Uma Hora a Mais escrita por André Tornado


Capítulo 4
Existem tantas maneiras de disfarçar




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Por volta de meados de setembro, Mike tinha o seu canal de Twitch em pleno funcionamento. Já só fazia as lives nessa plataforma, tinha um sistema de subscritores e diversificara as atividades que transmitia, diariamente, para uma legião de fãs que, na sua base, eram os mesmos que estavam com ele naquela brincadeira desde março. Havia um núcleo e havia as franjas. No centro daquele organismo, podia dizer-se, existia um grupo que o iria acompanhar até ao fim e que geria a parte volátil do canal com uma abordagem franca que limava eventuais exageros. A comunidade à qual presidia funcionava razoavelmente bem.

Embora tudo fosse civilizado e amigável, Mike não conseguia evitar fartar-se daquilo, mais pela obrigatoriedade de aparecer todas as manhãs e mostrar-se ao mundo, do que pelas pessoas que, pacientemente, aguardavam por passarem um par de horas na sua companhia. Pensava se não criara um monstro, porque lhe exigiam demasiado e ele nem sempre tinha paciência para ser diplomata. Mas ia levando os dias, um depois do outro, a conselho da Anna. Se não quisesse, não tinha de fazer a transmissão. Era simples. Ele continuava a ser o dono daquilo e podia terminar com as lives de um dia para o outro e ninguém tinha o direito de lhe exigir explicações.

A pandemia continuava a acontecer no mundo, as pessoas tinham-se habituado a lidar com os novos procedimentos que visavam evitar contágios e infeções pelo vírus – usar máscara facial, distância social, lavar frequentemente as mãos – Mike andava mais ocupado, pois era mais solicitado. Tinha publicado três álbuns online que compilavam as músicas que compusera nas lives e havia ainda o aniversário de Hybrid Theory, o primeiro álbum dos Linkin Park que o catapultara para a fama e, em última análise, que o conduzira ao que ele fazia agora.

O Chester continuava a aparecer. Andava mais calado. Limitava-se a ficar deitado no sofá, com os braços sobre a cabeça, a suspirar e a pensar num qualquer problema que ele remoía dentro de si. Mike não ousava perguntar o que era porque conhecia-o. O outro tinha de tomar a iniciativa e falar de livre e espontânea vontade. Quando ele se punha com perguntas, Chester agia como uma ostra. Fechava-se com mais afinco, incomodado com os seus defeitos, a mastigar repetidamente num intenso complexo de inferioridade.

Por isso, mesmo que aquele não fosse bem o Chester que ele conhecera, continuava sem conseguir classificá-lo, deixava-o estar no sofá, observando-o de tempos a tempos, a ver se ele já estaria preparado para desabafar e contar o que o incomodava. Também sentia uma curiosidade incómoda. O que poderia preocupar o Chester atual?

Numa tarde em que Mike se sentia esgotado, estava numa daquelas semanas atravessadas em que tinha sono de manhã e uma insónia terrível à noite, o filho fora até ao estúdio com a missão de lhe entregar um caderno para que ele assinasse os trabalhos de casa que estivera a fazer.

O miúdo passou pelo sofá e Chester cumprimentou-o:

— Ei, Otis.

— Ei.

Mike congelou. Recebeu o caderno de forma automática e ficou de braço estendido e hirto a ver o filho dar meia volta, passar novamente pelo sofá, levantar uma mão para complementar o “ei” anterior, subir as escadas e desaparecer.

— Chester… fica aqui. Eu não me demoro. Tenho de ir resolver um… assunto.

— Claro, buddy. Não vou a lado nenhum.

Mike deixou o caderno na mesa e correu atrás do filho.

— Otis! – chamou.

Ele apareceu vindo da sala, deslizando pelo soalho com as suas meias brancas.

— Sim, pai?

— Otis… eh. Agora mesmo, no estúdio…

Não sabia como solicitar o esclarecimento. Temia ser direto, mas se andasse com rodeios muito elaborados podia alimentar uma confusão desnecessária e ele não queria histerismos, porque convivia com aquele estado de coisas havia já algum tempo. No fim, se o engano engrossasse, a culpa iria recair toda em cima dele, que andara a esconder uma questão tão importante: a de que estava a perder o juízo.

— Sim, pai?

— Tu disseste olá a… tu viste-o?

— Sim, pai. Vi – respondeu Otis inocentemente.

— Viste?

— Sim, pai. É o teu amigo. Ele veio visitar-te hoje. Ele disse-me olá e eu respondi. Fiz bem, não fiz? Estás sempre a dizer-me para cumprimentar todas as pessoas, mesmo que tenha vergonha.

Mike teve uma tontura. Apoiou-se na parede para não cair.

— E achas que… achas que está tudo bem.

— Pai, estás a sentir-te doente?

— Não, não te preocupes comigo. Otis, achas que está tudo bem. Não achaste… estranho? Podes contar-me, filho. Estou aqui para escutar-te e prometo que não vou fazer nenhum comentário que te possa melindrar.

— Sim, está mesmo tudo bem e não tenho nada para contar. Ele é teu amigo, não é?

— É, Otis. É o meu amigo.

— Podias pedir-lhe que me fizesse um desenho, só para mim? Eu juro que não mostro a ninguém.

A pergunta foi uma lança que lhe atravessou o crânio. Mike endireitou-se, subitamente lúcido.

— Um desenho? – perguntou num tom grave.

— Sim, ele desenha tão bem. A mãe mostrou-me o desenho que tu fizeste com ele no outro dia, da Zelda. Ficaram dois desenhos muito bonitos, o teu estava bonito, mas gostei mais daquele que o Dave fez. Era mais… era mais épico!

— Estás a falar do Dave Greco! – exclamou Mike com um alívio tão grande que os seus joelhos fraquejaram e teve de se agarrar novamente à parede para não acabar sentado no chão.

— Sim. Não é ele que está no estúdio, pai?

— É o Dave, sim! É ele! É ele! – confirmou Mike, mostrando as mãos. – Queres que eu te assine os trabalhos de casa? – indagou para mudar de assunto. O filho não tinha visto o Chester, e tendo-o visto, como ocorrera, tomara-o por outra pessoa. Passara por ele e nem se apercebera que era o Chester. A sua mente, mais jovem e fresca, associou a presença a alguém que efetivamente podia estar em casa, de visita.

— Sim, pai. O professor pediu-me a tua assinatura e tu não tens conferido os meus trabalhos todos os dias, como pediram na escola. É aborrecido, sou o único menino que não tem isso em dia.

— Oh, não foi a minha intenção. Vou já assinar-te o caderno. Queres que fale com o teu professor?

— Não pai! – exclamou Otis alarmado. – Isso ainda seria pior. Tenho inventado umas desculpas para justificar a falta das assinaturas. Tenho dito que tens estado muito ocupado e tal, se falas com o professor destróis o que ando a fazer para me safar e para te safar a ti também, e perco a possibilidade de me justificar mais tarde.

— Tens andado a mentir ao teu professor?

— Pai, não é mentira que tens estado ocupado.

— Por acaso… não é – concordou Mike, assentindo. – Mas não preciso que me…

Uma voz surgiu das escadas que levavam ao estúdio.

— Mike, sei que temos a agenda muito cheia, que os prazos estão apertados, mas estou a precisar de uma folga. Preciso de resolver uns problemas. Tenho de sair.

A voz do Chester! Mike empalideceu, Otis franziu a testa. Duvidou do que estava a ouvir, certamente. Uma perturbação que lançou uma pequena, mas crucial, suspeita. Muito possivelmente não sabia como soava o Dave Greco, mas era perfeitamente capaz de identificar a voz do tio Chester que brincara tantas vezes com ele. E estava a escutar o Chester, sabendo que teria de ser o Dave Greco.

Mike correu até às escadas e antes de o Chester chegar ao piso, intercetou-o. Colocou as mãos espalmadas sobre o peito dele e empurrou-o devagar, para que não tropeçasse e caísse pelos degraus abaixo.

— Queres uma folga? Eu dou-te a folga.

— Mike, o que é que estás a fazer? Quero beber um copo de água e tu estás na minha frente. E sim, preciso de uma folga. E de sair.

— Eu trago-te a água. Podes sair sempre que quiseres. Não te prendo aqui.

— Como é que é?

Otis aproximava-se, desconfiado.

— Pai?

Mike largou o Chester no meio das escadas. Apoiou as mãos nos ombros do filho, fê-lo voltar-se e encaminhou-o para a sala, obrigando-o a andar tão rápido que as meias derraparam no chão.

— Eu já te trago o caderno assinado, Otis. Fizeste muito bem com o teu professor e é realmente verdade que tenho estado muito ocupado. Para a próxima, por favor, avisa-me e vai falar comigo, mesmo que eu te pareça atarefado e sem tempo para nada. Para ti e para as tuas irmãs terei sempre tempo. Combinado?

— O que é que se passa, pai?

— É o Greco… é o Dave. Quer beber água e eu vou fazer também um chá.

— Ah… está bem.

Mike deixou o filho na sala e fechou a porta. Ao virar-se, Chester estava a ir para a cozinha. Correu e tornou a intercetá-lo.

— Espera! Eu preparo-te uma garrafa térmica. Não preferes um chá? Vamos beber chá.

— Chá? Que tipo de chá, Mike? – perguntou Chester contrariado, e suspirou aborrecido.

— Qualquer tipo. Conta-me lá por que motivo tu precisas de uma folga enquanto eu preparo um chá. Vai acalmar-te, acho que andas demasiado tenso.

— Posso sentar-me, ou é proibido?

Mike ouviu a porta da rua abrir e fechar-se, os risinhos alegres das filhas e a Anna, que vinha atrás delas, a mandá-las para o quarto para se prepararem para o banho.  Barulho das chaves, farfalhar de roupas, os baques secos de quando se descalçavam, a porta do armário a abrir-se e a chiar, a agitação normal de quando entravam em casa.

— Merda… Não, não te podes sentar – avisou, puxando o Chester por um braço que tinha agarrado numa cadeira. – Vamos para o estúdio, eu levo-te a água e o chá.

— Pode ser só o chá. Queres ouvir-me, ou estás atrapalhado? Nem parece teu, Mike… costumavas gerir melhor as situações. Eu é que nunca soube organizar nada.

— A Anna trata das meninas, o Otis está entretido na sala, a ver televisão e eu estou livre. Sim, está tudo sob controlo! E eu trato de ti – explicou Mike, com o coração a querer falhar, a bater tão depressa. Estava à beira de um ataque cardíaco, temeu.

Deixou o Chester no fim das escadas, já dentro do estúdio, regressou à cozinha numa corrida. A Anna apercebeu-se de que ele estava ali e foi dar-lhe um beijo. Perguntou-lhe se estava tudo bem, ele respondeu que sim e ela insistiu, porque ele parecia cansado.

— E estás a transpirar. Precisas de um banho também, como as tuas filhas.

Mike levantou um braço e cheirou a axila. Veio um odor pestilento, a suor concentrado. Ele concordou para ver se ela se afastava, iria tomar esse banho, depois de fazer um chá. Ela adorou a ideia e disse-lhe que já vinha beber o chá com ele. Mike fechou os olhos, num desânimo tal que se esqueceu que tinha a torneira aberta, salpicou água por todo o lado quando o depósito da chaleira elétrica encheu mais depressa do que estava à espera.

Praguejou, a morder cada palavra amarga. Deixou a chaleira na bancada e foi buscar a esfregona para limpar o chão. A seguir enxugou o exterior da chaleira com um pano que atirou de qualquer maneira para cima do escorredor da loiça, ligou-a a uma tomada elétrica para aquecer, finalmente, a água para o chá.

Uma música alta surgiu do estúdio, num remoinho espiralado de vibração e harmonia, que juntava várias texturas sonoras. Reconheceu uma das suas publicações mais recentes, a faixa ‘A Thousand Jams’ do seu infame Dropped Frames, terceiro volume. Foi para correr para o estúdio, sabia que fora o Chester que pusera a canção a tocar, mas a chaleira apitou indicando que a água estava pronta e a Anna entrou na cozinha para deixar aí as lancheiras das filhas que lavava todas as tardes, no fim da escola, com uma solução desinfetante à base de lixívia.

— Mike, a música está demasiado alta.

— Já a ia baixar, querida.

— Quero o meu chá pouco forte, por favor.

— Sim, querida. Estava a pensar numa infusão de ervas e flores… para acalmar. Também preciso. Posso estar cansado, sim. Tens razão. Tens toda a razão.

Retirou três canecas do armário e foi até à caixa do chá. Passou os dedos pelos pacotes, um pouco irritado e frenético, escolheu uma mistura que continha cidreira e que o ajudava a dormir. Enfiou os três pacotinhos nas canecas. Captou um olhar afiado da Anna e largou aquela tarefa, levantando os braços num sentido de rendição, resmungando que ia primeiro tratar do barulho, sim, já tinha percebido.

Ao chegar ao estúdio, tocava ‘Sidechain Gang’. Chester estava de pé, a escutar os temas que se mostravam fixos no monitor, a playlist ilustrada pela capa do álbum, uma vaca perplexa a ser raptada por um OVNI, mais algumas figuras icónicas do seu canal, como um wombat e a tartaruga Julio. Lembrou-se que tinha combinado com os seus seguidores fazer desenhos personalizados para cada uma das músicas, ficaria ocupado nos próximos tempos a desenhar e já não tinha de se preocupar em inventar o que fazer nos seus diretos.

— Chester? Podias… baixar o volume? – pediu, olhando por cima do ombro, a verificar se não tinha sido seguido.

— Hum? Claro que sim… Gosto destas músicas. Vais mostrá-las aos outros, uma ou outra, para serem a base para novas canções da banda? Acho que têm potencial. Também tenho escrito umas letras. Estão no meu telemóvel… que não consigo encontrar. Vou ter de comprar outro telemóvel, pelos vistos.

— São… as músicas que tenho estado a criar no canal – hesitou Mike, carregando uma sobrancelha. – Tu és meu seguidor, Chester. Ganhaste pontos no meu canal para me comprares a visita à ilha do Animal Crossing e… de certeza que assististe às lives onde eu criei as músicas, a partir de sugestões dos outros seguidores.

Um estremecimento sacudiu Chester.

— A sério?

— Sim, Chester. Estás a pôr a tocar o terceiro volume dos meus álbuns que compilam essas músicas…

O amigo estava tão baralhado que Mike ficou intrigado. Chester demonstrava que estava a ouvir aquilo pela primeira vez, tudo englobado. As músicas, o facto de ele ter um canal onde fazia diretos, a visita à ilha.

— Ah… então isso quer dizer que estas demo não estão disponíveis? – perguntou Chester desiludido. E repetiu, quase a implorar: – Tinham potencial…

— Claro que estão disponíveis, os temas pertencem-me e posso fazer deles o que eu quiser. Agora publiquei-os porque os meus wombats mo estavam a pedir com alguma insistência e porque gosto também dos temas, dão uma excelente banda sonora para diversos momentos e uso-os até quando estou a desenhar. No meu canal, também.

Escutou um barulho nas escadas e resolveu sair dali. O volume do som já estava mais baixo e a sua missão estava concluída. Fez um sinal com a mão, enquanto recuava.

— Eu já te trago o chá, está bem? A água está quente e tenho a caneca preparada. Dois minutos.

— Está bem, Mike…

— Senta-te. Podes usar a minha cadeira à vontade.

— Posso usar o trono do rei sem problema? – Chester sorriu-lhe, manhoso.

— Podes, claro que sim.

— No teu antigo estúdio não gostavas que eu…

— Esquece o que acontecia no outro estúdio, aqui é diferente. Dois minutos.

Subiu as escadas e regressou à cozinha. A Anna tinha posto um vestido mais prático e calçara umas meias diferentes. Estava a guardar a terceira caneca e Mike paralisou. A mulher entregou-lhe uma caneca que fumegava.

— Aqui está o teu chá, querido.

— Obrigado – gaguejou. Com a caneca quente nas mãos, olhava fixamente para o armário onde a Anna guardara a terceira caneca.

— Vais beber isso de pé?

— O quê? – despertou com um estalo. – Sim… não. Sim, vou beber de pé.

A Anna desconfiou dele.

— O que se passa?

— Nada. – Escondeu-se na caneca, enquanto bebia um trago do chá. Estava a ferver e queimou-lhe a ponta da língua, mas não se queixou e fingiu que estava mesmo tudo bem com ele.

Ela sentou-se à mesa, olhando-o de tempos a tempos, entre pequenas sorvedelas, fora mais cautelosa na abordagem à bebida quente. Ele perguntou sobre como tinha corrido o dia, como fora a escola das meninas que já estavam na banheira, pela algazarra que faziam no piso de cima. A Anna começou a falar e ele desligou ao fim de trinta segundos. Tinha de arranjar maneira de ir levar o chá ao Chester nos próximos dois minutos e era nisso que ocupava o seu raciocínio. Podia levar-lhe a sua caneca, mas se voltasse sem esta do estúdio… podia ser uma possibilidade. Não dizia ao Chester que tinha bebido por ali, limpava-a pelo caminho, porque o Chester tinha repentes e considerava coisas nojentas que não o eram, quando noutros dias bebia dos copos de toda a gente sem problema nenhum. Sim, era isso mesmo que iria fazer. Iria levar aquela caneca e…

Mike levantou a cabeça e perdeu toda a força no corpo.

O Chester emergia do corredor, a andar casualmente. Até coçava a parte de trás da cabeça.

Os seus dedos abriram-se e a caneca espatifou-se a seus pés, salpicando chá a ferver por todo o lado. A Anna gritou. Levantou-se e perguntou-lhe, zangada, o que tinha acontecido para que existisse aquele desastre de cacos e líquido. Ele não se queimou porque vestia umas calças de fato de treino de um tecido mais grosso e as meias também eram grossas com solas antiderrapantes.

O Chester continuava a aproximar-se.

Mike atirou-se para cima da Anna e beijou-a bruscamente na boca. Foi com tanta aflição que bateu com os dentes nos dela. A mulher empurrou-o, indignada.

— Michael… o que pensas que estás a fazer? De certeza que estás a sentir-te bem?

Fez uma segunda investida e abraçou-a.

— Eu amo-te, Anna!

Chester estava perto…

— Deixa-me limpar isto. Depois vamos conversar

— Elas estão a chamar! – gritou Mike a ver o tempo a escoar-se, a sentir-se apertado na armadilha, cada instante a puxá-lo para o inevitável. – Acho que é a Abba.

— A Abba?

— Sim, e a Jojo também. Vai ter com elas, eu limpo isto. Desculpa, Boo… estava a pensar numas coisas e foi uma estupidez da minha parte. Podia ter-me magoado. Vai ter com elas, eu fico a arrumar a porcaria que fiz. Desculpa. Desculpa. Vai ver as meninas, por favor.

A Anna saiu por uma porta, ao mesmo tempo que o Chester entrava pela outra. Mike ia atender o amigo quando, pelo canto do olho, viu o Otis a cruzar-se com a mãe. Atraído pelo barulho, vinha ver o que se passava, naquela curiosidade típica de criança. Mike intercetou-o a tempo. Segurou na porta, quase fechando-a. Otis estacou para não levar com esta no nariz. Ele disse ao filho que fosse tomar banho, pois as irmãs já estavam também a tomar banho. Otis pestanejou, confuso, mas resolveu obedecer ao pai e deu meia volta.

Encostou a porta, para barrar olhares indiscretos. O Chester olhava para a caneca estilhaçada no chão. Mike disse, enquanto retirava duas canecas do armário com uma mão e abria a caixa do chá com a outra:

— Vamos beber o chá no estúdio. Aconteceu aqui um acidente, como podes ver.

— Está bem…

Tinha de ser rápido. Em breve a Anna ia perceber que as filhas não a tinham chamado e estaria na cozinha, para discutir a questão de ele se mostrar tão agitado e instável. Não descansaria enquanto ele não fosse ao médico e talvez fosse melhor ele ser consultado, porque sentia-se exausto e pressionado, ao ponto de embirrar com coisas mínimas. Estava a ter um esgotamento nervoso, de certeza… e a arranjar problemas de coração por arrasto.

Entregou a caneca ao Chester, conduziu-o de volta ao estúdio, empurrando-o pelas costas. O amigo deixou-se levar, sem acrescentar perguntas e Mike, francamente, não queria que lhe perguntassem mais nada. Com todo aquele alvoroço também não lhe apetecia fazer nada. Nem sequer beber o chá.

— Então, conta-me lá – pediu sem fôlego, a tentar encher os pulmões, mas ficava-se sempre pela metade. Iria ter um ataque de asma? Descartou essa hipótese. Era o stresse, mais nada. Era a presença inaudita do Chester, mais nada.

— Conto-te o quê? – estranhou Chester, soprando o seu chá para arrefecê-lo.

— Queres… fazer uma pausa?

— Sim, Mike. Uma pausa.

— Faz todas as pausas que quiseres, dude! Em todos estes anos em que temos estado… juntos… – aqui, Mike hesitou ligeiramente, porque tinha havido um intervalo. – Bem, em todos estes anos em que estivemos juntos nunca foi necessário pedires-me autorização para nada. Vai lá fazer o que tens a fazer e resolver os teus problemas.

— Pensei que tínhamos um prazo apertado para cumprir.

— Não, não… Não há prazo nenhum. – Mike apertou a cana do nariz, descerrando as pálpebras e aquela pequena escuridão soube-lhe bem. Ao fundo continuava a tocar o terceiro volume de Dropped Frames. – Podes ir e depois voltas.

— Tu chamas por mim?

— Eu não sei fazer isso…

— O quê?

— Tu voltas… quero dizer, avisa-me quando estiveres despachado. Combinado?

— Combinado. Estás com um péssimo aspeto. Tu também estás a precisar de uma folga.

— Tenho dormido mal. Já tu… estás muito bem, Chaz. Gosto de te ver… assim como estás. Quem diria… sei lá, nem sei o que estou para aqui a dizer.

— Gostas? Não me sinto… muito bem.

— Isso é possível? Não te sentires bem quando… Bem, se calhar tudo é possível, já que estamos a ter esta conversa.

— Ultimamente andas demasiado misterioso, Mike. Não te consigo entender bem. Falas por enigmas e inventas umas tretas que eu custo a decifrar. Existe um problema de comunicação, é o que me está a parecer.

— E os teus problemas de memória? – atirou Mike ácido.

— Pois, eu disse-te que não me sinto bem. Por que motivo estás a ser tão agressivo?

Chester fez aquela expressão atarantada, como se estivesse a acordar naquele instante e quisessem que ele funcionasse em pleno quando ainda estava a carburar a máquina que arrancava aos solavancos.

— Não estou a ser agressivo. E se achas isso, não era a minha intenção. De todo. Chester… tu percebes que… tu percebes que não deverias estar aqui, certo?

— Não queres que venha à tua casa?

— Não é isso, buddy. Não me interpretes mal. – Mike tentou suavizar o tom da sua voz, mas custava-lhe a falar com o cansaço que lhe tolhia o corpo. – Chester… tu sabes o que aconteceu, não sabes? Por favor, tens de me ajudar para que eu te ajude!

— O que aconteceu… como?

— Por amor de Deus, Chester! Assim é que existe mesmo um problema de comunicação entre nós. Eu gosto muito… eu adoro ter-te aqui, mas não sei até que ponto é que deva manter este estado de coisas… contigo. Desconheço o que é a verdade para ti, da tua perspetiva. Talvez devêssemos conversar, os dois, a sério… sem ser desta maneira, aos pedaços, a fugir deste ou daquele porque eu não sei se estão na mesma dimensão do que nós.

— Está bem – concordou, só para lhe fazer a vontade.

Não era bem isso o que Mike queria, mas era melhor do que nada. Isso. Iriam os dois conversar sobre… sobre o que era aquela situação.

Lembrou-se, de repente, do chão por limpar. Deixou a caneca cheia, mal tinha tocado no seu chá, em cima do balcão de apoio, que ficava nas costas do sofá, correu escada acima, alcançou a cozinha ofegante, suado e lívido. Foi buscar uma vassoura e uma pá, para apanhar os cacos, mas seria melhor apanhar primeiro o excesso de líquido. Retirou um punhado de guardanapos de papel, agachou-se e absorveu o chá frio, tendo o cuidado para não se cortar com os cacos. Sentiu um toque no braço e gritou.

— Mike, sou eu…

Alarmado, pôs-se de pé. Estava demasiado embaraçado com o seu descalabro para aceitar o consolo de quem quer que fosse. Não queria compreensão para o seu presente caso.

A Anna tentou segurá-lo, mas ele sacudiu-a e regressou ao estúdio.

O Chester já não estava ali. A sua caneca de chá, contudo, estava vazia ao lado da dele, que continuava cheia, o chá arrefecido. Por debaixo da caneca havia um papel dobrado, arrancado de um caderno. Tinha uma marca, um círculo molhado provocado pela base húmida da caneca, que borrava a tinta da esferográfica. Ele reconheceu a letra gatafunhada que o Chester escreveu para ‘Open Door’. Essa canção já estava fechada. Fazia parte do primeiro volume de Dropped Frames e naquele dia estavam a escutar o terceiro volume. Tinha havido muitos acontecimentos de permeio e ele não teve a oportunidade de aproveitar a colaboração do Chester.

Os ombros sacudiram-se-lhe num soluço.

Agarrou no seu telemóvel e ligou para o número do amigo, que ainda conservava na sua lista de contactos. Chamou cinco vezes e desligou, a seguir. Não ouviu qualquer música genérica por perto, logo, o Chester não tinha perdido o aparelho no seu estúdio.

— Claro que não, estúpido! – exclamou Mike para o ar. – Os fantasmas não têm telemóveis!

Estendeu-se no sofá, cobriu o rosto com os braços, naquela posição que ultimamente via o Chester adotar. Suspirou longamente, libertando peso do peito e, aos poucos, foi conseguindo respirar melhor. Concentrou-se nos seus movimentos respiratórios. A Anna não tinha vindo à sua procura. Estaria, de certeza, a telefonar para a amiga que era psicóloga. Em breve iria ter uma consulta. E o que iria ele dizer à médica? Que estava a ser visitado pelo amigo defunto? Não podia contar isso! Ainda seria internado e deixava de poder fazer as suas lives, diariamente, de manhã.

Que escândalo não seria. Mike Shinoda, dos Linkin Park, não aguentara as exigências derivadas da pandemia, a quarentena, o confinamento, o isolamento social, queimara os fusíveis e fora internado numa clínica para recuperar o juízo.

Ele não iria deixar que isso acontecesse. Não, era demasiado orgulhoso – e porque, naquela ocasião, ele não tinha queimado nenhum fusível, nem tinha perdido o juízo.

O Chester visitava-o, efetivamente. Ele via-o e conversava com ele – e naquele dia o Otis também o vira! Logo, o Chester existia, de tempos a tempos, na sua casa.

Para começar, iria esclarecer tudo com o Chester. A tal conversa. Sentavam-se os dois e ele falava com o amigo, com toda a franqueza e despido dos seus receios, pois ele tinha medo, essa era a verdade, um medo paralisante de lhe dizer adeus pela segunda vez, sabendo que muito provavelmente seria para sempre.

Torceu-se com essa dor que lhe cruzou o coração.

É esse o motivo, não é Mike? Admite-o, seu cobarde… Admite.

Não se queria despedir do Chester.

Tinha-o feito vezes sem conta, infelizmente.

Tinha dito adeus ao Chester uma e outra vez. E ficara farto.


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Notas finais do capítulo

Próximo e ÚLTIMO capítulo:
Não se pode ficar com o que nunca se teve.