Unidade Móvel 1336 escrita por Mihaell


Capítulo 1
Unidade móvel




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Unidade Móvel n°1336

Era consenso o quão todos estavam fatigados: quando com sorte, metade dos esquadrões e companhias enviados ao front retornavam à Brigada. No rosto sujo de fuligem, nos rastros de sangue e lama de cada soldado ou cabo, o olhar de desesperança jazia, sepultando todo e qualquer brilho que ali um dia pôde existir. Sabiam caminhar junto à morte há mais tempo que poderiam contar e sabiam também o quão inútil era continuar ali. Mesmo assim, eram obrigados a concordar em silêncio com a voz ríspida e sorrateira do General da divisão sob o rádio, os mandando de volta, dia após dia. Não tardou para começarem a sussurrar que suicídio podia ser um deleitoso pecado, e que, apesar de destinado aos covardes, também poderia ser indolor. Eram sussurros sóbrios.

Korra Efaw era primeira-tenente da Infantaria nº34. Na ausência do capitão ou sob ordens do mesmo, Korra era a oficial responsável por chefiar a Terceira Companhia, formada de 98 soldados.

No momento, contudo, não sabia quantos lhe restava.

Quando [enfim] avistaram a Brigada, pensou ter escutado a voz do sargento com a contagem de mortos e feridos dos últimos três dias. Seu corpo demandava descanso, chorando exaustão a cada passo em que a botina voltava a pressionar seus dedos. Suspirou. Já não sonhava com o fim da guerra [isso parecia impossível], apenas tinha esperanças para com uma cama limpa no beliche e um chuveiro. Mal recordava no tiro de raspão que havia tomado, ou na refeição não feita – ou nos corpos que não havia enterrado. O tique da irritação se fez presente ao lembrar que, antes de qualquer coisa, deveria se reportar junto ao Coronel. Assim, Korra seguiu seu dever de oficial, mas só para ser tomada por lampejos de frustração e raiva. Deus. Aquilo tinha que terminar.

Enquanto no banho, seu corpo recusou relaxar. A mente entorpecida não foi suficiente para convencer seus músculos que a contínua tensão da frente de batalha [o desfazer das pedras, o ranger do metal, o cascalho voador, o cheiro da carne queimada e o amontoado quente ao lado] havia passado. A dor nunca a deixaria, e Korra gemeu baixinho quando se viu obrigada a arrancar a atadura posta sem nenhuma limpeza, pelo médico do batalhão, sob o ferimento em seu braço. Não podia reclamar. Já havia presenciado companheiros de batalha perderem ambas as pernas em minas terrestres. Quando terminou de remover a atadura e a cola do esparadrapo da derme, visualizou o ferimento: um corte profundo e reto, sem fragmentos de pólvora. Um hematoma de cor púrpura formava par com o sangue seco e negro, e sob a água quente e o sangue frio, Korra enfim sentiu-se latejar.

Abandonou a tenda de banho para caminhar até a Unidade Hospitalar Móvel do Exército. Sabia que ganharia alguns pontos, mas sua esperança residia da oportunidade de receber sedativos ou analgésicos para dormir.

A UHME era um verdadeiro inferno.

Os combatentes levemente feridos eram tratados pelo médico do batalhão, ainda em campo, e quando o ferimento era mais grave, eram levados às tendas instaladas próximas ao front. Quando gravíssimos, o médico do batalhão tinha que se decidir: se desperdiçaria tempo ou não, tentando salvar aquela vida em específico. Os poucos sortudos que eram resgatados, eram encaminhados para a UHME, onde seriam medicados e operados. Dependendo do estado clínico, talvez mandados para casa.

Korra entrou na tenta da Unidade. Escura e barulhenta.

Sorriu melancólica ao avisar Asami Sato, capitã-cirurgiã da Unidade Móvel nº1336, em uma das mesas de canto.

Caminhou devagar, desviando com sutileza de macas e operações em processo. Não desviou os olhos da mulher que havia conhecido há quatro meses, quando Asami chegou em seu batalhão enviada de outra região. Nesse curto período tinham cultivado uma grande amizade.

“Capitã Sato” Korra prestou continência, sorrindo.

“Korra” Asami levantou o os olhos, surpresa. O sentimento logo deu espaço para um abraço apertado “Que bom que você está bem”.

Era o que ela sempre dizia.

“Como sempre”.

Era o que Korra sempre respondia.

“O que está fazendo aqui? Deveria estar descansando.” A cirurgiã questionou, antes de desfazer o abraço. Korra tossiu, movimento o braço dolorido num pedido mudo de auxílio, que Asami não tardou em captar. “É algo sério?” perguntou, mordendo o lábio inferior e encarando a jaqueta camuflada. Asami não esperou a resposta que Korra internamente estava planejando, em qualquer tom divertido, para expurgar a preocupação da outra, para puxá-la pelo pulso até outro canto da tenda.

Quando Asami fechou as cortinas de plástico, Korra não disse nada – sabia não ser preciso. Desabotoou o blusão que trajava sob a regata branca e deslizou vagarosamente a manga para longe do ferimento exposto, formando uma careta infantil diante do gesto. A princípio, Asami não esboçou nenhuma reação, mas logo seus ombros relaxaram e ela suspirou de alívio. Korra sorriu internamente [orgulhosa] da preocupação nada sutil que a capitã demonstrava.

“Sente-se, vamos ter que limpar antes de suturar” Asami ordenou, enquanto coletava os materiais necessários.

“Como assim não está bem limpo?” A primeira-tenente demonstrou estar ofendida, olhando para o ferimento “Limpei como você me ensinou enquanto estava no banho!”.

“Então estava pior que isso?” Asami sorriu, contendo um riso. Achava meigas as vezes que Korra ficava ofendida feito criança desacreditada. Não eram raras as ocasiões que a mulher tomava tal postura.

“Sim” Korra se encolheu, emburrada.

Balançando a cabeça em negação, a capitã se sentou ao lado da primeira-tenente e puxou o braço atingido. Seu toque era quente e gentil, de modo que fez a cabeça de Korra doer e sua nuca, arrepiar. A sensação gostosa logo se esvaziou, quando Asami passou a limpar o ferimento com gases e soro fisiológico. Não era uma novidade – seu corpo tinha inúmeras cicatrizes, adquiridas em pouquíssimo tempo de campo de batalha –, mas a dor nunca cessava. Korra apertou seu punho, buscando outra sensação além-tortura, que era a atividade de retirar todo fragmento estranho do corte – que seria um corte-limpo, se Korra não tivesse se jogado no chão após ser atingida. O ferimento voltou a sangrar, e se não fosse Asami Sato a pessoa que estivesse cuidado dela, Korra teria se irritado.

Mas era Sami, e não havia motivos para irritação. Korra então deixou acontecer. Deixou os olhos azuis correrem cada linha de expressão do rosto da concentradíssima capitã. Notava, a cada retorno de campo, o quão o semblante da mulher parecia cada vez mais abatido.

“O padre voltou a ensinar rezas antigas aos feridos” Asami comentou despretensiosa, abandonando mais uma gases banhada de sangue.

“Hm...” Korra levantou as sobrancelhas, pouco surpresa “Ainda que caminhe pelo Vale da Morte, não temerei mal algum.” Sussurrou “Um dia, mas há muito tempo, eu acreditei nisso, Sami. Acreditei que Deus estava do lado de quem iria vencer, mas então... me dei conta que ele não está do lado de ninguém. Vi tanta gente rezar e morrer. Tanta gente terminar de maneiras tão horrendas que não tenho mais medo de dizer que Deus é o próprio Vale da Morte”.

Asami não respondeu, se limitando a manter os olhos concentrados no ferimento que terminava de limpar. Sabia que Korra se sentia melhor assim, tirando o que tinha guardado no peito: fosse desesperança e naufrágio ou sonhos roubados. A cirurgiã não gostava de ouvi-la assim – já presenciava muito desespero diariamente –, mas o fazia por Korra.

E somente por Korra.

“Ontem...” A primeira-tenente continuou seu triste devaneio “Assisti a um médico de batalhão se esforçar tanto para estancar uma hemorragia, Sami... e quando conseguiu, ele sorriu de alívio. Um sorriso que não durou nem um minuto, sequer. Alguém no front tinha vacilado e nossa posição ficou descoberta. Logo um tiro atravessou o capacete do soldado e, sabe, eu não senti nada. Nada, Sami. Será que estou perdendo a empatia?”.

Os olhos azuis pareciam suplicantes.

Asami sentiu o coração pesar.

“É uma defesa mental, Korra. Nosso cérebro busca nos afastar de situações assim para que não precisemos sentir responsabilidade. E você sabe que não podia ter feito nada que o impedisse de ser atingido.” Foi tudo o que Asami falou, guardando no peito o susto e o alívio que sentia. [poderia ter sido Korra]. [poderia estar limpando o ferimento desse mesmo soldado, que contaria como sua primeira-tenente morreu]. “Ei, segure isto aqui para mim” Asami entregou uma gases “É como... um ferimento abdominal”.

“Hã...” Korra tombou a cabeça.

“Ferimentos abdominais geralmente são apenas monitorados. Quase sempre o paciente morre, e eu te explico: é muito difícil aplicar anestesia nesses casos, porque há muitos vasos sanguíneos e órgãos próximos. Qualquer corte errado, mesmo que milimetricamente, é fatal. São diversos os riscos, e por isso que nós somos instruídos pelo superior da Unidade Médica a apenas monitorar, e não a operar o paciente. Veja, eu não concordo com isso, Korra, mas mesmo assim não posso fazer nada”. Asami concluiu, inconformada, enquanto esterilizava a agulha. Quando voltou para o lado de Korra, tirou a mão da tenente de cima do ferimento.

“Por que não ganhei um anestésico antes da tortura?”.

“Você sabe” Asami parecia cansada “todos os soldados são viciados e eu te conheço, sei que você aguenta. E preciso do seu organismo limpo. Prometo ser rápida, tudo bem?”.

“Hm” Korra pensou em questionar as razões que levavam Asami a querer seu organismo limpo – coisa que ela própria não queria –, mas o pensamento logo se tornou uma densa névoa quando a agulha perfurou tantas camadas da sua pele já dolorida.

“Como conseguiu isso?” Asami indagou, numa óbvia distração.

“Usamos os tubos de Bangalore para abrir caminho pela Terra de Ninguém. Explodiu tudo e deu certo, mas tive que esperar os engenheiros passarem primeiro. Acho que àquela altura do campeonato, a poeira já tinha baixado o suficiente. Eu dei sorte.”.

“Deu mesmo” Asami assumiu uma postura de tranquilidade “Foi um tiro de submetralhadora. Não estava tão longe de você”.

“Como sabe?”.

“Eu opero outros soldados além de você, sabia?” Asami riu – uma risada estética, amargosa “Faço longas anotações sobre como trato os ferimentos e o tipo de arma que os causam. Sabia, por exemplo, que fragmentos de bombas e granadas deixam marcas amarelas na pele?”.

Korra pensou responder, mas sua voz foi abafada pela dor.  

“Quase lá” Asami tentou acalmar a mulher.

Não conversaram mais até o momento em que a capitã terminou com a sutura. Finalizou o tratamento usando um líquido amarelo sobre o ferimento e envolvendo o braço de Korra sobre uma atadura branca.

“Você poderia estar usando esse material comigo?” Indagou.

“Deveríamos usar com todo mundo, mas... os estoques raramente são repostos. Só usamos quando de fato é necessário”.

A primeira-tenente assentiu, se levantando. Tinha dúvidas sobre a necessidade do uso em seu ferimento, mas não quis questionar Asami. Correu os olhos para o rádio portátil e vermelho na prateleira de metal. Sorriu. Na ponta dos pés, Korra alcançou o objeto, pressionando o botão Power e tentando [literalmente, só tentando] sintonizar numa frequência diferente da do exército. Nunca havia sido boa com novas tecnologias.

Asami fez o favor e então alcançaram uma música já pela metade.

In my heart i have but one desire and that one is you, no other will do [em meu coração, tenho apenas um desejo, que é você e nenhum outro servirá].

I've lost all ambition for worldly acclaim, I just want to be the one you love [perdi toda a ambição de conquistar o mundo, quero ser apenas aquele que você ama].

A música era demasiada lenta. Contava com um coro-de-apoio e um sutil gesto de piano. O ritmo atingiu uma Korra nostálgica, saudosista das memórias de bar, perfume de nicotina e música ao vivo. De repente, puxou Asami Sato pela cintura, num convite mudo, para que dançasse aquele pequeno instante com ela. Corpo a corpo. Se Asami questionasse, Korra argumentaria que era pura infantilidade, apenas outra brincadeira.

E apesar de ainda estarem na UHME – e de não querer abrir brechas para quaisquer tipos de mal-estar entre ela e Asami, ou entre Asami e sua equipe –, Korra instalou um movimento no quadril e nos pés. Asami riu, cochichando baixinho qualquer coisa sobre ter de terminar a organização do material e de catalogar o que haviam usado. Korra, porém, não estava ali. Korra não estava na UHME, e queria que Asami também não estivesse.

Porque, ah sim, ela é tão bonita.

Believe me, I don't want to set the world on fire [acredite em mim, não quero incendiar o mundo].

I just want to star a flame in your heart [apenas acender uma chama no seu coração].

A capitã a encarou com os olhos febris e Korra teve certeza que nem todos os horrores da guerra tinham conseguido tirar a paixão de Asami Sato pela vida. Firmou sua mão contra a cintura da mulher, a girando uma única vez. A mulher assumiu um sorriso quente, ao passo que seu rosto também ficou vermelho, o que Korra julgou ser vergonha. Quando Korra a puxou de volta, Asami, que era mais alta, pousou as mãos nos ombros da primeira-tenente. Ali, findariam a dança sem sair do lugar.

Korra não precisou argumentar ser uma brincadeira.

Testemunhavam, uma no olhar da outra, o quão aquilo era querido e apreciado, o quão era esperado e desejado. Korra se derreteu quando Asami balançou um pouquinho. Uma comichão alcançava seu estomago vazio e ela já não tinha certeza de nada – só queria Sami mais e mais perto. E Korra Efaw nunca tinha feito o tipo que não escutava os próprios anseios: deu uma volta completa do seu braço na cintura da mulher, extinguindo qualquer distância passível entre elas. Encarou todos os pequenos detalhes do rosto da capitã, desde a pele, até toda a extensão dos fios do cabelo escuros. Os lábios tingidos de vermelho.

Puro delírio: não custava nada.

Korra se aproximou o suficiente para beijar Asami Sato, passando a ter conhecimento de cada extremidade do seu corpo, que arrepiou com o contato. Uma corrente elétrica que imobilizava seus músculos [muito diferente do medo] e preenchia seus pulmões. Korra fechou os olhos – enfim, tinha euforia, o gosto de Asami e presença em cada artéria. Tinha um batimento cardíaco doloroso e todos os desejos do mundo de continuar viva. Travaria a batalha que fosse por aquela mulher.

Quando se separaram, o sorriso de Korra era algo inexplicável.  Asami, porém, parecia mais contida: com a maçã do rosto corada e uma respiração em lapso, a mulher agora estava em frente ao espelho, acertando o grande borrão vermelho que era sua boca. Entregou para a primeira-tenente outro lenço, para que fizesse o mesmo.

“Bom” Asami, para o alívio de Korra, foi quem reiniciou o assunto. Desligando o rádio de pilha – e o abraçando contra o peito –, recomendou: “Deve descansar agora, ou seu ferimento não irá cicatrizar bem”.

“Sim...” Respondeu, mal se dando conta que encarava o chão. Korra sentia o corpo e o coração em êxtase, e tudo que queria, era beijar Asami novamente [e nunca mais soltar]. De repente, um demônio que jazia no canto da sua mente retornou, e ela lembrou do outro motivo que a tinha levado até a tenda da unidade. A voz do Coronel surgiu e Korra sentiu a fragilidade dos próprios joelhos “Antes de ir, tenho que contar uma coisa”.

“Diga” Asami reparou o nervosismo de Korra, que desde sempre, tinha sido uma mulher com hábitos corporais muito expressivos. A tenente agora tinha os ombros encolhidos e massageava a própria nuca, em busca de auto conforto. Não era um bom sinal.

“Eu...” Korra inspirou. Olhos inquietos “Fui transferida. Soube hoje quando cheguei”.

Então uma pausa intercalou a conversa.

“Para onde?” A capitã indagou num tom de voz baixo. Seu semblante era o de quem se sentia triste, mas que não demonstrava. Talvez, Korra pensou, funcionasse para qualquer um daquela Brigada, mas não com ela. Asami não precisava ser forte daquele jeito com Korra.

“Pro front sul. Não é muito longe, você deve saber” Se aproximou da mulher. Asami ainda abraçava o rádio de pilha contra o peito, e Korra se limitou a repousar uma das mãos em sua cintura, enquanto a outra alcançou entrelaçou com a de Asami “Eu... não sei bem o que dizer. Os dias parecem séculos, Sami, e nós continuamos andando círculos, e círculos, e círculos, seguindo ideias ridículos de querer lutar e poder. Mas, sabe, eu não tenho mais medo de perder a guerra. Todos perdemos no final. Isso configura um conflito armado, não é?” Sorriu, engolindo a saliva parada na boca “Mas eu te digo uma coisa, Sami: fique bem. Se você me prometer isso, eu tenho no que me apoiar. Eu tenho esperança”.

“Então” Asami tinha uma aura melancólica e um sorriso de dor. Um mundo preso na garganta, ela diria “Só me diga que irá voltar, Korra, que eu te esperarei”.

“É uma promessa, Sami?”.

“É uma promessa, Korra.”. 


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