Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 12
In Memoriam




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Imediatamente após destruir a nave-masmorra, a USS Iguaçu retornou ao planeta Suffodio e, para a surpresa do mestre Fraxinus e dos dendronianos, devolveu as dezessete pessoas resgatadas dos sádicos. Como o combate havia sido duro e a USS Iguaçu sofrera severas avarias, o engenheiro-chefe e as equipes de reparos teriam que trabalhar incessantemente por pelo menos dois dias, motivo pelo qual o capitão determinou que permanecessem em órbita do planeta durante esse período. Na manhã seguinte ao confronto, o capitão Vernon presidiu a cerimônia fúnebre em honra ao alferes Abaroa, realizada no auditório da nave. Seu oficial comandante, Sinel Da’Far Sinel, assim como outros dois colegas mais próximos, fizeram breves discursos ressaltando sua personalidade e características distintas. Embora não fosse raro que tripulantes perdessem suas vidas no cumprimento do dever, o sentimento de pesar era sempre relevante e, devido a isso, apenas as operações essenciais foram executadas naquele dia. 

Embora inicialmente tivessem duvidado da descrição dos sádicos feita pelos dendronianos, assim que o doutor Horvat relatou as condições em que se encontravam os feridos, ficou claro que ela não continha exageros. Cada um dos prisioneiros havia sido torturado e mutilado de modo diferente, mas sempre com extrema crueldade e características de perversidade impensáveis. Um dos dendronianos tivera suas pernas retalhadas e sua pele arrancada completamente, outro tivera parte de seus órgãos removidos e fora violentamente eletrocutado. Vários deles foram cegados, tiveram suas línguas arrancadas e seu sangue envenenado com produtos que induziam convulsões extremamente dolorosas. Como se isso não fosse terrível o suficiente, as torturas sempre ocorriam na presença de outro prisioneiro, o qual assumiria o lugar de vítima assim que o primeiro morresse. Além do terror de ver seus colegas sendo brutalmente torturados, os prisioneiros muitas vezes passavam primeiramente por outros tipos de torturas psicológicas, e a grande maioria havia retornado em estado de choque e paranoia. 

Mesmo essa conduta sendo sórdida o bastante para provocar repugnância em qualquer espécie minimamente civilizada, os sádicos ainda injetavam em seus prisioneiros uma droga que os mantinha acordados mesmo em condições de extremo estresse físico e mental, apenas pelo abjeto prazer de ver a vítima consciente enquanto sofria. De forma semelhante, utilizando um poderoso gás paralisante, mantinham o prisioneiro “expectador” preso e com os olhos bem abertos, impedindo que ele desviasse o olhar das atrocidades infligidas aos seus amigos e colegas. 

Os tripulantes da USS Iguaçu não haviam sido poupados das perversidades praticadas por aquela espécie vil. O subtenente Awl presenciara a tortura e a morte sangrenta de Abaroa e, e em seguida, teve seus próprios ombros perfurados por grandes ganchos de metal e seu corpo imerso em um líquido oleoso fervente, causando a dor mais excruciante que já sentira em toda sua curta vida. Os torturadores não demonstraram ter intenção de parar suas ações, mesmo quando se iniciou a operação de resgate e o confronto entre as duas naves. No momento que Awl finalmente foi transportado para a enfermaria, suas costas estavam sendo serradas com uma ferramenta grosseira e sua espinha era gradativamente removida diante da pobre bióloga Yeong-Hui.

— É um milagre que Awl tenha sobrevivido. – Disse o doutor Horvat, sentado em uma esguia cadeira em sua sala. – Os ferimentos em seus ombros foram fechados, mas levará semanas até que o trauma epidérmico seja revertido. – Enquanto falava, ele mostrava uma representação tridimensional dos ferimentos. – Os danos são piores do que queimaduras de plasma de terceiro grau, isso sem falar das lacerações em suas costas e no deslocamento espinhal. Duas das três medulas vertebrais foram rompidas, e para fazê-lo mover os membros novamente terei que fazer uma série de cirurgias ao longo de pelo menos dois meses, aliadas a sessões diárias de fisioterapia.

— Que tipo de pessoa vê prazer em fazer tamanha barbárie? – Falou Shion, indignada. – O interior da nave deles era cheio de corpos mutilados, esqueletos e órgãos expostos como se fossem obras de arte.

— Redobraremos o cuidado enquanto viajamos por esta região do espaço. Não quero arriscar outros encontros como o de ontem. – Disse o capitão Vernon, pensativo. – Abaroa teve uma morte horrível, e no que depender de mim, nenhum outro membro de minha tripulação terá o mesmo destino.

A outra pessoa presente na sala era Giulia Naggi, única sobrevivente incólume do grupo avançado raptado pelos sádicos. Ela se mantinha em silêncio, pesarosa pelo sofrimento de seus colegas, mas o curto cativeiro a bordo da nave-masmorra não a havia perturbado psicologicamente.

— Como está a alferes Yeong-Hui? – Perguntou Shion.

— Ainda em choque. – Respondeu Horvat, balançando a cabeça. – Ela não era uma pessoa muito destemida e, mesmo que fosse, não creio que alguém consiga passar por uma experiência dessas sem sofrer as consequências. A doutora Brexdan disse que a mente dela está imersa em agonia e medo, e por isso decidimos administrar alguns psicotrópicos para mantê-la calma, mas é apenas uma medida temporária. Tanto Awl quanto ela precisarão de um acompanhamento psicológico completo.

— Entendo. – Disse o capitão Vernon. – Quando o subtenente Awl poderá deixar a enfermaria?

— Não antes que eu faça uma cirurgia transvertebral restaurativa completa, e para isso ele precisa estar recuperado do trauma epidérmico. – Respondeu Horvat. – Quinze a vinte dias, no mínimo.

— Eu gostaria que eles pudessem fazer o acompanhamento juntos, mas já temia que isso não fosse possível. Não podemos fazê-la esperar tanto tempo. – Disse Vernon, respirando fundo e olhando para Giulia. – Gostaria que você estivesse com ela, subtenente, pelo menos no começo. Não consigo pensar em mais ninguém nesta nave que tenha passado por situações de cativeiro e tortura semelhantes, a não ser, é claro, o comandante Hashimoto, mas não acredito que ele deixaria Yeong-Hui à vontade.

— É claro, senhor. – Disse Giulia, concordando com a cabeça. – Ajudarei no que for possível.

— Contate o terapeuta Rha’r e o deixe a par da situação. – Ordenou o capitão Vernon. – Quero que iniciem as sessões assim que o doutor Horvat autorizar, e trate isso como prioridade absoluta, sim?

— Sim, senhor. Falarei com o conselheiro imediatamente. – Disse a oficial de comunicações, virando-se para sair da sala.

— Mais uma coisa. – Disse o capitão, antes que a porta se abrisse.

— Sim, capitão? – Disse Giulia, voltando-se novamente para os presentes.

— Obrigado, Giulia. – Agradeceu Vernon, sorrindo ternamente.

Giulia sorriu e, com uma expressão serena no rosto, deixou a sala do doutor Rohit Aris Horvat.

Três dias após o incidente, depois de finalizarem os reparos e aprenderem mais sobre o planeta Suffodio e sobre os dendronianos (que agora os tratavam como heróis, devido ao resgate de seus companheiros), a USS Iguaçu finalmente deixou aquele setor em direção a um aglomerado de pequenas nebulosas e corpos rochosos supermassivos. Logo no início da manhã, Giulia e Yeong-Hui fizeram uma leve refeição nos aposentos da oficial de comunicações e seguiram juntas para o consultório do terapeuta Rah’r.

A USS Iguaçu, assim como a maioria das naves da Frota Estelar, possuía dois tipos de conselheiros. Um deles, chamado apenas de conselheiro ou conselheiro-legado, servia exclusivamente ao capitão e aos interesses da missão, mantendo um olhar crítico sobre as situações e empregando seu vasto conhecimento para dar opiniões úteis e auxiliar em situações de impasse diplomático. O outro, chamado de conselheiro-clínico ou, na maioria das vezes, de terapeuta, unia as qualificações de psiquiatria e psicologia, servindo para auxiliar a tripulação em todas as necessidades desse gênero.

— Eu compreendo que seja necessário, mas não me sinto à vontade com isso. – Disse Yeong-Hui, em voz baixa.

A aparência da bióloga, encolhida na cadeira do consultório do terapeuta Rah’r, era deprimente. Ela havia perdido peso nos últimos dias, e seu olhar apático, sustentado por suas profundas e escuras olheiras, conferiam-lhe o aspecto de alguém cujo espírito havia sido destruído.

— Você se sentiria mais à vontade se eu não fosse um klingon? – Perguntou Rah’r, educadamente.

Yeong-Hui deu os ombros, mas era perceptível que o fato a incomodava.

— Acredite, eu compreendo perfeitamente. – Disse Rah’r, esboçando um sorriso. – Mesmo entre os klingons das colônias que se uniram à Federação durante as guerras travadas pelo imperador Kawroth, o Insano, poucos de nós seguiram a carreira de conselheiro.

— E muitos de nós cresceram com a imagem de que os klingons não eram mais do que guerreiros ferozes e impetuosos, movidos tão somente pelo desejo de conquistar a honra em batalha. – Comentou Giulia, percebendo que Yeong-Hui não desejava falar.

— Certamente você encontrará inúmeros klingons assim no que restou do Império. – Admitiu Rah’r. – Mas asseguro que nem todos são assim, especialmente os que agora são cidadãos da Federação e não estão mais presos às tradições e leis bárbaras de nossos antepassados. – Ele abriu um pequeno baú atrás de sua mesa e tirou um objeto metálico com inscrições em sua língua nativa. – Embora ainda valorizemos a honra, o senso de lealdade e tantas outras qualidades de nossa natureza, deixamos de resumir tudo a matanças sem sentido, e agora buscamos a glória em campos de batalha diferentes. – Ele olhava para Yeong-Hui de forma muito paciente. – Afinal, lembrem-se dos vulcanos: a história não conta que eles eram tão bárbaros quanto nós, antes de escolherem o caminho da lógica?

A bióloga assentiu com um tênue movimento da cabeça e, daquele ponto em diante, mostrou-se mais à vontade em compartilhar as experiências traumáticas que vivenciara a bordo da nave-masmorra. Rah’r, com grande paciência e habilidade, conduziu uma conversa bastante produtiva, sendo auxiliado em várias ocasiões por Giulia que, compartilhando seus traumas vividos durante o período em que fora escrava dos breens, estabeleceu uma relação próxima com Yeong-Hui

Durante o estudo do aglomerado de nebulosas, os sensores de longo alcance detectaram um estranho objeto de quase setenta milhões de quilômetros de diâmetro, localizado no espaço entre duas nebulosas superdensas. A aparência incomum do objeto imediatamente chamou a atenção da astrometria e da oficial chefe de ciências, que solicitou um desvio de curso para que pudessem fazer o estudo completo e a catalogação do fenômeno.

— Impressionante. – Comentou Shion, observando a imagem projetada na tela principal.

O núcleo do objeto era ovalado e rugoso, e partindo dele havia centenas de imensos filamentos que se interconectavam em pontos aleatórios, formando um espantoso emaranhado. No entanto, mais curiosa do que o seu formato único era a sua superfície, cuja agitada variação luminosa lembrava o chuvisco causado pelo ruído estático em uma televisão antiga.

— Alguma ideia do que possa ser isso, comandante Chelaar? – Perguntou o capitão Vernon.

— É um tipo de aglomerado de partículas e radiação que eu nunca vi antes, capitão. – Explicou Chelaar. – Posso identificar alguns componentes, como nuvens de vértions, porém com um comportamento inexplicavelmente estável. As estruturas de contorno de cada filamento dão a impressão de serem sólidos, mas tudo leva a crer que a nossa nave seria capaz de atravessá-los sem causar distúrbios expressivos.

— Há alguma coisa que represente um perigo em potencial? – Perguntou o conselheiro Nhefé.

— À primeira vista, não. – Respondeu Chelaar. – Mas é difícil afirmar com certeza diante dessa variedade imensa de emissões de partículas e energia, sem falar nos harmônicos subespaciais ininteligíveis.

— Vamos nos manter a uma distância segura, pelo menos por enquanto. – Disse o capitão Vernon, ajeitando o uniforme. – Srta. Kwa, mantenha um curso orbital gradativo de doze graus e estabeleça uma distância relativa de cinco milhões de quilômetros. Um quarto de impulso.

— Sim, senhor. – Disse Kwa, inserindo os comandos no leme.

— Acionar. – Disse o capitão, fazendo um gesto com a mão.

A USS Iguaçu iniciou uma lenta e organizada circum-navegação do estranho objeto, e os tripulantes, especialmente os membros da divisão de ciências, iniciaram um minucioso trabalho para encontrar respostas sobre sua natureza e propriedades. Em função da existência de numerosas características desconhecidas e não catalogadas, Chelaar formou grupos de pesquisa independentes, liderados por oficiais como a vulcana Solek, da astrometria, e o veniano Jegé Manhaún, da astrofísica, no intuito de estabelecer o maior número possível de tópicos de estudo. Todavia, conforme o tempo passava e aprendiam mais sobre o fenômeno, outras perguntas apareciam, despertando ainda mais a curiosidade dos exploradores.

— Quanto tempo para a análise espectral ficar pronta? – Perguntou a tellarita, acompanhando o processamento de um modelo matemático baseado na disposição dos filamentos do objeto, como forma de tentar identificar possíveis simetrias complexas e evidências de expansão progressiva de matéria.

— Já está pronta, comandante. – Respondeu Manhaún, apontando um PADD ao lado da estação onde Chelaar estava trabalhando, no centro do laboratório 4. – Eu entreguei para a senhora há dezoito minutos.

— É claro. – Disse Chelaar, balançando a cabeça. – Acho que estou tão absorta na compilação desses dados que acabei esquecendo.

— Uma pequena pausa talvez fosse benéfica. – Sugeriu Manhaún. – A senhora vem trabalhando sem descanso desde o final da manhã.

— Tem razão, subtenente. – Disse Chelaar, levantando-se e massageando um dos ombros. – Acho que acabei esquecendo até mesmo de almoçar, meu estômago está doendo.

A oficial de ciências deixou o laboratório 4, localizado na parte inferior central da nave, e seguiu para o refeitório, localizado na proa do deque 13. Assim que deixou o turboelevador, avistou Giulia despedindo-se de Yeong-Hui, na frente do consultório do terapeuta Rah’r.

— Comandante! – Exclamou Giulia, assim que percebeu a aproximação de Chelaar. – O que faz tão longe dos laboratórios e dos conjuntos de sensores?

— Preciso comer alguma coisa ou meus próprios sensores começarão a falhar. – Disse a tellarita, rindo.

— Perfeito, também estou com fome. – Disse Giulia. – Posso acompanha-la?

— Eu prefiro comer sozinha, subtenente. – Respondeu Chelaar. – Sua presença me tira a fome.

Yeong-Hui levantou as sobrancelhas.

— Ela não fala sério, Yeong-Hui. – Disse Giulia, sorrindo. – Pequenos insultos como esse constituem apenas uma brincadeira saudável entre velhas amigas.

— Para qualquer tellarita que se preze... – Começou Chelaar.

— “Uma discussão jamais é uma brincadeira”. – Completou Giulia, pondo a mão no ombro da amiga. – É, eu sei.

— Gostaria de vir conosco, alferes? – Convidou Chelaar, voltando-se para Yeong-Hui.

— Em outra ocasião, comandante. – Disse a bióloga, encabulada. – Pretendo voltar para meus aposentos e praticar as técnicas de repouso consciente que o terapeuta Rah’r me ensinou hoje.

— Como quiser. – Disse Chelaar, com um leve aceno de cabeça.

Yeong-Hui retribuiu o aceno e as deixou, andando cabisbaixa na direção do turboelevador.

— À quantas anda o estudo do fenômeno? – Perguntou Giulia, enquanto seguiam para o refeitório. – Já conseguiram classificá-lo?

— Ainda não, e estamos longe de conseguir. – Respondeu Chelaar. – É algo totalmente novo. Foi necessário até mesmo desenvolver uma metodologia específica para podermos estudar suas propriedades, e sinto que apenas começamos a arranhar a superfície.

— Fascinante. – Disse Giulia, sentando-se no seu local de costume no refeitório. – Gostaria que fosse possível se comunicar com ele, assim eu teria algo no que trabalhar.

— Não perca as esperanças, Giulia. – Disse Chelaar, sentando-se de frente para a colega. – Ainda não descartamos a hipótese de ser uma forma de vida.

— Seria uma descoberta e tanto. – Comentou Giulia.

As duas pediram o mesmo prato: a famosa sopa arenosa tellarita. Segundo Chelaar, a receita original dessa iguaria, tida como perdida por vários séculos, fora redescoberta pelo seu tio-avô Brolog, durante uma expedição arqueológica nas profundezas da Erosão Soberba, em Tellar Prime.

— Como estão as sessões de terapia? – Perguntou Chelaar, adicionando molho de raízes à sua sopa.

— Melhores do que eu imaginei que seriam. – Respondeu Giulia. – Rah’r é muito competente e intuitivo.

— Tem certeza? Yeong-Hui me pareceu desanimada. – Comentou Chelaar.

— Não se engane pela expressão tristonha. – Disse Giulia. – Ela está progredindo muito, e o doutor diminui a medicação a cada dia. Ontem ela teve a primeira noite de sono contínua e sem pesadelos desde o incidente.

— E como tem sido para você? – Perguntou Chelaar. – Você nunca gostou de falar sobre a época que esteve entre os breens.

— É diferente quando isso ajuda alguém a entender e superar seu próprio trauma. – Respondeu Giulia. – Eu percebo, inclusive, que a principal motivação de Yeong-Hui é estar forte o bastante para apoiar e ajudar o subtenente Awl quando ele acordar. Ela tem se agarrado muito nisso, e eu admiro sua determinação.

— E como tem sido para você? – Perguntou Chelaar. – Lembro que você não gostava de falar sobre seu passado com os breens.

— Eu acabei de responder a essa pergunta. – Disse Giulia, com uma expressão confusa no rosto. – Isso é algum tipo de charada tellarita?

— Perdoe-me, Giulia. – Disse a oficial de ciências, descansando sua colher ao lado do prato. – Tenho estado um pouco distraída hoje, acho que o estudo do objeto desconhecido está exigindo muito da minha cabeça.

— Tudo bem, acho que todos estamos um pouco desorientados, especialmente depois do que aconteceu com o alferes Abaroa e com Awl. – Disse Giulia, sorrindo. – Eu mesma tive pequenos lapsos de memória mais cedo durante a sessão de terapia, enquanto descrevia uma de minhas experiências de infância. Acabei esquecendo o nome do planeta onde éramos recondicionados anualmente, e não consegui descrever o interior de uma câmara de interrogatório breen.

Chelaar estreitou o olhar, inclinando a cabeça levemente para a direita.

— Acho que isso é mais do que excesso de trabalho ou pesar pela morte de Abaroa. – Disse a oficial de ciências, olhando novamente nos olhos de Giulia. – Estou tentando me lembrar quem eram nossos colegas na Ganímedes, mas o único nome que me vem à mente é o do capitão Vernon.

— Você tem razão! – Concordou Giulia, também tentando se lembrar dos ex-colegas. – Como era o nome do engenheiro-chefe, o gallamita?

— Não sei! – Respondeu Chelaar, nervosa. – Tudo o que eu consigo me lembrar dele é que havia algo estranho em seu rosto, mas não consigo me lembrar exatamente o quê.

A oficial de comunicações se esforçou para lembrar qual era a famosa característica que distinguia os gallamitas, pois não conseguiu se recordar da aparência do engenheiro-chefe da USS Ganímedes.

— O crânio transparente! – Disse ela, por fim.

Alarmada pelos repetidos e estranhamente coincidentes lapsos de memória, Giulia notou que havia um tripulante da divisão de engenharia, há poucos passos de sua mesa, parecendo bastante desorientado.

— Alferes. – Chamou ela. – Algum problema?

O leváqueo virou-se para ela, com uma expressão confusa no rosto.

— Eu preciso voltar ao trabalho, mas não consigo lembrar onde é. – Respondeu o tripulante.

— Engenharia, alferes. – Disse Chelaar. – Fica no deque...

A tellarita ficou em silêncio, franzindo o cenho.

— Talvez devêssemos falar com o doutor... – Começou Giulia preocupada e, em seguida, olhou para Chelaar, perplexa. – Eu não consigo lembrar qual é o nome do doutor!

— Chelaar para enfermaria. – Disse a oficial de ciências, em tom de urgência, tocando no comunicador em seu peito.

Horvat falando.— Ouviu-se a voz do médico em resposta.

— Acredito que exista uma emergência médica em andamento, doutor. – Disse Chelaar. – Estamos indo para a enfermaria imediatamente!

Estarei esperando.— Disse Horvat.

As duas deixaram o refeitório no mesmo instante, mas demoraram para chegar ao seu destino, errando o caminho mais de uma vez devido aos lapsos de memória. Quando finalmente alcançaram a enfermaria, encontraram o doutor Horvat absorto ao lado de uma maca, com um tricorder médico na mão esquerda.

— Algum problema? – Perguntou o médico, sorrindo para elas.

Giulia abriu a boca, mas não disse nada.

— Uma emergência doutor! – Exclamou Chelaar, aflita. – Não sabemos a razão, mas a tripulação está passando por graves perdas de memória!

— Que tipo de perda de memória, tenente? – Perguntou Horvat.

— Eu não sei explicar ao certo, também estou tendo problemas para me lembrar das coisas. – Respondeu Chelaar. – Tudo o que sei é que precisamos agir imediatamente.

O médico apenas balançou a cabeça, concordando com Chelaar, mas permaneceu inerte.

— Doutor! – Exclamou Chelaar, desesperada com o comportamento de Horvat e com Giulia, que parecia não saber a razão de estar ali.

Nesse momento, entrou na enfermaria o conselheiro Nhefé, parecendo muito preocupado.

— Doutor Horvat, o que está havendo? – Perguntou o conselheiro. – Chamei o senhor à ponte há mais de vinte minutos.

— Nos conhecemos? – Perguntou Horvat, olhando com estranheza para o conselheiro.

O conselheiro, sem hesitar, percebendo a gravidade da situação, ordenou:

— Ativar HME.

No mesmo instante, o holograma médico de emergência apareceu diante deles.

— Especifique a natureza da emergência média. – Disse ela, olhando para Nhefé. Sua aparência era de uma mulher cardassiana, vestindo o uniforme padrão dos oficiais médicos.

— Toda a tripulação está apresentando inexplicáveis lapsos de memória, incluindo nosso oficial médico chefe. – Explicou o conselheiro.

A doutora holográfica imediatamente olhou ao redor, procurando um tricorder médico.

— Poderia me emprestar isso por um momento? – Perguntou ela educadamente ao doutor Horvat, que entregou seu tricorder sem questionar. – Alguma ideia do que pode ter causado esse problema?

— Estivemos estudando um fenômeno espacial desconhecido nas últimas horas, mas não tenho conhecimento suficiente para afirmar que exista alguma relação entre ele e o surto de lapsos de memória. – Explicou Nhefé.

— Há quanto tempo o problema começou? – Perguntou a médica, sondando a cabeça de Horvat, Chelaar e Giulia, que pareciam não entender o que estava acontecendo.

— Pouco antes de deixar a ponte no horário do almoço, notei que a tripulação parecia confusa, cometendo pequenos erros e esquecendo informações simples. – Explicou Nhefé. – O que me deixou alerta e verdadeiramente preocupado, no entanto, foi quando pedi ao sintetizador dos meus aposentos um prato de ngátók, e percebi que eu não podia me lembrar da última vez em que consumira tal alimento.

— Entendo. – Disse a médica, sondando a cabeça de Nhefé, e sorrindo. – A neurofisiologia veniana permite o armazenamento de uma quantidade extraordinária de memória, devido à sua vasta rede engramática, e por isso, é compreensível que você esteja resistindo melhor aos sintomas.

— Exato. – Assentiu Nhefé, impaciente. – Mas percebo que isso está me afetando de maneira mais acentuada a cada minuto que passa. – Ele olhou para Chelaar, que havia tirado seu comunicador do peito e o examinava com grande interesse. – Estimo que em pouco tempo estarei como eles.

— Sendo assim, a situação deve ser resolvida com máxima urgência, ou logo ninguém lembrará quem é e o que faz aqui. – Disse a médica holográfica. – Computador, quantos venianos estão a bordo desta nave?

— Existem ao todo sete venianos a bordo da USS Iguaçu. – Respondeu a voz do computador.

— Conselheiro, sugiro que oriente os demais venianos para que eles mantenham o restante da tripulação sob vigilância, ou em breve teremos acidentes provocados por pessoas que não sabem diferenciar a regulagem dos fêiseres. – Propôs a médica.

— De acordo. – Disse Nhefé, tocando em seu comunicador. – Nhefé para Manhaún, Vyãmág, Kygvénh, Nugvónh, Maralayh e... – Ele fechou os olhos, num esforço para lembrar o nome do último veniano. – Kyróg! – Completou ele, respirando fundo. – Ouçam com atenção! Estamos diante de uma emergência sem precedentes e, como já devem ter percebido, somos os únicos com nossas memórias razoavelmente intactas. Portanto, preciso que levem o maior número possível de tripulantes para as áreas comuns e aposentos, preferencialmente longe de armas e setores essenciais. Quando a situação estiver sob controle, entrem em contato comigo. Nhefé desliga.

— Conselheiro, preciso fazer um exame completo do seu cérebro. – Disse a médica, indicando um dos aparelhos da enfermaria. – Somente assim terei certeza do que está acontecendo.

— Faça isso o mais rápido que puder, doutora. – Disse Nhefé, deitando-se na maca retrátil do aparelho de exame cerebral.

Lentamente, o conselheiro deslizou para dentro de um grande tubo semicircular, onde uma série de sensores de alta potência escanearam cada átomo de seu sistema nervoso. Após quase cinco minutos, a doutora holográfica desligou o equipamento e permitiu que Nhefé descesse da maca.

— E então? – Perguntou ele, ansioso.

— A boa notícia é que vocês não estão realmente perdendo a memória. – Disse ela, analisando os dados na tela do aparelho. – Todos os engramas continuam onde deveriam estar, com a diferença que estão, de algum modo, sendo desligados um a um.

— E isso tem algo a ver com o fenômeno espacial que estávamos estudando? – Perguntou Nhefé.

— Eu não chamaria de fenômeno, mas sim de entidade. – Respondeu a médica. – Enquanto você estava sendo escaneado, acessei os arquivos da pesquisa que os vários grupos estavam fazendo sobre o tal “fenômeno”. Os dados coletados até o momento levam a crer que o que ele é, na verdade, um ser vivo, potencialmente senciente.

— Isso é espantoso, doutora. – Disse Nhefé, agoniado. – Mas qual é a razão da supressão de memória? E como podemos revertê-la?

— Um dos físicos teóricos, o subtenente Wong, estava analisando cuidadosamente a composição do espectro não-visível da entidade. – Explicou a médica. – Então, baseado nas frequências interconectadas dos harmônicos subespaciais e nas cargas energéticas oscilantes, ele começou a considerar que o campo de dispersão pluriparticular poderia causar efeitos degenerativos e de supressão em elementos de natureza orgânica e biológica. – Ela balançou a cabeça. – Ele não conseguiu descobrir a tempo quais seriam esses efeitos, mas agora sabemos que o primeiro deles é a supressão da memória.

— Como assim o primeiro? – Perguntou Nhefé, cada vez mais ansioso.

— Creio que, aos poucos, funções cognitivas e autônomas serão igualmente afetadas. – Disse a médica. – Até o ponto em que o cérebro pare de mandar ordens para que o coração continue batendo, por exemplo.

— Doutora, estamos sem tempo! – Exclamou Nhefé. – Como podemos reverter, ou ao menos atrasar esses efeitos?

— Não há nada que possa ser feito para mitigar os efeitos da supressão. – Disse ela, compassiva. – Mas acredito que, se a nave se afastar para longe da entidade, a memória de todos voltará gradativamente.

— Por que não disse isso logo? – Exasperou-se Nhefé. – Nhefé para... para quem estiver no leme!

Não houve resposta.

— Computador, transferir funções do leme para a enfermaria.

— Insira o código de autorização. – Ouviu-se a voz do computador.

O conselheiro fechou os olhos, tentando se lembrar do seu código de acesso.

— Não adianta, eu não lembro! – Enraiveceu-se ele.

— Suponho que ainda seja possível controlar a nave diretamente da ponte de comando. – Disse a médica.

— Tenho medo de não conseguir chegar lá. – Admitiu Nhefé.

— Eu posso orientá-lo daqui, conselheiro. – Ofereceu-se a doutora. – A ponte está apenas três deques acima.

O veniano refletiu por um instante.

— Certo. – Disse, por fim, empertigando-se e engolindo em seco. – Conto com você, doutora.

Ela assentiu, inclinando levemente a cabeça para a esquerda e, sem demora, deixou a enfermaria e precipitou-se pelos corredores, que agora pareciam fazer parte de um sufocante labirinto. Ofegante, ele correu por alguns metros e se viu diante de um simples entroncamento entre dois corredores, desafio suficiente para deixá-lo paralisado e inseguro quanto a qual caminho tomar.

— HME para conselheiro Nhefé. – Chamou a doutora, que monitorava os sinais do comunicador do veniano por meio de um dos painéis da enfermaria. – Siga pelo caminho da direita até o turboelevador.

— Obrigado, doutora. – Agradeceu Nhefé, sacudindo a cabeça e seguindo em frente.

O simples caminho entre a enfermaria e a ponte foi o mais árduo que Kómóg Nhefé já havia trilhado em toda sua vida, pois cada passo parecia incrivelmente difícil e incerto. Se não fossem o auxílio preciso e a voz tranquilizadora do holograma médico de emergência, ele certamente teria se deixado cair ao lado de um anteparo, entregando-se ao esquecimento.

A situação na ponte era desalentadora. O capitão Vernon estava sentado em sua cadeira, olhando ao redor com uma expressão desconcertada. Shion havia se levantado e estava há poucos centímetros da tela principal, olhando hipnotizada para a imagem fervilhante da entidade. Da’Far e Harman estavam deitados lado a lado, encarando o teto com os olhos arregalados. Não havia sinal de Rose e Eri-Ribb.

— Onde é o leme? – Perguntou Nhefé, confuso diante de tantas estações de trabalho.

— É a estação imediatamente à frente da tela principal. – Orientou a médica holográfica.

Nhefé sentou-se no posto de Kwa e observou os muitos controles e indicadores de navegação, franzindo a testa. Ele hesitou, sem saber ao certo qual deles deveria acionar.

— Vou precisar de sua ajuda novamente, doutora. – Disse Nhefé.

— Está vendo um indicador azul no canto superior esquerdo? – Começou ela. – Abaixo dele há um... ei! Não toque nis...

— Doutora! – Exclamou Nhefé, mas não houve resposta. De alguma forma, alguém na enfermaria havia desativado o HME.

O conselheiro respirou fundo, tentando se acalmar. Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça, forçando ao máximo sua memória para lembrar das aulas de pilotagem e dos treinamentos que ocasionalmente fazia.

— Você já perdeu, admita. – Disse uma voz grave e rouca, alguns metros atrás de Nhefé.

— Ele ainda não desistiu. – Respondeu outra foz, muito aguda e estridente.

Nhefé virou-se na direção das vozes e viu dois alienígenas de uma espécie que lhe era levemente familiar, ambos de pele pálida e sardenta, com cabelos alaranjados e bigodes.

— Desista! – Gargalhou o alienígena de voz grave e rouca, que era muito baixo. – Você não deveria ter apostado que eles conseguiriam superar a poderosa Anamnesorexia.

— Eu não a teria atraído para o caminho deles se as chances de vitória não fossem altas. – Disse o outro alienígena, alto e esguio. – Enquanto houver alguém consciente, não admitirei minha derrota. – E olhou para o veniano.

O olhar do alienígena pareceu acordar Nhefé, que se virou imediatamente para o leme e, fechando novamente os olhos, esvaziou sua mente de qualquer pensamento ou lembrança que não tivesse ligação com pilotagem de naves estelares. Ele moveu a mão instintivamente e tocou em um dos controles, ativando um comando de mudança de curso.

— Viu só! – Exclamou o alienígena de voz fina.

— Isso não significa nada. – Resmungou seu companheiro.

Nhefé procurou um comando que permitisse a inserção de um novo curso, ficando em dúvida entre os dois que lhe pareciam mais familiares, um azul e outro vermelho. Suando frio, ele olhou de relance para seu próprio uniforme, cuja cor azul trouxe à tona a lembrança de já ter feito aquilo antes. Rapidamente, o conselheiro inseriu o único rumo do qual conseguiu se recordar: uma linha reta. Para sua sorte, esse rumo colocaria a nave em uma tangente e relação ao movimento orbital atualmente em execução. Entretanto, nada aconteceu.

“Ainda falta alguma coisa”, pensou Nhefé. Ele tinha certeza que precisava confirmar o comando inserido, autorizando o acionamento dos sistemas de manobra, mas novamente ficou em dúvida entre dois: um amarelo e outro vermelho.

Nada que o conselheiro pudesse pensar parecia ajudar na resolução desse dilema e, com o desespero gerado pela frustração de falhar no último instante, ele olhou para os dois alienígenas que estavam em pé, agora mais próximos dele. O mais baixo tinha uma expressão de êxtase no rosto, como alguém prestes a ganhar uma coisa muito desejada e importante. O mais alto, com uma das sobrancelhas levantadas, encarou Nhefé e, por uma fração de segundo, deu uma espiadela na direção de Shion. O conselheiro se voltou para o leme e levantou o olhar na direção da primeira oficial que, com seu uniforme vermelho, olhava fixamente para a tela principal. Ele sorriu, tocando o comando vermelho e colocando a USS Iguaçu em uma rota simples, porém segura, para longe da entidade.

— Não pode ser. – Lamentou o alienígena mais baixo, profundamente decepcionado.

— Eu não disse que eles conseguiriam? – Gargalhou o alienígena de voz aguda, estendendo a mão para receber as estranhas fichas que seu colega, contrariado, retirava do bolso do casaco.

Nhefé, exausto pela árdua operação recém realizada, e ainda sofrendo os efeitos supressores gradativos causados pela entidade, sentiu que ia perder a consciência. Antes que isso acontecesse, todavia, ele se virou mais uma vez para os dois alienígenas e teve certeza que o mais alto lhe deu uma piscadela antes de desaparecer.

Kómóg Nhefé abriu os olhos e se viu deitado em um dos leitos da enfermaria.

— Como você está, conselheiro? – Perguntou o doutor Horvat, em pé ao seu lado.

— Estou verdadeiramente ótimo. – Respondeu Nhefé, aliviado.

— Nenhuma pergunta? – Espantou-se o doutor. – A primeira coisa que meus pacientes costumam dizer quando acordam na enfermaria é: “O que aconteceu?”.

— Acontece, doutor. – Sorriu Nhefé. – Que eu lembro de tudo.


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