Scarborough Fair - A História Completa escrita por Lizzy Di Angelo


Capítulo 1
Nem mesmo uma gota de sorte




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Liona Castezel estava alegre de um jeito que não se sentia há algum tempo, naquela manhã varreu o chão de toda casa com o que os religiosos pareciam acreditar ser sua vassoura magica, riu sabendo que era muito pouco provável que algum dia saísse voando em qualquer coisa. Organizou seus livros na estante, ergueu os vidros de ingredientes caídos e trocou as velas já quase completamente derretidas de seus castiçais, quando terminou tudo que vinha adiando, estava quase satisfeita. Puxou seu caldeirão, o deixara encostado na parede por longos dias e agora parecia reconfortante voltar a erguê-lo em seu suporte. Franziu a testa ao perceber que a lenha já estava quase no fim, ainda assim juntou-a abaixo do caldeirão, mais tarde poderia se preocupar em conseguir mais, no momento tudo que queria era cozinhar poções e sua ansiedade.

As ciganas chegariam à cidade naquele mesmo dia, e Liona vinha as esperando por tempo demais. Esse era o problema das superstições: alguns acreditavam que o sangue de gladiadores curava a epilepsia, já Liona era fortemente ligada a própria sorte e jamais ousaria por seus pés fora da cidade sem consultá-la, o que significava que precisava de uma cigana com certa frequência. Bem, ao menos suas crenças não envolviam beber o sangue de outras pessoas. Entornou um pouco de água no caldeirão enquanto pensava no que faria, talvez partisse no dia seguinte, vinha se sentindo um pouco sufocada naquela cidade e se fosse sincera saberia que nada mais a prendia ali, ao menos nada além de... Desviou seus pensamentos antes que voltasse a se sentir decepcionada, estava em um humor excelente e não abriria mão dele, principalmente por algo que não poderia controlar.

Abaixou-se apenas o suficiente para que as pontas de seus dedos pudessem tocar a lenha, o fogo se espalhou tão rápido que foi como se sempre estivesse ali, a única prova de que não surgira do nada, como uma força independente, era a mão morna de Liona. Amava a magia, criar fogo das próprias mãos era muito mais simples do que ser obrigada a riscar sua pederneira contra um pedaço de cherte até conseguir fagulhas, pensar em passar seus dias privada do próprio dom se parecia muito mais com um castigo doloroso do que com a vida de tantas pessoas. E Liona sequer era a bruxa mais dependente de seu poder.

Não esperou a água ferver antes de misturar duas lágrimas de feérico ao caldeirão, odiaria ser a pessoa a pegá-las, adorava as tradições daquele povo, entretanto, eles facilmente se transformavam em coisinhas cruéis e de dentes pontudos. Riu baixo ao lembrar-se do dia em que Brya brigara com algum deles, passara a noite toda limpando feridas ensanguentadas e removendo as pragas que jogaram contra sua amiga, contudo, valera a pena: não voltaria a ver uma cena como aquela tão cedo, nem de longe possuía a mesma selvageria que a outra bruxa, o que significava que não estava disposta a arranjar uma confusão de mesmo nível. Pelo resto da manhã cantarolou todas as musicas que lembrou, desde cânticos a Deusa Mãe até suas baladas preferidas, cantou inclusive na língua das fadas, feliz em infundir um e outro ingrediente a sua poção.

Já deveria ser por volta de três da tarde quando voltou a olhar para o liquido agora arroxeado, mexeu os lábios inconformada, então descobriu o que estava faltando. Definitivamente precisava de mais tomilho. Rodopiou rapidamente, remexendo entre os frascos nomeados, passou por alecrim e hortelã antes de agarrar o pote certo, pegou apenas algumas folhas e se voltou para a poção. Sorriu ao ver finalmente atingir a cor certa, o cheiro era relaxante, estava quase pronta.

Esticou os braços preguiçosamente, querendo se livrar do desconforto que se instalou em seus ombros, e então finalmente caminhou para a janela, a princípio em passos lentos, pensando no que fazer em seguida, mas se lembrou da chegada das ciganas rápido o suficiente para que seu lento arrastar se transformasse em uma corridinha animada. Cada passo lhe deixando mais e mais próxima do destino inevitável, se soubesse o que aconteceria talvez não tivesse tanta pressa. Segurou na borda da janela, ficando na ponta dos pés para ter uma visão melhor da praça onde elas montariam seu acampamento, seria fácil identificar o agrupamento distinto e colorido que elas formavam, mas quando finalmente olhou para o lado de fora, não foi isso que viu.

Seus olhos se abriram em choque, sua boca poderia ter sido um perfeito ‘o’, mas em sua defesa, não era todo dia que o Príncipe Hadewides de Scarborough ficava preso entre as trepadeiras mágicas de seu quintal. Por vários segundos Liona ficou apenas observando aquela cena, suas plantas se enroscando mais e mais nele, segurando suas pernas e subindo por seus braços enquanto ele tentava agarrá-las com as mãos. Era uma péssima ideia, suas ipomeias teriam ficado mais determinadas ainda se isso fosse possível. Sentia como se também estivesse presa, não estava convencida de que era capaz de dar um passo sequer, seus dedos dos pés doíam, continuava erguida na ponta deles, mas nem ao menos percebeu. Porque Hadewides Villin estava bem ali. Teria se perguntado se não vinha enlouquecendo, mas nem mesmo em sonho seria capaz de imaginar algo desse tipo.

Mas os olhos do Príncipe a avistaram, e embora tenha desviado o foco de seu rosto rápido o suficiente para que seus olhares não se encontrassem nem mesmo por uma fração de segundo, Liona sabia que os dele eram tão azuis que poderiam fazer inveja aos céus. Piscou lentamente, seus dedos cederam derrubando os calcanhares com força contra o chão, o que ao menos serviu para despertá-la. A caminhada até a porta foi a mais rápida de sua vida, se permitiu respirar fundo antes de finalmente abri-la, tentando forçar seu coração a se acalmar ou ao menos sua expressão desconcertada a sumir. Não teve sucesso.

 Bem, quem precisava consultar uma cigana quando o Príncipe estava logo ali? Isso não era boa sorte ou coisa parecida. Abriu a porta.


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