Qualia escrita por Tamires Vargas


Capítulo 1
Dissoluto


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Abriu os olhos. Fitou a parede azul. A mente vazia. As pontas dos dedos esquerdos repousadas sobre o lençol, a mão direita sob o travesseiro. Os lábios relaxaram ainda mais, abrindo-se lentamente. As memórias começavam a despertar em sua mente, as sensações acordavam conforme as lembranças lhe chamavam.

Noite. Velas. Vinho. Whisky. Gim. Tequila.

Corpos.

Cinco além do seu. Belos. Diversificados. Singulares. Iguais a tantos outros. Apenas mais uma rodada de corpos que foram bebidos em uma só noite.

Notou sua identidade na mesinha de cabeceira. Pegou o documento, fitou seu rosto naquela foto malfeita. “Júlio César”. Nome de imperador, homem notável, poderoso... Nada tinha em comum com a grande figura que escreveu seu nome na história.

Jogou a identidade na cama e levantou. No celular, 35 mensagens de 13 pessoas diferentes. Dois desconhecidos. Ainda eram oito horas e mal se passaram cinco desde a última vez que falou com os desconhecidos. Eles estavam na noite anterior até ela se tornar a madrugada de hoje. As fotos o ajudaram a lembrar ao mesmo tempo em que provocaram uma leve dúvida. Ele não havia reparado em seus rostos quando estiveram juntos. Não importava gravá-los, menos ainda olhar para eles.

Contato visual era irrelevante para Júlio, em alguns momentos, perda de tempo. Por que olhar se você pode sentir? Ver o tirava da sensação e o jogava na razão de uma forma desagradável. Embora fosse expert em diluir a si mesmo em sensações, não conseguia contornar seu cérebro todas as vezes.

César não gostava de pensar. Não gostava de raciocinar nem por um segundo nesses momentos. Era como ser arrancado de um sonho. Um sonho com corpos a sua disposição. Corpos nos quais mergulhava até se afogar.

Júlio adorava se afogar em corpos. César precisava se afogar em corpos. Júlio César adorava precisar, e precisava adorar, se afogar em corpos.

Leu as mensagens. Ignorou os nomes. Um convite para um jantar entre amigos na casa de um tal Lucas. A outra, um convite para sair a dois. Grupo ou dupla. Uma mulher objetiva ou um cara que almejava exclusividade.

Descartou ambos. Sua saliva pesava na boca.

Cuspiu na pia do banheiro.

Demorou a erguer o olhar e encarar seu reflexo. Suas mãos apertaram a louça fria. Fitou a si mesmo.

A noite passada revolveu seu interior. As cenas vieram fora de ordem, flashes. De pernas, braços, costas. De corpos no chão, mesa, sofá. De 2 ou 3. De 6. De névoa de cigarro, banho de Gim, óleo de massagem.

As voltas agora se deram em seu estômago.

Júlio domou a ânsia que impulsionou seu tronco para frente. Encostou a testa no espelho, olhando para o ralo. Aquela pequena escuridão conversou com algo dentro de César. Eles falavam a mesma língua embora suas origens fossem diferentes.

Outro flash. Mais outro. E outro. Todos de lugares onde a língua de Júlio César havia passado.

O enjoo falhou em tentar expulsar comida, mas a dor que provocou não o deixou ir sem vitória. Júlio pensou num palavrão que não saiu pela boca. César pressionava a barriga como se isto pudesse trazer alívio.

Respirou. Tomou coragem. Olhou seu reflexo de novo. Não se encontrou. Não conseguia fazer as perguntas para si mesmo. Apenas sentia. Algo como mãos lhe tirando a pele da alma como se puxasse para baixo uma roupa. Estava nu em si mesmo e para si mesmo. Tremeu. A fragilidade soprou sobre ele como um vento forte.  

Era um devorador, mas também era devorado. Noites e mais noites. Manhãs e tardes. Por pessoas próximas e desconhecidos. Por prazer, volúpia, como pagamento ou troca.

Sua mente lhe trouxe um microfilme. A oferta de uma promoção no trabalho, seu corpo de 22 anos muito apreciado pelo seu supervisor, “só uma noite” e 1 ano como amante de um homem na casa dos 50.

Expirou. Os fios castanhos começavam a grudar no suor dos ombros. Contraiu seus músculos com uma força desnecessária. Não havia ninguém ali que pudesse adentrar nele. Diferente da noite passada.

A respiração acelerou. Seus olhos ficaram nublados de água.

Júlio César sentiu seu coração incomodar dentro do peito. Estava desencaixado, grande demais para aquele lugar.

Ele não conseguia, mas parte de suas emoções questionavam o porquê. Coisas assim eram comuns no início, mas depois de dez anos, incontáveis corpos e camas, aquela gama de sensações não fazia sentido. Ainda assim, ela sobreveio a Júlio como uma forte chuva. Ontem ele havia se perdido entre outros por vontade, hoje ele se perdia em si mesmo sem saber como encontrar a saída.

As cenas vieram como avalanche desta vez. Inúmeros rostos que não lhe diziam nada, vozes que não sabia dizer a quem pertenciam. Corpos, corpos, corpos... Sobre ele, embaixo dele, uns sobre os outros.

César não pode conter seu estômago dessa vez. Um líquido de cor indefinida escapou dele, deslizando pela louça até desaparecer pelo ralo. As lágrimas iam junto, embora a tristeza não as tivesse chamado para fora.

Limpou a garganta.

Júlio César não conseguia dar nome ao que sentia, mas sabia que a solução para aquilo não era se dissolver nos outros. Estava dolorosamente dissolvido em si mesmo e precisava encontrar uma forma de ficar inteiro de novo.

O celular tocou. Um amigo queria lhe visitar ainda pela manhã.

Júlio discerniu a intenção pelo tom de voz. Tremeu. Era o escape. A forma a qual seu cérebro sempre recorria para aliviar o estresse. Aceitar significava formar novas lembranças com o amigo e a garota maravilhosa que ele traria consigo. A garota que estava doida para conhecer César e tomar café-da-manhã. Na cama. Os três.

A garganta secou o som das palavras. O mundo deu meio giro e um sorriso torto se formou na boca dele. Esquecer o ontem com o hoje, depois o hoje com o amanhã. Sempre foi assim. Tudo para evitar que a consciência ganhasse espaço.

Fechou os olhos.

Disse “não” esperando que o outro insistisse, mas seu tom firme não deixou dúvidas ao amigo. O arrependimento lhe beijou com paixão e ele tencionou retornar a ligação. O dedo a milímetros de distância. Dopamina fácil em alguns minutos. Continuar no ciclo que o embalava. Sua zona de conforto de luxúria.

Apertou.

Viu-se no espelho do quarto. Nu, sozinho, desesperado por qualquer corpo que lhe ajudasse a se desprender de si. O eu para o qual sempre voltava, não importava a quantidade de pessoas na qual se dissolveu. Aquele que se achava miserável por vários motivos e do qual fugia. Jogou o celular na cama. Caminhou até o espelho. Observou a si mesmo por um longo tempo. Beijou o reflexo. Desejou ter-se por inteiro.

Júlio César percebeu que olhar não atrapalhava sentir. O que sentia naquele momento era uma vontade imensa de não se perder e sua razão concordava com isso.


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Notas finais do capítulo

Até a próxima!



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