Voe X Livre X Coração X Selvagem escrita por Afrodeus da dança


Capítulo 6
Breve X Pausa




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Com o passar dos dias, Muriel tenta acompanhar o ritmo de Marta Latynia, para ambas estarem em patamares de igualdade e os treinos fluírem bem, mas ambas descobrem rapidamente que isso seria difícil. Muriel sente o abismo de diferença que existe entre as duas e também a pressa que Marta tem em fazer Muriel evoluir o quanto antes. Sente que precisa ficar mais forte logo, mas começou a treinar para ser uma Hunter há duas semanas, não tem como evoluir tão rapidamente. Marta começou a exigir bastante de Muriel, tornando-se sua parceira constante nos treinos, dando dicas e tentando guiá-la para um caminho mais rápido para atingir novos níveis. E ela entende o motivo de Marta, o sucesso de Muriel no fim agora é o sucesso dela. E pelo que escutou dos outros jovens, o Exame Hunter seria em três meses. Marta está tentando fazer sua colega estar pronta para esse exame. Nero não demonstra nenhuma objeção na tentativa disso, mas avisou que a pressa pode ser apenas nociva para as duas. Sabem que possuem a permissão para treinar com toda a calma do mundo e que não precisam participar desse exame. Só que as duas sentem que precisam, sentem que é o que Nero espera delas. E Muriel quer ajudar Marta, pois se sente em algum débito com ela.

O objetivo atual do Hunter Chezan e de Marta começam a focar para que a garota obtivesse mais força e mais destreza. Melhorar o desempenho dela. E com isso, eram treinos constantes e que exigiam bastante, fazendo-a todo dia ir deitar exausta. Sentia seu corpo todo dia exausto e sem forças para fazer muita coisa, mas, uma coisa que notava era cada dia ficando um pouco, um pouquinho, mais fácil.

De manhã, após serem acordadas para comer do café da manhã, Muriel pergunta:

— Você acha mesmo que estou melhorando? — Muriel fala para sua colega de quarto, ainda deitada na cama.

Marta, que fazia alongamentos para começar bem o dia, olha para Muriel e fica pensativa por um momento.

— Talvez — ela resmunga, incerta.

— Como assim “talvez”? Isso é ruim não? — Muriel questiona, se sentando na cama.

— Eu tenho visto você treinando todo dia. Sim, você tem melhorado, mas não tenho como dizer o quanto porque eu estou vendo a imagem muito de perto — Marta responde enquanto arruma sua cama. — Levanta logo da cama, já tá na hora.

Muriel solta um longo barulho de reclamação junto de um bocejo, se levantando lentamente da cama, com o corpo ainda mole. Ela vai para o banheiro lavar o rosto e assim que sai do banheiro precisa desviar de uma bola de futebol indo contra seu rosto. Ela se abaixa, assustada e Marta avança, tentando chutar seu rosto, fazendo Muriel se jogar para o lado.

— Mas o que que é isso, Marta? — Muriel pergunta, assustada.

Marta recupera o domínio da bola e tenta novamente chutá-la contra Muriel, que novamente se esquiva saltando para longe do alcance. Muriel pula na cama de Marta, dando uma cambalhota e caindo do outro lado. Ela tenta se esconder da colega, que continua furiosa para cima dela. Muriel consegue bloquear e se esquivar dos chutes, confusa e atônita.

— O que foi que eu fiz? — Muriel choraminga, pegando a perna de Marta e a jogando-a no chão.

Marta Latynia sorri um pouco, caída no chão.

— Seus reflexos estão melhores — Marta explica.

O olhar de Muriel se estreita, confusa e então se abrem em perplexidade para então a garota começar a rir, recuando dois passos, tentando conter a risada apenas para continuar a gargalhar. Marta mantém seu sorriso vendo aquilo.

— Isso foi seu jeito de me contar isso? — Muriel questiona, a voz escapando por entre o riso.

Marta fica pensativa e faz que sim com a cabeça.

— De nada — ela responde, se levantando agilmente. — Bem, vou tomar café. Arrume o quarto já que foi bagunçado por sua culpa.

A risada de Muriel para apenas para seu olhar retornar a confusão e a menina lentamente ficar brava, sua feição ficando emburrada.

— Isso é trapaça! — ela grita, com Marta já fora do quarto.

Ela olha para o quarto. Por sorte só bagunçou de verdade a cama de Marta e não demora muito e Muriel desce para a cozinha, andando batendo os pés para demonstrar sua irritação. Chezan a vê (e a ouve) chegando e sorri.

— Bom dia, Muriel. Marta me contou que já acordaram treinando, isso é bom — o Hunter fala, entregando uma caneca para a garota. — Dormiu bem?

Muriel faz que sim e começa a se servir com achocolatado e pão. Ela come, como sempre, bastante feliz. Suspirando e sorrindo enquanto sente o gosto percorrer sua boca. Marta achava que esse encanto que a colega possui ao comer poderia sumir com o tempo, mas ela ainda reage do mesmo jeito. Se pergunta até quando isso seria o bastante pra ela.

“Se bem que tem aquilo de arrumar um namorado” Marta pensa, comendo uma banana.

— E, bem, já que já estavam treinando reflexos. Tenho um treino que será ótimo para as duas — Chezan diz entusiasmado. — Aliás, Arthur e Gisele, vocês vão fazer parte dele também.

Os alunos de Chezan, Arthur e Gisele, que bebiam chá, erguem o olhar, curiosos. O Hunter apenas fala que explicaria depois do café da manhã. E assim que todos terminam de comer, Chezan começa a explicar o que iria acontecer. Eles são deixados na mesa, em duplas. Cada um possui um martelo de brinquedo à sua frente.

— O treino é simples, crianças. Vocês precisam pegar o martelo e acertar na sua dupla. Quem pegar primeiro, pode acertar o colega. Para anular, você precisa colocar a palma da mão onde levaria o golpe — Chezan explica, alegre. — Treinaremos puramente reflexos e a velocidade de movimento de cada um.

Os três alunos de Angela Nery olham triste para os quatro na mesa, ficando com vontade de participar mas tendo que ficar estudando livros que ela passou para eles. O terceiro aluno do senhor Nero, um jovem garoto chamado Johnny, fica observando o treino com Chezan, na espera de seu treino. Johnny Gluesive é um rapaz com quinze anos, não muito mais alto que Muriel, e é um pouco gordinho — de acordo com Muriel, “fofinho” — e tem a pele clara, com cabelos longos e loiros escuros, geralmente presos em um rabo de cavalo. Ele possui um rosto de feições leves, com olhos bastante expressivos, castanhos.

Ele está treinando algo muito mais a frente de Muriel ou até mesmo Marta, visto que teve uma facilidade muito grande para aprender o nen, algo que é exigida dos Hunters apenas depois de fazerem o Exame. Só que Nero acha que é mais eficiente ensiná-los a usar o nen desde já para que tenham mais chances de vitória no Exame. Isso acaba tornando a jornada desses jovens para poderem entrar no Exame muito mais difícil e dura. Johnny tem sido treinado por Nero já fazem dois anos, com Marta Latynia tendo se entrado ano passado. Johnny inclusive já participou de um Exame Hunter, mas só uma vez para testar suas capacidades e acabou não passando. Isso não o deixou surpreso ou triste, já esperava que acabasse fracassando, mas queria saber como seria. E adquiriu bastante experiência e certeza que o treinamento de Nero poderia ajudá-lo a ter mais facilidade.

Agora, está tentando desenvolver seu hatsu, sua própria técnica especial de nen, com Nero ajudando e guiando ele pelo caminho. Nero chega e o leva para o quintal dos fundos para treiná-lo. Cada pessoa possui um tipo de nen, que uma das teorias é que segue a personalidade do portador. E Johnny é um manipulador, podendo usar sua aura para manipular coisas ou seres. E mestre e aluno estão sentados na grama, com um grande pote de cola na frente dele, que Johnny está tocando-o. Aprender e criar uma técnica é difícil, algo muito difícil e que pode levar um tempo horroroso de longo. Nero quer que ele aprenda isso se possível até o Exame. Ele está suando bastante, se esforçando para tentar realizar sua técnica, algo que Nero está dia após dia ajudando-o a desenvolver.

O celular do Hunter toca e ele visualiza a mensagem que lhe foi enviada. Ele bate palmas duas vezes, sorrindo para o pupilo.

— Certo, acho melhor fazermos uma pausa. Você está indo bem, Johnny, você tem um talento natural para isso, sabia? — Nero fala, com um sorriso e fazendo um carinho nos cabelos do garoto. — Agora, vou lhe dar uma tarefa na sua pausa, okay? Você poderia ir ao mercado comprar as coisas do mês? Seria de grande ajuda para o resto da casa.

— Eu? Sozinho? — o garoto pergunta, receoso.

Nero coloca a mão no queixo, pensativo.

— Chame a Muriel para ir contigo, ela pode te ajudar — Nero responde, indo encontrar Angela no andar de cima.

Johnny vai até a cozinha e espia o treinamento que Muriel está tendo. Ela está sentada de frente para Marta, com o martelo de brinquedo na frente delas. As duas se encaram de modo tenso, com as mãos sobre a mesa. Marta abre a boca e deixa o ar sair de seu peito, com Muriel inspirando devagar o ar. Mantendo-o no peito. Nenhuma das duas tirando o olhar uma da outra, mas tomando igualmente cuidado com qualquer movimento, por mais singelo, que as mãos façam. Muriel finalmente solta o ar, pesadamente, e quase que em um movimento de flagelo, agarra o martelo, conseguindo pegá-lo antes de Marta, que demora por tempo demais para reagir e tentar pegar o brinquedo antes. Muriel, ainda no mesmo movimento em que pegou o martelo, começa um arco para atingir a têmpora de Marta com o martelo. O golpe é defendido sem dificuldade, com Marta suspirando e sorrindo de leve.

— Movimentos rápidos mas previsíveis — ela ri.

— Isso é uma provocação? — Muriel se inclina para frente, com um sorriso na boca.

— Talvez — Marta mantém o sorriso de desafio. — Vai aceitar a provocação ou facilitar e admitir que eu sou a mais forte?

Muriel, colocando o martelo de volta no meio da mesa, fala:

— Está três a dois para mim.

— Você não sabe contar?

— Talvez — Muriel mantém o sorriso de desafio.

— Estamos empatadas, Muriel. — Marta range os dentes, cerrando o punho e o olhar.

— O fato da minha provocação ser tão efetiva me coloca acima. — Muriel estufa o peito, orgulhosa.

Gisele, ao lado de Muriel, acaba de levar mais um golpe, choramingando e olhando para seu professor, Chezan.

— Mestre, eu posso deixar o martelo mais perto de mim? Isso é injusto, o Arthur tá ganhando de… de quanto mesmo? — Ela olha para o colega.

— Quinze a um para mim — Arthur responde, com a voz calma e plena, colocando o martelo no meio da mesa.

Ele passa a mão pelo cabelo, ainda sem gel e sem a bandana, e suspira.

— Podemos trocar de dupla? — Arthur pergunta.

Chezan coloca a mão no queixo.

— Somente depois de 20 pontos. Daí o vencedor vai com quem estiver vencendo da outra dupla — o Hunter explica, acabando de inventar e se sentindo orgulhoso do treino. Ele percebe o garoto na porta e sorri para ele. — Johnny! Como vai, rapaz? Precisa de algo?

O garoto baixa o olhar, tímido.

— O Mestre Nero pediu para que eu fosse com Muriel comprar coisas para a casa — ele timidamente explica.

Muriel solta um alto riso, ao pegar o martelo, erguendo para tentar acertar a têmpora de Marta, que suspira e já deixa a mão na frente do golpe. Antes de acertar o martelo, ela joga o martelo da mão esquerda para a direita. Marta não tem tempo para se defender do golpe, que vem junto com um som bobo, que acerta o topo da testa. Muriel não consegue evitar de gargalhar, se levantando da cadeira e golpeando o ar com o martelo.

— Agora está três a dois! — ela gargalha.

Marta suspira, revirando os olhos. Arthur, ao lado, acerta três vezes seguidas Gisele nesse meio tempo. Chezan vai até Muriel e coloca a mão em seu ombro.

— Muriel, como você mesma ouviu, foi convocada para outra tarefa. Vá ajudar seu colega Johnny com as compras, okay? — ele diz. — Considere isso uma pausa.

Muriel mostra a língua para Marta, se levantando e indo até Johnny, que baixa o olhar, tímido.

— E aí, Johnny? Tudo em cima? — Ela ergue a mão, oferecendo um cumprimento.

Ele solta um risinho e bate sua mão na dela, um tanto desconfortável. Ainda não teve tanta chance de passar tempo com a nova colega e apenas interagiu por cima com Muriel. Logo, ele possui certo “pé atrás” com todo o jeito extrovertido dela.

— Bem, vamos indo, sim? Assim você perde menos tempo de treino — ele diz, indo rumo a porta.

— Não, não pensa assim — Muriel responde, com uma expressão confusa no rosto, seu olhar seguindo Johnny atravessando a cozinha.

O garoto confere se a sua carteira está com ele, junto das chaves e da lista com os itens para trazer, duas vezes. Muriel só confere se trouxe balas o bastante para a ida e para a volta. O caminho para o mercado é tranquilo, apesar de relativamente longo, sendo nove quadras de distância. Mais de uma vez, Johnny precisa impedir Muriel de atravessar o sinal vermelho, segurando-a pela alça do macacão. A cabeça de Muriel pensa pesadamente sobre o fato que Johnny é um garoto. Ela fica encarando-o com os olhos cerrados, fitando-o profundamente.

“Será que ele tem o que é capaz?” ela se pergunta. “Não posso escolher qualquer um. Johnny está tentando se tornando um Hunter, isso é o bastante?”

Durante o caminho, eles se deparam com uma poça, pequena e simples. A mão de Muriel para o garoto, indo até o peito dele. Ela olha ao redor e vê um homem de terno indo para o trabalho. Muriel vai até esse homem e começa a tentar, para o desespero de Johnny, puxar o terno do homem.

— Qual seu problema, garota? O que você quer? — O homem braveja, confuso mas também irritado.

— Preciso de um casaco! — ela responde, ainda tentando puxar o paletó do homem.

Johnny se desespera e vai separar os dois, tendo que imobilizar Muriel, que tenta morder o homem, esticando o pescoço. O homem, ainda confuso, bufa, bravo e anda para longe da garota que partiu para cima dele.

— Volta aqui, não acabei contigo. — Ela ergue a voz, se debatendo.

Johnny solta-a devagar, após o sujeito já ter ido embora. Ele olha para a colega, confuso com o que acabou de presenciar.

— O que foi isso, Muriel? — ele pergunta.

Muriel desvia o olhar, rindo. Suas bochechas estão vermelhas, de timidez.

— É que tem uma poça ali, e eu queria colocar um casaco em cima. Para você não molhar o pé — ela conta, colocando as mãos no bolso do macacão por timidez.

Muriel não queria usar a própria roupa para isso. Seria burro. Muito mais fácil pegar de outra pessoa. Johnny pisca duas vezes, levando seu olhar para a poça. Tem a largura de um pé. Daria facilmente para contornar sem perigo. Na verdade está no canto da calçada, eles nem teriam passado por ela, talvez.

— Eu posso só desviar dela, mas obrigado, eu acho — ele responde, confuso. — Vamos indo?

Muriel faz que sim, pisando alegremente na poça.

— Vamos, Johnny-boy, não vamos perder o ritmo! O mercado nos espera! — ela fala, dando passos largos e ficando a frente do colega, saltitando.

No meio da confusão tinha conseguido pegar a carteira do cara. Talvez ela possa comprar chocolate para Johnny, sim, já tinha visto isso. Flores e chocolates fazem parte da conquista. Ela continua andando com Johnny e se pergunta se saberia como conquistar ele. Ela tem bastante lábia para escapar de situações diferentes, mas nunca em ramos românticos. Nunca esteve em um ou pensou que estaria em uma situação daquelas. Muriel pode ser nova na prática dessa arte, mas já viu diversos filmes sobre isso. Precisa só aplicar isso. 

“Vamos, Muriel, pense: o que é preciso para se ganhar o amor de alguém?” ela reflete bastante.

Os dois param em mais um semáforo, e esperam calmamente o sinal ficar aberto para os pedestres. Um sorriso largo se abre no rosto de Muriel, com seus olhos se cerrando e brilhando. Ela dá um tapa e empurra Johnny para a rua, com ele soltando um berro de susto. Ele perde o equilíbrio e tenta ficar de pé, vendo carros passando e desviando dele. Ele vê um caminhão se aproximando, grande demais para desviar. A buzina ecoa pela cabeça de Johnny, com ele se perguntando se é assim que ele iria morrer. Subitamente sente ser puxado de volta para a calçada, pela gola de sua roupa, com a pressão de ar causada pela passagem do veículo sacudindo os cabelos de Johnny violentamente.

Ele cai de joelhos na calçada, trêmulo, e Muriel, que havia puxado ele de volta, se ajoelha ao lado dele.

— Johnny! Você está bem? — ela pergunta com uma voz super dramática.

O garoto ainda zonzo ergue o olhar para Muriel.

— O que houve? — ele pergunta confuso.

— Eu te salvei. — Muriel o abraça e acaricia seus cabelos. — Você está seguro agora, Jonathan. Johnny é de Jonathan, né?

Johnny nega. É John, de batismo mesmo. Muriel pisca calmamente duas vezes, processando a informação. Ela sorri novamente.

— De todo modo eu te salvei. E fico feliz que esteja bem, claro, claro — ela fala, com a voz doce. — Você me ama agora?

Johnny, ainda confuso demais, olha para ela.

— Que? — ele pergunta.

— É, eu te salvei. Você ia morrer e eu te salvei. — Muriel se levanta e oferece a mão para Johnny. — É tão romântico! Tu acha que mandei bem? Me achei incrível e deve estar querendo beijar minha mão de tanta emoção.

Ele aceita a ajuda e se levanta, segurando a mão dela, bastante confuso. Sabia e já tinha viso o jeito peculiar de Muriel, mas é a primeira vez experienciando isso e não sabe o quanto disso é “normal”. O sinal abre e eles começam a atravessar a rua. O garoto se mantém olhando para trás, com medo.

— Eu senti alguém me empurrando, você chegou a ver quem foi? — ele pergunta baixinho, se aproximando de sua colega.

— Sim, fui eu — Muriel prontamente responde, sem hesitar.

Johnny olha chocado para Muriel, sem conseguir expressar de verdade nada, apenas gaguejando, preso em um estado de perplexidade. Ela o empurrou? Ele não consegue decifrar os motivos. Deve ter sido um acidente.

— E agora que te empurrei e te salvei, você gosta de mim? A gente pode namorar agora, né? Me paga um sorvete — ela explica e se empolga falando, bastante empolgada. — Hm, deixa eu pensar qual sabor eu quero...

Johnny não sabe o que responder, assustado demais para formular uma resposta decente. Eles entram em uma rua cheia de casas e vêem uma mulher idosa no portão de sua casa, olhando ao redor. Parece bastante transtornada e Johnny inclina a cabeça para o lado, preocupado, e vai até ela.

— A senhora está bem? — ele pergunta, com uma voz doce.

A senhora nega, veemente.

— Roubaram minha panela — ela choraminga e aponta para um beco. — Foram por ali, malditos arruaceiros.

Johnny olha para a direção que ela aponta e respira fundo.

— Vamos ver se encontramos eles, okay? — ele diz e começa a ir para a direção. — Muriel, vamos.

Muriel respira fundo olhando para Johnny e demorando um pouco para seguí-lo. Ela não consegue entender porque estão parando para, subitamente, ajudar aquela velha. Eles tinham coisas melhores para fazer. Ela queria o sorvete dela, por exemplo.

— Ei Johnny-boy, não podemos ir para o mercado? Digo, a velha só perdeu uma panela — Muriel choraminga, os dois já no beco. — Ou, sei lá, podemos ver isso depois?

Johnny pula uma cerca com dificuldade e Muriel agilmente salta também.

— É alguém pedindo ajuda, Muriel. Somos aprendizes de Hunters, aprendizes do senhor Blanco… — ele responde, andando mais devagar para poder falar olhando para a garota.

— Blanco? — Muriel fica confusa e então entende quem ele está falando. — Ah sim, o senhor Nero.

— Enfim — Johnny retoma a palavra. — Ele não gostaria que virássemos as costas para alguém assim, pedindo ajuda.

Muriel, que ainda está olhando para frente, vê o que lhes espera e sorri. Pelo menos seria como nos velhos tempos. Cinco rapazes estão rindo de modo ridículo enquanto jogam uma panela um para o outro. Eles vêem saindo do corredor escuro, que dá para um pátio entre alguns prédios, uma garota que não deveria ter mais que quinze anos. Eles se entreolham confusos, mas no fim presumem que deve ser alguém que more dentro de algum dos prédios ali. A garota para, sorrindo e olhando para todos ali.

— Ah, olá! — ela diz, com um aceno. — Eu me chamo Muriel, e é um grande prazer. Estou aqui junto de meu amado, Johnny-boy, para retomarmos o item roubado da velha chata que mora aqui perto! Sim! Está panela!

Ela diz isso tudo com uma voz exageradamente dramática. Os jovens se entreolham, ainda confusos, sem saber se devem levar a garota a sério. Alguns tem o ínicio de um sorriso, de um riso, nas bocas, mas ainda sem saber como reagir aquilo.

— E vai pegar a panela como se a gente não quiser dar? — um deles, o menor, pergunta, rindo.

Muriel fica pensativa. Johnny se aproxima, em passos cautelosos, da cena. Quer se manter furtivo e aproveitar Muriel chamando atenção para poder, talvez, ganhar vantagem.

— Eu quebro o seu braço — Muriel responde, assertiva. — E digo mais, se não me vencerem, o garotão aqui atrás de mim, nossa… Ele vai… — Muriel para e pensa um pouco. Iria dizer que Johnny quebraria eles no lugar dela, mas pensando bem...

“Em filmes, geralmente o rapaz protege a garota. Acho que não tem problema se eu inverter quem protege quem”, ela sorri, juntando as mãos.

— Se eu perder, vocês podem roubar o garotão aqui. Ele tá cheio da grana. Cheio — Muriel fala, convencida. Tira a carteira roubada de seu bolso e joga para Johnny. — E agora tem ainda mais!

Eles riem. Johnny engole em seco, com medo de Muriel e do que ela pode ter provocado. Ela vê as reações deles e suspira, triste. É difícil não ser levada a sério desse jeito. Sente a mão de Johnny em seu ombro e sorri. Ele com certeza vai perguntar se Muriel não deseja que ele lute por ela. Ou irá dizer que não quer ver Muriel lutando por medo de vê-la se machucando. Com certeza ele iria dizer algo desse tipo.

— Sim, John? — Ela olha para ele por cima do ombro, com um sorriso tímido.

— Não acho que você consegue dar conta de todos eles, é perigoso — ele fala. — Na verdade, acho melhor tentarmos resolver isso pacificamente.

Muriel suspira, um pouco triste por ter tido suas expectativas quebradas.

“Ele está preocupado comigo, pelo menos”, ela pensa, ponderando.

— John, meu amado Johnny, vou lhe ensinar algo valioso agora, hein? — ela diz se virando para ele, segurando o rosto do garoto com ambas as mãos.

— Eu que sou seu veterano — ele resmunga.

Shhhhhhhh — ela responde por cima dele e colocando um dedo sobre os lábios dele. — Eu não preciso vencer todos eles. Eu só preciso fazer com quem um vire uma tomate atropelado na rua.

Johnny tenta responder algo, confuso demais, mas Muriel o solta e dá as costas para ele. Ela sorria de orelha a orelha, de tanta empolgação. Os sujeitos no beco se entreolham, confusos. Eles deveriam ir para cima da garota? Isso não seria errado? Ela é bem mais nova que eles, com todos eles estando na faixa etária de dezoito anos, aproximadamente. Um deles vê Muriel se aproximando e dá um passo para frente, a afastando com um empurrão e recebendo um forte chute no rosto. Os demais quatro se olham assustados, vendo como seu amigo caí no chão, jogado pelo chute que acertou sua bochecha.

O menor dentre eles parte para cima dela, tentando dar um soco em Muriel.

— Sua maluca! — ele berra.

Muriel sorri mas acaba levando o soco, no meio do rosto, que a fez cair com tudo no chão. Johnny dá um passo para frente, assustado e pronto para intervir. Sua colega, ainda no chão, ergue a mão.

— Só assista, Johnny — ela diz, ainda no chão.

Outro marginal avança, e Muriel recebe um chute e seu corpo rola para o lado. O rapaz que ela havia chutado começa a se levantar, devagar. Ainda zonzo pela forte pancada que Muriel o deu. Tentam dar outro chute na barriga da garota e ela consegue desviar, se levantando em um salto. Ela sente o vento que o chute causa e acerta o homem na virilha, com um soco. Ele se encurva para frente, seu rosto se deformando numa expressão triste de dor. Ela dá mais dois socos, um no rosto e outro no peito, e o empurra, começando a chutar as costelas dele. O cara que ela tinha chutado vê isso e cogita avançar para ajudar o amigo, até que Muriel pisa na virilha do seu companheiro e torce o pé mais de uma vez. Os outros três jovens, que nem sequer se mexeram ainda, olham igualmente horrorizados para aquilo. Olham para a cena, para o quarto rapaz e depois para Johnny, como se buscassem uma resposta.

“Tudo isso por causa de uma panela?” eles se indagam, abismados.

Johnny igualmente não sabe o que fazer. Primeiro teve ela tentando pegar um casaco de outra pessoa à força. Depois, ela o empurra e o “salva” de ser atropelado. Agora isso: ela está espancando um jovem por causa de uma panela de uma senhora que ela não queria ajudar. Ele sabia que Muriel é alguém bastante exótica, mas ele não estava pronto para isso. Muriel não é exótica, ela parece ser apenas puramente caótica.

— Podemos ter a panela de volta? — ela diz enquanto limpa o suor de sua testa.

Os quatro homens olham para o amigo caído no chão, com o rosto parecendo uma amora de tão vermelha, e engolem em seco. O que tem a panela em mãos vai até a garota em passos assustados entregá-la, tremendo. Muriel sorri gentilmente para o sujeito que lhe entrega a panela, pegando-a e chutando uma última vez o rapaz no chão, que já está inconsciente há algum tempo.

— Lembrem-se rapazes. Vou lhes ensinar uma lição sobre roubo: só roube o que for válido o problema. — Ela coloca a panela debaixo do braço e diz, de modo bastante didático. — Pois poderia ter vindo à polícia ou alguém pior. E vocês teriam todos apanhados por causa de uma panela aleatória por causa de uma velha. Pelo menos tinha comida?

Eles negam com a cabeça. Muriel suspira, sacudindo a cabeça em negação. Parece uma professora dando aula, muitíssimo decepcionada.

— Pelo menos tivessem roubado comida junto — ela bufa, dando as costas. — Vamos, Johnny-boy.

Ele puxa-o pela mão, com Johnny ainda encarando o cara caído no chão, se perguntando se deveriam chamar médicos para o pobre rapaz. Muriel pergunta a si mesma se Johnny está ainda mais caidinho por ela. Ela salvou ele de volta. De ser roubado. Ela que causou ambas as situações de perigo, mas ela que salvou ele, logo ela fez o correto. Ela foi a heroína. Ainda assim, Johnny não comentou nada. Na verdade, ele parece bastante fora de sintonia, no momento. Muriel esperava ao menos um abraço, ele segurar sua mão de volta, um sorriso, um sorvete talvez.

Ela se pergunta se deixou de fazer algo, talvez esqueceu de falar uma frase importante. E fica surpresa com o quanto se sente motivada de tentar mais. Sente que está realmente ficando mais forte. Eles chegam no gradeado e na hora de Muriel saltar, sente uma dor forte, não conseguindo fazer o pulo e ficando respirando pesadamente agarrada na grade.

— Muriel? — Johnny a olha preocupado, se aproximando dela.

— Eu acho que aqueles chutes na barriga vão deixar um bom roxo — ela fala rindo. — Me dá um tempinho. Eu já pulo.

Johnny fica encarando-a, preocupado e ao mesmo tempo sem saber como intervir, com medo das reações de Muriel. Não entendeu porque ela teve que ser tão agressiva quanto aquilo. Ela acabou se machucando, sem necessidade. E ele não é alguém que gosta de violência, sempre prefere a rota mais curta ou a mais pacífica e evitar isso. Nunca acaba dando em coisa boa e ver Muriel com dor por causa de uma briga tão agressiva, tão violenta, lhe dá medo. Muriel finalmente salta a grade, e assim que cai, faz uma breve expressão de dor, massageando o local.

— Vamos devolver a panela da velha. — Ela tenta dar um risinho, se levantando.

— Quando chegarmos, você precisa descansar. Ou pelo menos ir se cuidar, um remédio ou algo do tipo — Johnny fala preocupado. — Está doendo muito?

— Só pra pular a grade. — Ela continua andando a frente, para sair do beco logo.

Eles saem do beco e conseguem devolver a panela à velha senhora, que agradece exageradamente os dois. Era a última coisa que o marido deu a ela antes de morrer. Muriel sentiu isso como “um climão estranho”. Não sabe o que sentir, ela toca o próprio peito, um tanto confusa, sentindo seu pingente sob a camisa. Johnny parece aliviado e até tocado com a história. Muriel desvia o olhar, tocando seu pingente e olhando para o céu.

Eles continuam andando, agora rumo ao mercado. Ao chegar lá, Muriel alegremente pega o carrinho, se divertindo ao empurrá-lo enquanto Johnny segura a lista e vai colocando as coisas nele e tendo que eventualmente tirar coisas que Muriel insiste em colocar no carrinho.

— Podemos comprar aquilo? — Muriel aponta para algo nas prateleiras.

— Acho melhor não — Johnny diz, conferindo a lista.

— E aquilo? — Muriel aponta para outra prateleira.

— Não está na lista, melhor não — Johnny diz, com um sorriso.

Ele para e vê a garota olhando abóbada para embalagens de cereal.

— Que tal levarmos esse aqui? Tá dizendo que vem um brinquedo junto. Eu deixo você me ver brincar com ele — Muriel sugere, sacudindo a caixa.

Johnny ri e nega.

— Vamos seguir a lista, Muriel, é o que o Mestre Nero espera da gente — ele responde, rindo. — Eu posso comprar um sorvete pra gente, que tal?

Os olhos de Muriel brilham em alegria e ela exageradamente acena positivamente com a cabeça. No fim, deu certo! Se ele está oferecendo comida para ela, só pode ser uma demonstração genuína de carinho. Não tem erro! Ela se sente orgulhosa, se sente vitoriosa. E ele até deixou ela escolher qual ela quer. Ela sai do mercado alegre, tomando o sorvete enquanto carrega sacolas, ajudando o garoto com ela. Johnny nota que tem algo de errado com a barriga dela. Parece maior. Ele cerra os olhos, tendo ideia do que ela fez, mas receio de assumir algo assim de uma colega.

— Ei, Muriel, o que aconteceu com sua barriga?

— Ela tava doendo, daí coloquei algo gelado — ela fala, comendo o sorvete. — Pra passar a dor.

— Algo? — Ele ergue a sobrancelha.

Muriel para, os dois a uma quadra de distância do mercado e ela tira um pacote de batatas fritas congeladas de dentro do macacão. Johnny sente seu queixo querer cair para o chão.

— Por quê? — A voz de Johnny sai cansada de sua boca.

— Minha barriga ‘tava doendo, já disse. E agora a gente pode chegar e comer batata frita, eu sempre quis! — Ela dá um salto de alegria.

— Sim, mas… — ele tenta estruturar uma frase mas suspira, desistindo de argumentar e dando um fraco sorriso. — Acho melhor irmos logo para casa.

Ele olha para o céu, que está com nuvens pesadas se fechando. Os dois apressam o passo. Gotas começam a cair, com os dois se escondendo embaixo de um toldo de um estabelecimento. A chuva começa gradualmente a engrossar. Muriel se senta no chão e suspira, aproveitando para comer seu sorvete com calma, ela olha para Johnny e diz:

— Qual tua história, John?

— Como assim? — Ele se assusta um pouco, visto que estava concentrado na chuva.

— Como que tu parou aqui, sendo aluno do senhor Nero — Muriel tira uma batata frita do saco e começa a comer. — Quais seus motivos, seus sonhos. Marta encheu meu saco por causa dessas coisas e fiquei curiosa pra saber mais sobre você.

O garoto se surpreende com a pergunta, tendo que pensar um pouco. O som da chuva caindo no chão massageando sua mente. Johnny sorri.

— Minha família é uma família bem comum, sabe? Não sou um jovem vindo de algo tão incrível quanto a Marta. Acho que eu era um qualquer. Condição financeira boa, meus pais moravam juntos. Moram, aliás. Só que eu queria fazer algo, sabe? Fazer diferença. — Johnny encosta na parede e deixa as sacolas que carregava no chão.

— Mas por quê? — Muriel indaga e dá uma mordida em seu sorvete.

— Ajudar pessoas. Acho que eu via as pessoas precisando de ajuda, sofrendo, e sempre quis ajudar. Sempre achei que eu deveria fazer algo. Sinto que deveria buscar isso. E assim fui atrás de tentar ser um Hunter, mas descobri que era difícil. Não seria fácil. E não tinha atalhos. Comecei a ir atrás de livros, pessoas, detalhes, treinos. — Johny faz uma curta pausa, lambendo seu sorvete. — E um dia, enquanto fazia alongamentos e corridas em um parque, eu vi um grupo de idosos pedindo ajuda. Eles estavam fazendo uma viagem e estava perdidos no touro pela cidade. Ninguém parava para dar instruções e informações para eles, e eu decidi parar para ajudar um grupo de pessoas. E nisso conheci Nero, ele estava em um banco, próximo dali, vendo a situação. Vendo se alguém tomaria a primeira atitude.

Muriel continua comendo das batatas congeladas, ouvindo a história atentamente, como alguém assistindo filme e comendo pipoca.

— E daí ele veio conversar comigo. E me tomou como aprendiz. — Johnny conclui sorrindo.

Muriel fica pensativa, racionalizando o que ele contou. Ajudar os outros, Muriel simplesmente não consegue entender isso. É só burrice. É bobo. Ela se encolhe no chão, abraçando seus joelhos.

— Então esse é seu objetivo? — Ela pergunta, confusa. — Ajudar gente que você nem conhece?

Ele faz que sim com a cabeça e come mais um pouco do sorvete.

— Isso é confuso — ela fala, coçando a parte de trás da orelha.

— Por quê? — Ele se aproxima, curioso com sua colega.

— Se arriscar, viver pelos outros — Muriel estende sua mão, vendo as costas dela e então a palma. — Se você vive pelos outros, você não vive por si. E então as pessoas te esmagam. E vão querer te usar e passar por cima de você.

— Bem, eu já sei seus objetivos e tudo mais. Eu vi a luta de você e da Marta naquele dia — ele comenta, rindo.

— Eu lutei bem? — Ela ri.

Johnny sorri e acena com a cabeça.

— Olha, sabendo o quão nova você é nisso e o quão Marta treina, sim — ele fala. — Você lutou muito bem.

Muriel sorri, orgulhosa. Elogios são coisas que ela sempre gosta de ouvir. Ela fecha os olhos, ainda sorrindo, como se estivesse degustando do elogio.

— Você vai participar do Exame Hunter esse ano? — Muriel pergunta, curiosa.

— Vou sim, pela segunda vez, na verdade — Johnny responde.

— E como foi na primeira vez? — Muriel o encara com olhos repletos de curiosidade.

— Foi estranho. Digo, eu não passei, né? — Johnny ri.

— Lógico — Muriel acidentalmente responde secamente.

Johnny ri de nervoso.

— Era bem cheio de gente e eu fiquei bem perdido. Fiz sozinho, aliás. Acabei não indo muito longe e no geral estava bem perdido durante as provas — Johnny conta, tímido.

— E como se sentiu? — Muriel pergunta novamente, empolgada.

— Bem, eu já sabia que não ia passar. Eu queria fazer mais para ver como é, sabe? — ele conta.

Muriel assente com a cabeça positivamente.

— E eu confesso que tenho medo. — Ele morde o lábio.

— De?

— De não passar de volta, e sei lá, não passar. Medo de fracassar. E tudo isso de ajudar as pessoas ir pro ralo, de treinar como Hunter e tudo mais — Johnny conta, colocando uma mão em seu peito, sentindo o nervosismo palpitar.

Muriel fica pensativa por um curto momento.

— Tu precisa ser um Hunter pra ajudar as pessoas? — ela questiona, confusa.

— Não — Johnny responde, tímido.

— Então! É tipo a Marta. O sonho de vocês não precisa do título de Hunter é só… elo. É “elo” que chama? — Ela fica quieta e coloca a mão no queixo, pensativa. — Ego!

Johnny ri, abertamente.

— Talvez tenha um pouco disso. — Ele suspira. — Mas daí todo esse tempo treinando teria sido para quê?

— Comer bem e te deixar mais forte — Muriel responde sem hesitação alguma.

Johnny sorri, cruzando os braços e mudando o pé de apoio, mudando o peso do corpo. Ele olha para a colega com bons olhos, ela é ingênua e caótica mas apesar de tudo tem um coração no rumo certo.

— Você tem um ponto — ele fala, ainda com um riso na voz.

— E você, justamente por já ter feito o teste lá tem ainda mais chances. Pode me ajudar a treinar. Só eu. A Marta não — ela animadamente diz.

— Eu na verdade tenho medo, sabe? — ele comenta, mordendo seu sorvete. — Não de ser esmagado nem nada. Medo de fracassar.

— Mas não é normal a pessoa demorar para ser aprovada no Exame? — ela pergunta.

— Sim! Mas ainda assim, eu sinto isso. Tô sendo treinado pelo Nero Blanco, um Hunter mega habilidoso e forte e se eu fracassar, isso quer dizer que eu não presto? Que não deu em nada?

Johnny recebe um punhado de batatas fritas congeladas no rosto, jogadas por Muriel.

— Não fala asneira — ela resmunga. — Falhar não é algo normal?

Ela coloca mais batata na boca e cata as que caíram, comendo-as também. Ele ia responder, após pensar por um tempo, mas Muriel finalmente engole o que tinha na boca. Ela fica estranhamente séria, seu olhar, expressão e voz.

— Quanto mais você pensar que vai falhar, mais você vai. Porque você só pensa nisso. E então tudo que consegue ver vira isso — Muriel diz. — Então, sei lá Johnny-boy, não pense. Só aja. É o que eu geralmente faço. Me guio ou por instinto ou por… Sei lá.

Ele engole em seco, acabando por concordar com o que ela falou, movendo a cabeça positivamente. Johnny sabe de Muriel. Ouviu dela por Marta. Pelo Hunter Chezan. E pelo seu Mestre Nero. E ainda assim, sente um abismo de diferença com a garota. Ela parece ser diferente de um jeito estranho. Não sente nada como o que Marta sentia, apenas uma estranheza. Johnny quer entender ela, quer poder se tornar um amigo dela, só que apenas hoje, ela pôs a vida dele em risco duas vezes.

O próprio Nero pediu por isso: para que Johnny tentasse, se esforçasse, para fazer com que Muriel se adaptasse. E Johnny quer ajudar. Sabe que ela veio de um lugar difícil e claramente tem muito o que trabalhar, só que ainda assim se sente terrivelmente distante. Ele a vê terminar seu sorvete e tentar morder o palito de madeira, ficando visivelmente incomodada por não conseguir.

— Muriel, posso te perguntar uma coisinha?

— Sim — ela diz. — Eu quero seu sorvete.

Ela estende a mão e ele ri, mas ela o encara com olhos morbidamente sérios. Muriel começa a comer mais das batatas congeladas e Johnny enche as bochechas com ar, nervoso.

— Por que me empurrou na rua? Quando estávamos vindo para o mercado — ele pergunta, receoso.

Muriel termina de engolir as batatas, e pensa se deveria contar.

“Pelo menos ele vai saber o que quero e acho que isso é bom”, ela reflete.

— Por que eu agora… Estou em busca de um namoradinho. Marta falou tanto de objetivos, sonhos e metas que eu também decidi ter um. Um que possa ser meu. Talvez assim eu fique forte mais rápido — Muriel diz, ainda com comida na boca.

Ela vê a chuva cair e respira devagar, sentindo a calma que entra em seu corpo com o som suave e o cheiro de terra molhada. Muriel sorri.

— E eu sabia que quando você salva alguém do perigo, a pessoa gosta de você — ela diz.

Ela sorri, tímida, e baixa o olhar.

— E eu achei que poderia dar certo. Digo, deu? — Muriel olha para Johnny, curiosa. — Deu certo?

Ele está com o sorvete dentro da boca, pensando no que ela disse. Ela achou que isso era correto. Apenas isso ecoa na mente do garoto e de como poderia explicar para Muriel que esse tipo de coisa não se faz. Se pergunta se foi o primeiro a passar por isso. Reza para ter sido.

— Muriel, veja, isso não é bom — Johnny diz, pensando em como explicar. Ele fica de cócoras, perto dela. — Sabe, você me pôs em perigo. Perigo de verdade. E se você gosta de alguém não pode forçar alguém a ficar em perigo apenas para você salvar. Isso foi… Bem errado.

Muriel baixa o olhar.

— Desculpa — ela resmunga baixinho. — Desculpa, eu não… Agora que você falou em voz alta, acho que fez mais sentido.

Muriel oferece o saco de batatas para Johnny que ri, balançando a cabeça em negação e acaricia o braço da garota. Muriel fica encarando o chão de modo confuso, pensativa, tentando entender o que fez de errado, apesar de já ter escutado o que exatamente fez de errado. Isso é complicado. Amor é complicado.

— E tem mais, é, eu não sei como dizer, mas eu gosto de rapazes — Johnny diz.

Muriel olha para ele, arqueando as sobrancelhas.

— Sério? — Ela pergunta.

— Sério — ele responde, tímido.

Muriel fica quieta e pensativa, comendo mais batata frita congelada.

— Então podemos ser, tipo, amigos? — Ela pergunta de boca cheia.

Johnny ri e faz que sim.

— Então tá legal, você pode me… contar mais sobre esse tipo de coisas? — Ela pergunta, ainda tímida.

Johnny sorri e assente com a cabeça.

— Lógico, Muriel — ele diz, sorrindo cada vez mais.


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