Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 1
Prólogo




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“Por favor, viva”

“Por favor, não me deixe”

“Eu não posso...”

“Por favor...”

“Eu... deuses! Alguém... Façam alguma coisa!”

“Só... fica comigo”

“Eu...”

— Merda! – Severo xingou, respirando pesadamente. Apesar do frio cortante do mês de dezembro nas ruas londrinas, Severo estava suando da cabeça aos pés, seu cabelo estava grudado na testa, e suas mãos tremiam. Irritado e exausto, suas mãos frias agarraram o cobertor, colocando-o de lado. Ele sentou na lateral da cama, os pés apoiados no chão de madeira, enquanto tentava controlar a respiração.

— O mesmo pesadelo. – ele sussurrou para si mesmo, desistindo do sono. Ainda descalço, ele caminhou até a sala e encheu o copo de whisky, preparando-se para mais uma noite longa.

Desde que a guerra acabara, a quase dois anos, Severo Snape, Ordem de Merlin 1ª Classe, não conseguiu deixá-la para trás. Quase diariamente ele era assombrado pelo mesmo sonho, a sensação angustiante de se ver fora do próprio corpo e se sentir impotente, de sentir a dor, a solidão e o medo e não poder fazer nada a não ser esperar pela morte.

E então...

O pesadelo se torna um sonho em que mãos suaves tocam a sua testa, sua bochecha, e param em seu peito. E o seu coração, que já batia devagar, cansado da existência miserável que levara até ali, pega fôlego e esperança e começa a bater forte, cheio de adrenalina. E a vida que ele ainda não estava pronto para se despedir como achava que estaria para de passar diante os seus olhos e tudo que ele pode ouvir é um sussurro suave retumbando um mantra em seu ouvido:

“Viva. Por favor, viva.”

E, bem, ele vive.

...

Severo sabe que a voz que sussurra em seu ouvido nos sonhos é conhecida, mas por algum motivo seu inconsciente não o deixa saber quem é. Ele sabe que a resposta está ali, mas ele não alcança. As memórias são tão confusas que ele não discerne o que é real ou sonho. Tudo o que Severo lembra depois da imagem da cobra vindo em sua direção é acordar no chão da Casa dos Gritos com a imagem borrada de alguém sobre o seu corpo, e depois, o teto branco e luminoso do St. Mungus, agonizando com uma dor terrível na garganta que o impedira de falar por semanas.

E agora, sozinho no lugar que ele nunca conseguira chamar de casa, Severo sabe que é hora de fazer alguma coisa. Ele sabe que é hora de viver. E só há um jeito para isso acontecer. Caminhando até o banheiro velho e úmido ele olha para o único espelho da casa, manchado pelos anos de vapor e pouca luz. O reflexo no espelho é de um homem que Severo não reconhece a quase duas décadas, se é que um dia já reconheceu. Foram tantos papeis, tantas mentiras, tanto sofrimento, que ele mal sabe o que real.

Seu rosto ainda está mais magro que o normal. As linhas que marcam sua expressão, ainda mais profundas. Há mais fios prateados no seu cabelo do que ele lembrava. Seus olhos estão opacos, sem vida. Mas tem uma coisa dentro dele, uma voz distante mas forte que pede, não, implora, que ele viva. Que ele lute. Que ele tente. E então...

— Sim, Severo pensa, é hora de viver.

...

Marselha, França, julho de 2007

Se Severo fosse um cara de sorte, ele pensou, ter se mudado para a França teria sido uma das melhores decisões da sua vida – se não a única. Os quase três anos desde que ele se mudara para o charmoso vilarejo de pedras a poucos quilômetros da Universidade se tornaram muito melhor do que ele previra. Aliás, se ele fosse totalmente honesto consigo mesmo, ele não esperava nada positivo ou negativo dessa mudança, ele apenas sabia que precisava sair da Inglaterra, e mais especificamente, do mundo bruxo.

Mas as coisas saíram muito melhores do que ele poderia prever. O chalé era simples, mas aconchegante; a vizinhança, acolhedora e discreta. O clima era uma mudança bem-vinda se comparada a sempre nublada e fria Escócia. Além disso, o ar marítimo espantava todas as suas lembranças ruins para longe, quase como se elas não existissem. Ele ainda não tinha noites perfeitas de sono, mas eram definitivamente melhores que antes.

Ele também andar pela vila sem recorrer a feitiços de desilusão, sem o escrutínio dos olhares curiosos, maliciosos ou condescendentes. Ele se sentia quase como um homem livre.

E foi assim que ele saiu para mais um dia de sua nova e pacífica rotina: café na pequena padaria da vila. Ao contrário da sua vida anterior como espião duplo e professor em Hogwarts, em que tudo era corrido, em que a tensão e o estresse o dominavam, viver na França era diferente. Ele fazia tudo com calma, desde preparar o chá até andar pela ilha. Seus movimentos, embora sempre precisos, eram lentos; não havia rigidez em nada. Seu andar se tornara quase um deslizar tranquilo em câmera lenta, seu olhar captando todos os detalhes daquele paraíso que ele agora chamava de lar e daquela vida que ele podia finalmente chamar de sua.

— Monsieur Severo! – saudou o senhor Bernard, dono do pequeno e rústico café que servia o melhor pão crocante que Severo já havia comido.

— Senhor Bernard – Severo cumprimentou, sentando no lugar de sempre.

— Matthew, o de sempre para o nosso amigo, sim? Très bon!

— Obrigado – Severo agradeceu, sentindo o cheiro delicioso do lugar.

— Aqui está, senhor. Café puro e baguete crocante de queijo prato. Mais alguma coisa?

— Por enquanto não, Matthew, obrigado. – Severo tomou o seu tempo para saborear a obra de arte diante dele, curtindo a primeira mordida e quase gemendo de prazer com o sabor do queijo derretendo na sua boca. Era uma sensação muito além da descrição, e Severo riu consigo mesmo pensando no quão pouco patriótico ele parecia admitindo que a França tinha muito mais vantagens que a Inglaterra. Eles não só sabiam fazer uma boa revolução, mas cozinhavam como deuses.

Tinha alguma coisa no ar marítimo francês que deixava toda a sua vida mais leve, de uma maneira que ele nunca havia sentindo antes.

Se não fossem os pesadelos e a lembrança constante dela... A mulher desconhecida que o ajudara, Severo poderia dizer que-

— E então? – Senhor Bernard interrompeu seus pensamentos, puxando a cadeira do lado, seus olhos brilhando de diversão mal contida.

Fazia parte de um jogo entre eles agora: Senhor Bernard testava novas receitas, incrementando novos ingredientes, e Severo tentava identificar cada um deles.

— Sinto o gosto do pão italiano crocante, claro, mas com um leve toque de gergelim. O queijo é o prato com o toque de alguma erva.

— Que seria...

— Manjericão. – Severo respondeu com um sorriso.

— E?

— Alguma coisa agridoce. Parece que está na cebola.

— Será que finalmente peguei o senhor? – Salvatore estava quase tonto com a possibilidade, já que nenhum cliente, em mais de quarenta anos de profissão, o desafiara como Severo.

— Não tão rápido, Bernard. Acho que o ingrediente secreto é... geleia de pimenta? Acertei?

— Maldito seja! – o homem idoso riu, batendo na mesa com força.

Eles conversaram por quase meia hora, como era de costume, até que o lugar começou a ficar cada vez mais cheio de locais e turistas. O vilarejo não ficava muito longe da famosa Marselha, mas nem sempre atraía muitos turistas. Havia muito o que se ver dentro da cidade, e nos arredores dela, então raramente o pequeno povoado concentrava um número grande de pessoas de fora. Era comum, no entanto, que os estudantes da Aix-Marseille Université passassem os finais de semana por lá. Como o novo semestre se iniciaria em duas semanas, o café estava mais cheio que o normal.

— É a minha deixa, Bernard. – Severo entregou algumas moedas no caixa, acenando discretamente para os funcionários – Espero um desafio melhor amanhã, velho. Você está perdendo o tato.

— A ousadia do homem! – ele riu, satisfeito, e quando Severo já cruzava o limiar da porta de vidro e madeira, ele gritou – Amanhã vai ser uma grande surpresa. Estou sentindo!

Severo acenou, colocando as mãos nos bolsos da calça enquanto sentia a brisa morna do verão francês. Displicentemente, ele olhou para o relógio em seu pulso e viu que ainda tinha tempo até abrir a loja. Com as lembranças ainda vívidas do sonho na sua cabeça, ele caminhou até a praia, finalmente se permitindo ser inundado por elas.

Ele também lembra do estado de semi-consciência constante, resultado das dezenas de poções cicatrizantes e anestésicas que nadavam no seu corpo durante as semanas de recuperação no hospital. Lembra vagamente de rostos conhecidos flutuando acima dele, todos culpados demais para realmente olhar para ele. E então... ela. Uma presença tão forte mas que, por algum motivo, ele não se lembrava. Nem sua mente eidética era capaz de juntar o quebra-cabeça, e isso o deixava louco.

Ele sabia que era mulher. Disso, pelo menos, ele tinha certeza. Em uma de suas visitas sentira o toque macio em sua mão, os dedos finos entrelaçando os seus. Nesse dia ele tentara tanto ficar acordado, abrir totalmente os olhos, formar algumas palavras... Mas ele não conseguiu. Não estava forte o suficiente, e ela sabia disso. Porque ela sempre aparecia, Severo percebeu meses depois, nos piores momentos. Quando ele era tão profundamente tomado pela dor que nem as poções mais fortes poderiam ajudar. E o fato de não conseguir se comunicar só o deixava mais insano na época. Ele não conseguia dizer o que doía, onde ou como. Ele queria dizer para deixarem para lá, que ele queria que aquilo acabasse logo. Ele queria que o seu corpo cedesse, mas era exatamente nesse momento que ela aparecia.

Ele podia ouvir uma voz suave falando baixinho para os medibruxos, e depois toda a sala ficava em silêncio. Apenas os dois. Apenas o toque dela.

Em uma de suas misteriosas visitas os medibruxos haviam acabado de injetar a poção sono sem sonhos no seu organismo, quando ela viu o quão descuidados eles haviam sido. Ele não lembra dela ficando furiosa, nem dela gritando com todos na sala, mas ele lembra da energia dela flutuando no espaço entre eles até tocá-lo, preenchendo-o com uma força que ele nem sabia mais que tinha. E ele lembra da presença dela no quarto muito tempo depois, porque o cheiro ficara no ar quando ele adormecia; e continuava quando ele acordava.

E a força dela estava nele, ele podia sentir. Tanto que desde a primeira vez desde que ele chegara no hospital, a garganta completamente machucada pela mordida da Nagini, ele fizera a única coisa que ninguém mais acreditava que ele faria:

Ele falou.

Não uma frase completa, mas um distinto e sonoro: mostre-se.

E ela fugira.

...


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