar.

—Você passa o verão em um orfanato? Sozinho?

— Ah... sim.

Claramente essa é uma realidade que me recuso a acreditar, porque pergunto mais uma vez, estupidamente:

— Todos... todos esses anos?

Parecendo levemente envergonhado – do quê, por Merlin, é algo que me escapa – ele apenas assente e eu perco minha compostura.

— Eu não acredito nisso. Mas que merda, Snow! – Sem nem me dar conta exatamente do que estou fazendo, me vejo andando em círculos entre nossas camas numa tentativa falha de me desestressar – Como você pode não concordar comigo quando digo que o Mago é um imbecil?! Isso é... inaceitável!

— Bom, ele ainda é o mais próximo de uma família que eu tenho... – Um sorriso triste adorna seus lábios e eu moveria céus e terras para não ver esse garoto sofrendo nunca mais. Num sussurro, entretanto, como se me confiasse um segredo, ele acrescenta. – Mas argumentando assim eu não tenho muito como discordar, não?

Ok, eu realmente não estava esperando por essa.

— Você... concordou comigo? Sobre algo que concerne o Mago? Por Crowley, Snow, vamos viver um apocalipse, não um Natal.

Dando de ombros, a sombra de um riso sincero se pinta no canto de sua boca e, só por isso, a conversa toda vale à pena.

— Você sempre diz que sou bobo, talvez eu esteja ficando mais esperto.

— É, talvez você esteja...

Mesmo sabendo que o calor provido pelo banho irá se dissipar em instantes e precisarei recorrer a todas as minhas cobertas para sobreviver a noite, abro uma fresta da janela, como uma oferta de paz.

Simon mantem a boca aberta comicamente e eu tenho de me virar para a parede para que ele não veja o olhar transbordando carinho que tenho ciência de não estar sendo capaz de evitar.

Alguns minutos transcorrem num silêncio confortável. Eu tentando ler, sem sucesso, um capítulo do livro em minha cabeceira e o pesadelo de olhos azuis olhando para o teto como se lá estivessem todos os segredos do Universo.

Honestamente não sei se é consequência do vampirismo ou do fato de eu ser absolutamente apaixonado por essa ameaça de mago, mas sei com alguns segundos de antecedência que ele está prestes a quebrar a quietude do cômodo. Pelo canto de minha visão periférica vejo seu cenho se franzir e seu pulso aumentar a frequência, como se não estivesse muito certo de seu próximo ato, mas decidisse agir de qualquer modo.

— Baz, será que você podia... – Um milhão de sentimentos pintam suas feições: hesitação, vergonha, incerteza. Simon é transparente, como um livro aberto. O romance que quero ler até o final dos tempos – Não, deixa quieto.

— Fala.

E, como o Escolhido não é nada além de um corajoso do caralho, ele fala:

— É que eu realmente... não gosto de ficar triste. Boa parte da minha infância já foi miserável para uma vida inteira... Daí estava aqui pensando se você não podia, sei lá, cantar alguma coisa?

Tenho 78% de certeza de que adormeci no meio da minha leitura e isso é um sonho, então engato na conversa.

— Cantar? Pra você?

— É. Pode ser alguma coisa besta. Só pra me animar um pouco. Eu estava lembrando do outro dia, sabe? Podia até ser a nossa música... Jingle bells, lembra?

Não faço ideia da cara que estou fazendo nesse momento. Acho que perdi o controle dos meus músculos.

— Nós não temos uma música, Snow. – Se os papéis fossem invertidos e ele fosse o vampiro, os alertas de coração descompassado e respiração acelerada já estariam apitando em sua mente, porque eu estou praticamente surtando – E se tivéssemos, com certeza não seria algo tão ridículo e mundano como Jingle bells! Pelo amor, nós temos uma história épica. Com Quimeras e narizes quebrados. Onde está toda essa complexidade na porra de Jingle bells?!

Novamente, não sei o que me deu para falar tudo isso, mas valeu a pena, porque num instante Snow está rindo deliciosamente. Por minha causa. Morgana, estou vivendo uma vida encantada.

— Até onde sei, não existem muitas canções natalinas com letras passivo-agressivas, Pitch.

— Bom, eu definitivamente vou investigar e encontrar alguma que sirva melhor.

— Combinado.

Daria tudo para entender qual promessa exatamente estamos fazendo aqui, no escuro, e talvez seja por isso que lhe estendo meu celular (ilegal) aberto no aplicativo de músicas, na minha playlist de Natal.

— Vamos, escolha uma. Posso muito bem começar a pesquisa agora...

Ele me encara com os olhos brilhantes, como se eu tivesse lhe oferecido o mais precioso dos tesouros, e analisa a lista cuidadosamente por alguns minutos.

— Eu sei que foi exatamente o que disse da última vez, mas dessa vez é sério. Eu realmente não conheço essa. – Ele diz, apontando Cold December night, do Michael Bublé. – Acho até que podia ser essa...

— Quer que eu cante essa?

— Também. Mas quis dizer que essa podia ser nossa música. Quero dizer, hoje é uma noite fria de dezembro, não?

Um meio sorriso misturado com um suspiro me escapam.

— Acho que você não vai manter sua opinião depois de ouvi-la, Snow.

— Tente.

E então eu começo a cantar.

 

Stockings are hung with care

As children sleep with one eye open

Well, now there's more than toys at stake

Cause I'm older now but not done hoping.

The twinkling of the lights

As santa carols fill the household

Old Saint Nick has taken flight

With a heart on board so please be careful

 

Sei que estamos numa escola de magia e praticamos feitiços diariamente, mas é na cumplicidade desse delicado rearranjo compartilhado que me sinto eletrizado por uma força inexplicável e maravilhosa, tal como nunca antes havia experienciado.

Timidamente, Simon encolhe suas pernas, sentando-se de cócoras com os joelhos próximos ao peito, abrindo espaço para mim em sua cama. Não sei se já estivemos assim, tão perto um do outro, de modo pacifico espontaneamente e, mesmo devendo saber melhor que isso, ouso ter esperança.

De um futuro que não reserve sua espada atravessando meu peito.

De um amanhã onde meus olhos não transbordem de lágrimas.

De um contexto em que eu não precise ser o vilão e Snow não se sinta obrigado a ser o herói. Onde possamos ser apenas... felizes.

 

Each year I ask for many different things

But now I know what my heart wants you to bring

So please just fall in love with me this christmas

There's nothing else that I will need this christmas

Won't be wrapped under a tree

I want something that lasts forever

So kiss me on this cold december night

 

Não fosse a completa ausência do característico cheiro de fumaça intoxicante no ar, eu poderia jurar que Simon performou alguma espécie de encantamento sob mim, pois, embora desde o início eu soubesse a música de cor, quando o refrão chega é como se eu fosse um mero espectador me assistindo de longe sem poder interferir na cena que se desenrola à minha frente.

Se meu colega de quarto estivesse de olhos fechados, até acredito que poderia ter passado despercebido, pois não notei nenhuma oscilação particular em minha voz, mas todo o restante do meu corpo me traiu e Snow me encarava atentamente, portanto não há a mínima chance de que meu desviar de olhos e o rubor suave em minhas bochechas tenham passado incólumes.

 

A tree that smells of pine

A house that's filled with joy and laughter

The mistletoe says stand in line

Loneliness is what I've captured

Oh but this evening can be a holy night

Lets cozy on up the fireplace

And dim those christmas lights

 

(Sei que meus lábios continuam se mexendo, prosseguindo com a cantoria de modo automático, mas tudo que assimilo são as batidas aceleradas do meu próprio coração, ressoando em minhas orelhas, e os olhos arregalados de Simon que parecem conter tantas constelações quanto sua pele salpicada de pintas.)

 

So please just fall in love with me this christmas

There's nothing else that you will need this christmas

Won't be wrapped under a tree

I want something that lasts forever

So kiss me on this cold december night

 

Quando Snow finalmente se mexe, noto, embasbacado, sua mão escorregando pelo lençol até alcançar a minha. Ele entrelaça nossos dedos com um cuidado que não tenho certeza de já ter experimentado qualquer outra vez em minha vida e, se tudo terminar em chamas, partirei feliz.

Meus olhos estão marejados quando meio sussurro, meio engasgo o próximo verso.

They call it the season of giving. I'm here, I'm yours for the taking. They call it the season of giving. I'm here, I'm yours...

É como se eu respirasse livremente pela primeira vez em séculos, liberto pela confissão do segredo que um dia jurei levar comigo para o túmulo: Simon, estou aqui, Sou seu.

 

Just fall in love with me this christmas

There's nothing else that we will need this christmas

Won't be wrapped under a tree

I want something that lasts forever

 

Ainda há um restinho da canção, mas deixo que a caixa de som do meu celular se encarregue dele por mim, porque a letra da música nunca fez tanto sentido quanto agora e, se é para arriscar, preciso fazer isso hoje. Agora. Afinal, quero algo que dure para sempre e, pela primeira vez, arrisco acreditar que Simon quer isso também.

— Você quer ir para Hampshire comigo no Natal?

 

Cause I don't wanna be alone tonight

I'll wear you like a christmas sweater

Walk proudly to the mistletoe tonight

I want something to forever

So kiss me on this cold december night

 

 — Você... você quer que eu passe as festas com você?

É quase encantador que, depois de tudo que aconteceu nesta noite, seja exatamente isso que o surpreenda mais.

— Quero. Eu quero sim.

— Seria... seria incrível, Baz.

E então, como que a selar aquela como, de fato, nossa música, Simon se inclina e deposita um beijo bem no canto de minha boca, naquela noite fria de dezembro.

 

They call it the season of giving

I'm here, I'm yours for the taking

 

Mesmo tendo se apressado para o banheiro na sequência – quase esquecendo de agarrar seu pijama em meio à pressa – tenho quase certeza de que seu movimento calculado foi de propósito e, se o sorriso enorme e a vermelhidão das bochechas de Simon forem algum indicativo, acho que ele sabe que eu sei.

Pode ser que a gente resolva essa questão assim que ele retornar para o quarto, trajando apenas aquele short absurdo – tão curto que deveria ser proibido, ainda mais em pleno inverno – ou quem sabe as coisas levem um pouco mais de tempo. Mas quer saber? Eu não poderia me importar menos.

Teremos o feriado inteiro e um milhão de músicas disponíveis pela frente.

 

They call it the season of giving

I'm here, I'm yours

 

 ●○⸙○●


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Notas finais do capítulo

Feliz Natal, meus amores ♥



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